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Erico Verissimo - 100 Anos | Imprimir |  E-mail

Dicionário

Boato - Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o "engraçadinho" ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual, por sua vez, entrega o inocente ao cuidado de outro ou outros e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto - tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular -, começa a caminhar pelas próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada. e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e às vezes até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.

Incidente em Antares. p.111.

Coxilhas - Meio ofegante, Rodrigo contemplava a amplidão iluminada. O desenho e as cores do quadro não podiam ser mais sumários e discretos: o contorno ondulado das coxilhas, dum verde vivo que dava ao olhar a sensação que o cetim dá ao tato: caponetes dum verde-garrafa, azulados na distância, coro­ando as colinas ou perlongando as canhadas: barrancas e estradas como talhos sangrentos abertos no corpo da terra. Por cima de tudo, a luz dourada da manhã e o céu azul duma palidez parelha e rútila de esmalte e duma inocência de pintura primitiva. A paisagem tinha a beleza plácida e enxuta de um poema inacabado, a que não se pode tirar nem acrescentar a menor palavra.

O Tempo e o Vento: O Arquipélago (v. 1), p.173.

Estações - Primavera é uma cachopa tão ávida de festas que, semanas antesdo dia da celebração oficial de seu equinócio, começa a vestir-se toda de verdes e a enfeitar-se de brotos e flores, ao passo que o inverno, sujeito teimoso, insiste em ficar até o dia em que o calendário lhe ordena que saia de cena – ordem a que nem sempre obedece. (...) Em suma, embora nossas olhos já vejam a face e nosso olfato sinta as fragrâncias da Primavera, nossa epiderme está ainda meio arrepiada de frio.

Solo de Clarineta. (v.2), p.128.

Feiticeiro – Se existir é estar potencialmente em crise, se o homem não chega nunca à plena posse de si mesmo e de seu mundo, se não é um feixe de elementos estáticos, como descreve-lo no ato de existir senão em termos dinâmicos? E como conseguir isso num romance? Não creio que tal coisa seja possível por meio de um processo lógico. Dum passe de magia, talvez. Mas acontece que sou apenas um aprendiz de feiticieiro.

Floriano em O Tempo e o Vento:O Arquipélago(v.2 )p.399.

Memória – Tenho a impressão de que a minha vida entre os cinco e os dezoito anos ocupou um espaço de tempo muito mais longo do que dos vinte aos sessenta. Afinal de contas, a memória de um velho está cheia de labirintos, de falsos sinais de trânsito, de vácuos, e, por assim dizer, de silêncios temporais e espaciais, isso para não falar em miragens.

Solo de Clarineta (v.1) p. 50-51.

Morte – Se tenho medo de morrer? Claro que não, menino. Primeiro, não costumo pensar na morte,e quando penso é sem nenhum pavor. Morrer é uma coisa tão natural como nascer. Acontece que em geral não estamos preparados para encarar a morte como devíamos. Não me çembro quem foi que disse que o longo hábito de viver nos indispõe a morrer. Pode crer que o mais que sinto com relação à morte é uma pequena “indisposição”.

Diálogo entre Mário e seu médico em Contos: A Ponte, p. 88.

Nascer – A neutralidade é impossível. Na hora em que nasce, o homem entra inescapavelmente na História. Desde o primeiro momento de vida começa a sentir pressões de toda a sorte. O ato de nascer é um engagement Um compromisso que outros assumem tacitamente em nosso nome, e do qual jamais poderemos fugir nem mesmo pelo abandono voluntário da vida, pois o suicídio seria um compromisso terrível com a eternidade.

Floriano em O tempo e o Vento : O Arquipélago(V.3), p.876.

Querência – Durante quinze anos de residência no Rio, papai continuou sendo um homem do Rio Grande, apesar de todas as aparências em contrário. Não havia ano em que não viesse a Santa Fé, pelo menos uma vez, nas férias de verão. Esta é a sua cidadela, a sua base, o seu chão ... Para ele a querência é , por assim dizer, uma espécie de regaço materno, um lugar de refúgio de reconforto, de proteção... Não é natural que num momento de decepção, de perigo real ou imaginário, de aflição, de dúvida ou de insegurança ele corra de volta para os braços da mãe?


Floriano falando sobre o pai, Rodrigo Cambará,
em O Tempo e o Vento: O Arquipélago (v.1) p. 14.

Apenas um contador de histórias

Quem olha a pintura de uma paisagem não está olhando uma paisagem. Está olhando uma quanti­dade de tinta colocada numa tela para representar uma paisagem. Mas quem se fixa na pastosidade da tinta ou na técnica da pincelada, se não for um crítico, está perdendo o principal: o representado, o que o artista queria transmitir com a tinta e a técnica. Quando o meu pai dizia que era apenas um contador de histórias, era uma maneira de pedir para as pessoas não se concentrarem demais na forma como ele escrevia, na qualidade das palavras ou na engenhosidade da narrativa, e darem toda a atenção à histó­ria. A história era o importante. O retratado, não o jeito do retratista. A paisagem inteira, não os detalhes da sua execução.

Mas nenhum texto escapa da constatação de que é, antes de mais nada, uma palavra depois da outra. E a escolha destas palavras e da maneira como elas se relacionarão para que a história seja contada tem um fascínio especial, e não apenas para lingüistas, acadêmicos ou leitores na terceira leitura aue começam a descobrir pormenores. Por que esta palavra e não outra? Por que a frase organi­zada assim e não de outra maneira? A vantagem da literatura sobre a pintura é que na pintura a atenção aos meios acaba no abstracionismo, enquanto na literatura - como prova este livro - uma atenção maior aos meios, a palavras destacadas e a trechos escolhidos enaltece a qualidade do todo.

O que está aqui é a obra em pedaços, uma palavra depois da outra, para se ter a paisagem inteira e ao mesmo tempo os detalhes mágicos da sua execução, a história e o jeito particular do seu contador.


Luis Fernando Veríssimo
- cronista e romancista


Veja a exposição A PORTO ALEGRE DE ERICO, Org. Flávio Aguiar


Erico Veríssimo - 100 Anos - O Tempo e o Vento a Passar.
CORONEL, Luiz ( org.) Porto Alegre, Mecenas Editora.2004. Ed. especial cujo lançamento dá início às comemorações do centenário do Autor (2005). 

Textos de Erico e de Luis Fernando Verissimo reproduzidos com autorização.