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O Drama dos Homens sem Terra | Imprimir |  E-mail

Sobre Porteira Fechada


Décio Freitas - Historiador

Porteira Fechada(1944), de Cyro Martins, é sem dúvida uma das poucas e mais belas tentativas de romance social já levadas a cabo no Rio Grande do Sul. Raras vezes, entre nós, alguém avançou mais longe do que Cyro Martins na tentativa arrojada de pintar determinadas relações sociais de produção vigorantes em nosso Estado. E se levarmos em conta o tema predileto dos seus romances - a vida do nosso campo - chegaremos à conclusão de que ele é atualmente único e solitário no setor de sua especialidade literária; é, mais do que isso, um autêntico, um admirável precursor. Eis aí o que, a despeito das possíveis injustiças da crítica e das preterições que a publicidade possa causar em relação aos seus livros, fará de Mensagem Errante e Porteira Fechada documentos sociais de valor inestimável, capazes de perdurar por muitas gerações.


Cyro Martins é hoje um dos maiores romancistas rio-grandenses. E a possibilidade de conquistar um posto supremo, de lograr uma mais ampla penetração na massa dos nossos leitores, depende exclusivamente de dois passos à frente que venha a dar: um, está claro, no domínio do progresso artístico, relativo à construção de seus romances, à penetração psicológica e outras exigências literárias que se vai fazendo a um escritor à medida que ele sobe, como é o caso de Cyro Martins; e outro passo, no tocante ao conteúdo social de seus livros. Há uma estreita relação entre as duas coisas, e, no caso de Cyro Martins, a realização integral de suas possibilidades talvez venha a se verificar assim que ele ampliar e ajustar a sua maneira social de encarar os temas que romanceia. Porque ele já tem experiência e equilíbrio em tal grau, que o que lhe falta em vigor artístico talvez venha a ser logicamente complementado quando Cyro Martins "acertar" de todo na sua visão sociológica da campanha rio-grandense.


Esta última questão se relaciona mais de perto com a posição político-social que o romancista parece assumir nos seus livros, uma posição muito evidente em Porteira Fechada e denunciada com felicidade pelo escritor Dionélio Machado. Trata-se da simpatia e da predileção que Cyro Martins manifesta através de suas páginas, quando pinta episódios sobre a vida política da campanha, pelos "oposicionistas" que lutam contra os detentores eventuais do poder político local. Será por sentimentalismo que o romancista se inclina tão visivelmente para os que estão sem o poder, que são perseguidos pelos seus concorrentes, que são momentaneamente do "contra"? Talvez esta seja a única explicação possível, porque não é lícito acreditar que alguém com um conhecimento tão grande da nossa campanha - portanto também da sua vida política - como Cyro Martins, acredite, por um instante na sinceridade da fraseologia aparentemente libertária dos "oposicionistas". Todos sabemos que o objetivos e a preocupação máxima da "oposição" era também o poder pelo poder - ôte-toi de là, que je m'y mets ! ... - e que ambas as facções nada mais eram do que a expressão social da tirania econômica exercida por uma classe sobre a massa dos nossos trabalhadores rurais. Este fato fundamental sobre a nossa distribuição da nossa propriedade agrária é que precisa ser compreendido hoje mais do que nunca, porque estamos nos aproximando cada dia mais do mundo de após-guerra, e, pode acontecer que a democracia política, pela qual nós estamos lutando, e, ensaiando, não seja possível se não tivermos também uma democracia econômica no campo, democracia a ser conseguida simultaneamente pela alteração da forma de apropriação das terras e pela modificação dos modos de exploração das mesmas.


Hoje nós não estamos de maneira alguma marchando em qualquer destas direções. No tocante à apropriação do solo, está até acontecendo o contrário: um assalto voraz à pequena estância, causador em grande parte da crise profunda que a nossa campanha está atravessando, crise traduzida num êxodo sem precedentes para as pequenas cidades do interior e para a capital, em índices de miséria, de mortalidade infantil, de subnutrição simplesmente apavorantes.


Esse é o drama que Cyro Martins nos pinta em seu último romance - Porteira Fechada, um livro apaixonadamente humano, exato e sincero na descrição das das condições horríveis em que está sendo atirada amassa dos nossos trabalhadores rurais. João Guedes, o gaúcho honesto e sofredor que a garra adunca do senhor do campo lança repentinamente nas "coroas de miséria" que envolvem a cidade do interior, é um homem que hoje pode ser encontrado em centenas de reproduções em nosso Estado. João Guedes era um gaúcho pobre, com a sua meia quadra de campo arrendado. Naquela meia quadra, ele criava e cultivava, com frutos mais do que parcos e miseráveis. Mas um dia a coisa piorou mais ainda, porque o proprietário da meia quadra teve que vendê-la e o novo proprietário quis o campinho para um "engorde". E João Guedes é expulso do seu pedaço de terra, atirado sem rumo na estrada, indo para os ranchos que cercam Boa Ventura, uma típica cidadezinha do interior. Ali ele vai sofrer um processo implacável de decadência material e moral que culmina com a prática do roubo, a morte por tuberculose duma das filhas, a perdição da outra. Um rosário de miséria, a debacle total dum punhado de seres humanos. João Guedes e a sua família chegam ao último grau de desajustamento social.


E o livro tem um grande final, depois da morte miserável do pobre gaúcho, quando o romancista nos transporta de volta ao campinho do infeliz: "...que engorde dava aquela invernada! Para um fim de safra, então, já com caídas para o inverno, não havia campo que se igualasse. Seiscentos novilhos pastavam folgadamente entre as altas cercas de sete fios e madeirama de lei que a tapavam. O sol entrou sem grandes esplendores. A noite caiu suavemente, Que paz naqueles campos!" Sim, paz nos campos, mas uma paz temporária, uma paz que - se não for dada uma solução econômica e justa aos seus problemas - ainda poderá ser quebrada pelo estrondo de novas correrias "revolucionárias". Como os nossos caudilhetes, vivos ou potenciais, devem estar pensando nas magníficas possibilidades que lhes oferecem os rebanhos humanos que hoje erram pela campanha tocaiados pela miséria, sem ocupações! Se isto acontecer, nós veremos que o caudilho ainda não morreu, porque estão mais vivas do que nunca as circunstâncias que o condicionaram e condicionam, Então os João Guedes não morrerão mais prosaicamente afundados na miséria, mas sob a mortalha duma falsa bandeira de liberdade.


Artigo publicado originalmente na imprensa de Porto Alegre, em 1944, passando depois a ser publicado nas reedições de Porteira Fechada, como Prefácio.


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