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Há setenta anos, Sem Rumo...* | Imprimir |  E-mail

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli**


Não faz muitos anos, um jornal de Porto Alegre publicou na primeira página fotos de um conflito entre proprietários e trabalhadores sem-terra; numa seqüência muito rara, as imagens mostravam dois peões “de a cavalo”, com trajes de gaúcho bem caracterizados, agarrando como podiam um sem-terra, como trajes simples de “colono”, e arremessando-o além de uma cerca que dividia a propriedade invadida! Que significado podemos captar destas cenas, deste conflito? Os verdadeiros “gaúchos” defendem a terra dos seus patrões contra os “não-gaúchos” que a ameaçam, como historicamente o fizeram no passado contra castelhanos ou contra a opressão dos imperiais? Certamente há um discurso que afirma a certeza disto...


Há, por outro lado, uma visão disseminada a partir da literatura rio-grandense, por folcloristas, poetas e compositores vinculados à gauchesca, de que os problemas sociais ocorrem para as pessoas do campo porque elas abandonaram voluntariamente o pago em troca das luzes da cidade, e que a infelicidade material e moral destas pessoas é quase um castigo pelo descaminho; voltar para o pago, voltar para o passado, reunir-se ao que havia sido desprezado pode trazer de volta a redenção.1


Vive-se, pois, um dilema: a crise do Rio Grande do Sul – crise esta que já está incorporada ao discurso oficial independentemente de facção partidária – não está a exigir transformações profundas na economia do estado, mas aparentemente ao contrário, clama por uma volta ao tempo idealizado das estâncias do século XIX, que foi perdido, porque os antigos gaúchos deixaram de sê-lo por escolhas erradas. O Rio Grande idílico do passado associa-se indelevelmente à imagem do gaúcho que, ao longo do século XIX, foi ganhando diferentes significados: remotamente sinônimo de ladrão e delinqüente, objeto da perseguição das autoridades civis e militares, a palavra paulatinamente passou a representar os trabalhadores campeiros das lides pecuárias; só muito mais tarde, características exteriores, como vestimentas e hábitos alimentares, permitiram que os membros das elites também pudessem se identificar como “gaúchos”. E, no Rio Grande do Sul, diferentemente dos países do Prata, foi possível estender o gentílico para todos os nascidos no estado, processo este indissociável do projeto dos republicanos castilhistas e borgistas em conformar uma identidade provincial sólida.3


A imagem do homem “de a cavalo”, imponente nos estribos, e capaz de se transformar num guerreiro quase invencível na defesa de sua terra, prestava-se muitíssimo bem para estas louvações do passado; valores como coragem, força, amor à liberdade e à justiça, um saudável desapego ao que fosse supérfluo, associavam ainda a vida no campo à felicidade, ao bem-estar social, à camaradagem, à amizade, o respeito e o amor sincero, valores que a cultura urbana corrompia e perdia na sua expansão irrefreável. A decadência do presente parecia uma visão invertida do que preconizavam os pensadores latino-americanos do século XIX quando prescreviam golpes de “civilização” para acabar de vez com a barbárie atávica do subcontinente. A crise do presente, o fracasso do Rio Grande de hoje trazia sempre uma reminiscência fantasiosa de um pretérito feliz e operoso, que foi desditosamente abandonado.


Os intelectuais do Rio Grande do Sul, de maneira geral, fizeram eco a isto. A literatura cevou-se na criação de um gaúcho que correspondesse aos desígnios heróicos atribuídos a posteriori; os historiadores reconstruíram os tempos idos fazendo do mundo da estância a razão última das glórias vividas, especialmente naquela noção de uma “democracia de galpão” – ou democracia bárbara, para os autores platinos – quase inédita em plagas americanas. A junção dos gaúchos redivivos com fatos indiscutíveis de histórica bravura, cuja síntese máxima foi o “glorioso decênio” da rebelião farroupilha, compôs um todo articulado e coerente, muito adequado para as elites locais em seu permanente processo de auto-legitimação, mas igualmente bem aceito pelas camadas populares, mesmo que urbanas e eventualmente de origens sequer remotamente ligadas ao mundo rural da campanha pelo caráter sedutor da identidade que se propunha: passado heróico, detentor dos mais altos valores morais aqui, ao alcance de todos, o “centauro dos pampas”, o “monarca das coxilhas”... Idéias que ainda hoje têm muita guarida!.4


A pesquisa histórica nos últimos tempos trouxe evidências que desmentem em muito este mundo simplificado construído para o Rio Grande do Sul no passado. Foi demonstrado, por exemplo, que o campo fora objeto de quase permanentes conflitos, e as grandes propriedades se constituíram em processos onde muitos foram desalojados e obrigados ao trabalho, pequenos sitiantes e posseiros sofriam o assédio dos grandes, havia um sem-número de fraudes, e os gaúchos livres trabalhavam lado a lado com escravos campeiros 5. Tais trabalhos são muito recentes e é, portanto, também muito atual a possibilidade de questionar as imagens que foram feitas do passado rio-grandense, e a partir daí refletir sobre esta identidade regional tão fortemente articulada ao gaúcho literário.


Estas reflexões trazem mais assombro quando nos confrontamos uma vez mais com a grande contribuição de Cyro Martins nestes 70 anos de Sem Rumo!Setenta anos muito bem vividos, permitindo gerar novas “crias” e compor com Porteira Fechada e Estrada Nova um trilogia em tudo original no panorama literário rio-grandense: o romance sobre o “gaúcho a pé”, além de uma denúncia social candente da campanha sulina, erodia a homogeneidade cultural construída para o gaúcho pampiano: a formação truncada do piá, a expulsão dos campos, as “changas” sucessivas que se obrigou a tomar, a família que nascia já marcada pela marginalidade, pouco correspondiam ao lendário monarca!


Chiru cresceu na ilusão de que a estância do “padrinho” lhe bastava. Brincando com o “gado de osso”, o guri “Era fazendeiro do tipo antigo, o Chiru Antigo, não por birra, mas porque lhe agradava o à-toa dos campos sem divisa e porque não aceitava as modernices.”(MARTINS, 48) Mesmo a doença do patrão e o pouco-caso com que os peões adultos lhe tratam, o menino tem seu rito de passagem caracterizado pelo abandono da sua “estância” e suas primeiras façanhas nas lidas dos grandes: “Nas marcações desse ano, o Chiru já estava campeiraço, arriscando os  seus  pealos.”(Id., 63) A formação do gaúcho entra em crise junto com a fazenda e com o próprio Rio Grande: a mudança dos donos para a cidade se dá junto com o espocar da  Revolução de 1923; a tunda de relho que o guri leva do capataz Clarimundo é quase simultânea à derrota imposta pelos seguidores de Borges de Medeiros aos “maragatos”, predominantemente estancieiros tradicionais da campanha rio-grandense, também a fuga da fazenda se dá quase junto com tropas rebeldes.


Chiru, torna-se peão de carreteiro: “Dois anos de carreteadas contínuas, ombreando bolsas nas estações, nas vendas e nos peludos, fizeram-no criar muque e desempeno no porte.”(Id., 88) Mas não se cumpria o desejo juvenil de tornar-se homem, tão gaúcho quanto o cruel Clarimundo e vingar-se de surra de relho; ao contrário, o convívio com mais gente trazia consigo a picardia, a canha, a tava, a concorrência que se anuncia desleal com os caminhões, e novos descaminhos. Outros tantos ofícios, distintos da sua sina de peão: “Carroceiro de venda, changador, pipeiro, mascate.” Por necessidade, “assim ia pelegueando a vida.”(Id., 100) E já as primeiras amolações com os políticos, pois agora era da cidade, das feias periferias que se formavam entre os núcleos urbanos tradicionais e os cinturões de chácaras herdados do século XIX. Mais tarde, o Chiru vai ser encontrado na barranca do rio fronteiriço, envolvido nos crônicos comércios ilícitos e autoridades corruptas; ao invés do flete sonhado por quem só teve petiço, cavalga um bote a remos, significativamente nomeado Gaúcho: “Fora tanta coisa... O que era agora ser boteiro?” (Id., 109)


No rancho da periferia, onde “ventava como na rua”, o Chiru ainda tinha reminiscências: “E as bombachas que ambicionava, de guri, para quando fosse um campeiro de verdade?”(Id.,110) Seu triste consolo era que, assim como ele, miles de outros guascas não paravam nas estâncias e também se perdiam nas cidades, e a mágoa ressentida se resumia em pensar: “A ser gaúcho assim, sem ser gaúcho, sem aperos de dar inveja e sem pingo de estouro, preferia a vidinha de changueiro, boteco e canha da beira do povo.” (Id., 111) E havia ainda a Alzira, a chinoca que trouxera de seus tempos de mascate pelos campos, e o pequeno Joãozinho para criar. Daí Lopes, o bolicheiro aliciador de votos para os políticos do governo. Neste mundo sem possibilidades, o último ato de rebeldia do Chiru, o gaúcho que não aconteceu, foi festejar com o médico benemérito dos pobres a vitória nas eleições contra a candidatura oficial: “Dês do primeiro orador até o último, Chiru vibrou, comoveu-se, indignou-se”.(Id., 134) Mais tarde, perdoado pela “traição” comete nova trapalhada e é punido com a perda de seus bens, não tendo a quem recorrer; nas obras da estrada de ferro onde buscava serviço, um reaparecido Clarimundo, sempre capataz, demite-o por informações vindas do “povo”. Resta, ao final, um apito de trem que lembra “um apelo campeiro gritando de um fundo remoto.” (Id., 153)


A saga triste do Chiru, que se faz acompanhar pelos destinos de tantos outros – o “professor” Manoel Garcia, o campeiro velho João Antônio, o lavrador Tomás Barbosa, o carreteiro Portilho, siá Casturina – não é resultado de uma opção, de qualquer gesto voluntário: a decadência do indivíduo faz parte do declínio de um modo de vida que tornou-se incompatível com os novos tempos. Os campos sem cercas – como aqueles onde “pastava” o “gado de osso” do piá – deram lugar aos alambramentos, aos potreiros e aos corredores; assim como na Inglaterra do século XVI descrita por Marx, os cercamentos expulsam os homens e os conduzem à força no rumo das cidades, para as periferias que se convertem em cinturões miseráveis. O “gaúcho a pé” de Cyro Martins retratou, antes que os historiadores e cientistas sociais o fizessem, um Rio Grande que não costumava freqüentar a literatura, e que não era exibido como modelo.


Karl Marx uma vez disse que na obra ficcional de Charles Dickens ele apreendera muito mais sobre a realidade do capitalismo inglês que nos tratados científicos contemporâneos; seu grande parceiro Friedrich Engels se referiu de forma semelhante sobre os livros de Honoré de Balzac e sua capacidade de compreensão da burguesia francesa; o grande sociólogo Agustín Cueva, referência obrigatória para qualquer americanista, afirmou que a leitura de cada obra de sociologia, de economia ou de história era seguida pela de três romances! Certamente nem todas as produções literárias têm esta dimensão e este valor. Neste sentido, pode-se afirmar que a obra de Cyro sobre o Rio Grande da campanha, sua trilogia do “gaúcho a pé” e nela este Sem Rumo que se torna septuagenário, cumpriu seu papel de revelar a todos uma realidade que faziam encobrir.


*MARTINS, Cyro. Sem Rumo. Porto Alegre: Editora Movimento, 1997.

** Professor Adjunto do Departamento de História e do PPG em História da UFRGS.




NOTAS:

1. Canções premiadas no principal festival de música gauchesca, a Califórnia da Canção Nativa, de Uruguaiana, são muito eloqüentes: “Esquilador”, “Pago Perdido”,  “Desgarrados”, são alguns exemplos.

2 Não é casual que Julio de Castilhos tenha proposto um “Dia do Gaúcho”, justamente no 20 de setembro! Escritores, historiadores, folcloristas, músicos etc tiveram seu papel na construção de um Rio Grande do Sul com características muito próprias, diferentes das demais províncias.

3. São muito expressivos os versos finais do poema “Eis o Homem”: “Eu sou maior que a história grega! Eu sou gaúcho, e me chega, pr’a ser feliz no universo!”

4 Neste sentido, são fundamentais as pesquisas de Paulo Afonso Zarth, Helen Osório, Luiz Augusto Ebling Farinatti, Tiago Gil, Gabriel Berute, Mariana Flores da Cunha Thompson Flores, Arlene Guimarães Foletto, Graciela Bonassa Garcia, entre alguns.