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Caminhos da Solidariedade:
permanências e passagens da cultura árabe na fronteira

                                                                                  Liane Chipollino*

                 A presença da comunidade árabe sírio, libanesa e palestina na fronteira pode ser traduzida como um mundo constituído através da solidariedade, amizade e disposição para integrar-se a novas experiências e lugares. Difere bastante daquele universo apresentado pela literatura ocidental, que mostra o árabe como um ser constantemente bem disposto, afeito ao trabalho, a diversão e ligeiro no troco, como sugere muitas vezes, por exemplo, o escritor Jorge Amado na representação dos árabes, por ele carinhosamente chamado de turcos. Como se sabe, a confusão que tanto desagradou a nação árabe da diáspora tem origem nos passaportes emitidos aos imigrantes pelo Império Turco Otomano que dominava a região que hoje compreende a Síria e o Líbano até 1918. Parece mesmo engraçado, mas conversando recentemente com o escritor catarinense Salim Miguel, descendente de libaneses, ele lembrava que encontrou apenas um turco no Brasil, no estado do Maranhão em mais de 80 anos de vida.


                Os imigrantes árabes que chegaram ao Uruguai, já ao desembarcarem no porto de Montevidéu puderam vivenciar a solidariedade de seus pares estabelecidos por aqui. Após uma viajem longa, freqüentemente insalubre e exaustiva, muitos traziam algum tipo de seqüela da travessia do Atlântico. Então, nessa primeira fase da imigração uruguaia e fronteiriça, que vai de 1890 a 1920, aqueles patrícios- ou paisanos, como costumavam ser chamados entre si- que já estavam estabelecidos, faziam o ritual do acolhimento aos irmãos no país desconhecido, fossem sírios, libaneses, ou os raros palestinos e egípcios. O abrigo e orientação nunca lhes foi negado. Recebendo referências sobre a região, a comunidade e algumas palavras do idioma local, os viajantes sentiam-se seguros para dar início a nova jornada na América. Freqüentemente foi essa a trajetória de muitas famílias descendentes de árabes que residem em Rivera e algumas que escolheram Santana do Livramento para morar. Lembro aqui de famílias libanesas da primeira geração como as famílias Posada, Normey, Najas, Curi, Mansur, Aseff, Neme, Figari, Saker e da segunda geração, a família Tarabay. Em Santana, vindas através do porto de Santos, as famílias Salim, Chein, Maluf, Hilal e segunda geração, a família El Tors, Kazzaka, entre outras, que vivenciaram os caminhos dessa solidariedade na fronteira. Em Santana do Livramento, os pioneiros palestinos que chegaram no final dos anos cinquenta foram as famílias Hussein, Abdallah, Bannura, Zaidan, Shueik e a jordaniana, Badra.


               O êxito dos pioneiros, de maioria sírio e libaneses pode explicar o estímulo dado ao processo migratório nos anos seguintes. O ingresso oficial de imigrantes no Uruguai registrado pela Dirección General de Imnigración teve início em 1887. Após três anos de funcionamento, em 1890, o órgão já registrava a entrada de 2.020 imigrantes árabes ao país! Embora estivesse em vigor no país uma dura lei de imigração assinada pelo presidente Herrera y Obes que limitava a entrada de “estrangeiros asiáticos, africanos, ciganos, deficientes físicos e bohemios”.


                  Muitos viajaram clandestinos nos navios e aqueles que conseguiam estabelecer-se costumavam chamar seus parentes e amigos para que também viessem fazer o futuro no Uruguai e na fronteira, formando uma intensa corrente de imigrantes que se estendeu dos anos 1880 até o final da década de 1950. A maioria desses imigrantes chegava de pequenas aldeias camponesas, localizadas nas montanhas do interior da Grande Síria, (atual Líbano), na região denominada Monte Líbano. Nessa primeira fase imigratória, viajavam muito jovens solteiros em busca de uma independência econômica. Aventuravam-se pelo interior da república uruguaia, alguns, em povoados de fronteira tomando a campanha para si, vendendo suas variadas mercadorias, em busca da clientela que o novo ofício exigia. No princípio foram vistos com receio pela população rural, até ganharem confiança e amizade da maioria das famílias da campanha. Sua freguesia principal eram as mulheres e crianças que moravam nas estâncias ou nas vilas próximas a elas. Também foram vítimas de violência, discriminação e difamação, como o episódio acontecido na capital uruguaia em 1923, quando foi publicado um artigo polêmico, escrito por um articulista do jornal La Mañana. O jornalista acusava comerciantes libaneses de esperteza e má fé, e segundo seu relato, suas lojas eram freqüentemente incendiadas e seus proprietários beneficiados com o seguro.


                  A partir das primeiras décadas do século que vinha à luz, as cidades da fronteira se tornaram alvos novos para a maioria da população estrangeira que chegava às capitais do Prata. Logo a comunidade libanesa estabelecida em Montevidéu soube que Rivera convertera-se em centro aglutinador do comércio e da emergente indústria da carne e do couro. A modernidade havia se instalado na região com a introdução de serviços que favoreciam o franco desenvolvimento daquela comunidade do interior da república, com significativos atrativos para os novos moradores. A industrialização, por sua vez, agregou grande desenvolvimento cultural e econômico para a região. Inicialmente, as charqueadas, depois os frigoríficos estrangeiros excederam a mão de obra de trabalhadores locais, abrindo frentes para operários capacitados, como os imigrantes espanhóis, italianos e libaneses. Porém, se os europeus buscavam trabalhos sazonais nas indústrias, os árabes preferiam a autonomia da atividade varejista, baseada na informalidade. A maioria dos entrevistados nesta pesquisa se utilizaram da expressão liberdade para justificar sua escolha pelo cotidiano do comércio ambulante, mesmo sob condições de insegurança e intempérie.

 

                  Em Rivera, o comércio da rua central era dominado pelos espanhóis e italianos. Atravessar a fronteira e obter mercadorias sob baixos impostos era um atrativo para muitos comerciantes de cidades próximas. Aos imigrantes abria-se também a possibilidade de uma fiel clientela binacional, devido a constante instabilidade cambial e a economia pendular, característica da região. A comunidade libanesa estabeleceu-se na calle Brasil, próxima ao Ferro Carril, onde havia constante fluxo de pessoas, diligências, carroças. Os comerciantes árabes perceberam ali a grande oportunidade de vender suas mercadorias para a população local, que vinha tanto da cidade como do interior. Os jovens imigrantes que desembarcavam na ferroviária logo percebiam nos arredores um auspicioso núcleo comercial. Aquela via era habitada por uma população de maioria árabe, como carinhosamente relembrou o poeta Zaz Recarey que anotou: "había allí una turcada maravillosa”. Ele próprio, filho de libaneses.

 

                  Entretanto, os libaneses não tiveram atuação destacada apenas no comércio, interagindo na comunidade fronteiriça como professores, poetas, artistas. Apenas para citar alguns, lembremos de Thell Ramis, Hipólito Zaz Recarey e Clarel Neme. Homens valentes, não foram indiferentes às transformações políticas que sacudiram o Uruguai no início do século 20. O sentimento de pertencimento a uma segunda pátria, uruguaia, fez com que o imigrante acastelhanado Emilio Nizarala, radicado em Rivera, se engajasse na coluna de seu amigo, o líder blanco Aparício Saraiva e fosse defender sua pátria. Outros libaneses também apoiaram a causa como o jovem Khalil Aseff, que após ser perseguido pelo governo Batlle, cruzou a fronteira recomeçando vida nova no lado brasileiro. A figura de Juan Molke se impõe no cenário riverense dos primeiros anos de 1900 destacando-se como empresário e líder da colônia libanesa local. Estabelecido e próspero comerciante, atuará como uma espécie de cônsul, estimulando e patrocinando a vinda de jovens solteiros, que tinham esparsas oportunidades de trabalho em seu povoado.


                  A comunidade sírio-libanesa então constitui seus espaços de cultura e sociabilidade, quando em 1917 organiza a Liga Patriótica Libanesa, atual Sociedade Libanesa de Rivera. O lugar era cedido por um patrício, sendo frequentado pelos libaneses de Rivera e Santana, pois do lado brasileiro nunca efetivou-se nenhum tipo de sociedade recreativa. Em 1948, os sócios da Sociedade decidem-se pela construção de um Panteon no cemitério riverense. No final da década de quarenta, com o falecimento de alguns pioneiros, a Sociedade, desmobilizada é desativada retornando suas atividades somente em meados dos anos 80, com alguns velhos imigrantes e seus filhos. Porém, assim como o cônsul Molke auxiliava os jovens, também mantinha sua autoridade sobre eles, estimulando e sugerindo o casamento entre as moças libanesas que chegavam ou as que já estavam estabelecidas na cidade. Uma forma eficaz de perpetuar as raízes árabes no novo chão. Entretanto, com o decorrer do tempo muitos libaneses, especialmente os que viviam do lado brasileiro da linha divisória, e que ali haviam constituído um clã, vão integrar-se profundamente a cultura local, ocultando sua raiz árabe. Vários seriam os motivos para esta perda do referencial cultural, e a segunda geração, constituída por brasileiros-árabes, nunca foi estimulada a falar o árabe. Seus pais logo souberam que o êxito dos negócios e a mobilidade social estavam ligados à fluência da comunicação em português e ao distanciamento da imagem estigmatizada de “turcos”. A necessidade em se relacionar com os clientes e com a comunidade fronteiriça exigia dos imigrantes a fluência nos idiomas português e espanhol. Outra limitação estava relacionada ao casamento. Casaram-se com mulheres brasileiras que não tinham interesse que seus filhos convivessem com a cultura árabe. Talvez para evitar a discriminação que essa primeira geração de imigrantes sentiu, logo no início de seu estabelecimento em Santana.

                          Ainda assim, a busca por uma identidade remanescente constituiu-se de um elemento muito forte para alguns imigrantes, na manutenção de sua raiz nesse novo ambiente. Enquanto construção cultural, certamente cada grupo sente-se estimulado a valorizar sua identidade.

 

                            Conforme ensina Edward Said, o mundo árabe é feito de identidades múltiplas, onde diferentes manifestações culturais conviveram dentro de uma mesma região. Claro que a relação entre os grupos ao longo dos séculos não se mostrou fácil ou pacífica, no entanto, o povo árabe sempre conviveu com o diferente, com o outro. Identifiquei dois fortes centros de resistência ao aculturamento, dois territórios da cultura árabe na fronteira: o armazém de Rage Maluf e os encontros dominicais de imigrantes libaneses e palestinos no Parque Internacional. O armazém de Rage, semelhante a um clube, constituía-se em espaço da sociabilidade, recebendo compatriotas que residiam em Rivera e Santana. Ali costumavam confraternizar ao final da tarde, quando terminava o expediente de trabalho. Buscavam o local para se distraírem, fosse conversando em árabe, fumando ou jogando xadrez. Nos início dos anos 50, as manhãs de domingo eram sagradas para os imigrantes, quando costumavam reunir-se em frente ao obelisco do Parque Internacional, para conversar em árabe e tratar de temas sérios como a sempre turbulenta situação política do Oriente Médio ou, simplesmente, fofocar. Alguns costumavam levar seu chimarrão, como Sami Kazzaka, outros iam acompanhados dos filhos, como Ibrahim Tarabay. Ali, reunidos, estavam os integrantes da primeira geração, como pioneiro Nahim Chein e da segunda leva, como o jovem e recém emigrado Samir Kazzaka.

 

                            O estigma sempre acompanhou a trajetória do povo árabe. Ao chegar à fronteira, a exemplo de outros lugares, foram imediatamente identificados como turcos, fossem sírios, libaneses ou palestinos. Enquanto Rivera os acolheu de maneira amistosa e integrada, em Santana do Livramento a sociedade local mostrou-se refratária e com as mesmas características excludentes que mantinham com os despossuídos e estrangeiros em geral. Se os espanhóis e italianos eram chamados de anarquistas, os árabes eram os turcos, exóticos e pouco confiáveis. Embora as características dessa sociedade pouco tenha se alterado com o passar das décadas, a pujança cultural e comercial árabe se impôs, forjando uma aceitação gradual e que teve o ingrediente da miscigenação cultural. As famílias palestinas emigradas no final dos anos 50 criaram espaços da cultura árabe, como a Mesquita, a Sede Social da Sociedade Palestina, o cemitério. Atualmente na fronteira, são os integrantes da diáspora palestina que exercem forte influência econômica.

 

                            Em Santana, o comércio local é hoje predominantemente ligado aos imigrantes jordaniano-palestinos, que chegaram em meados dos anos sessenta. Também em Rivera, algumas das tradicionais casas comerciais da cidade foram compradas por palestinos, que emigraram nos final dos anos cinqüenta para Santana do Livramento. A persistência é uma forte característica dessa geração que recebeu o respeito da comunidade por sua trajetória de lutas pelo seu território, seja no Oriente ou na América.

 

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*Liane Chipollino é santanense, Mestre em História Cultural - UFSC.