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Carta de Flávio Aguiar ao receber homenagem da Congregação | Imprimir |  E-mail

Ao Ilmo. Sr. Prof. Dr. Gabriel Cohn
Diretor da FFLCH da USP
Aos 28 de setembro de 2006


Meu querido amigo

e, por teu intermédio, minhas queridas amigas e meus queridos amigos.

Escolhi dirigir-te esta carta, escrita com antecedência, por duas razões. A primeira foi a tentativa de garantir, pela leitura, que a emoção não me embargue a voz. A segunda foi a de proporcionar, regimentalmente, que as minhas palavras sejam registradas na ata da sessão regular da Congregação que se seguirá a esta homenagem que tua generosidade e a dos demais tornaram possível.

Este é o momento culminante de minha vida de professor e de minha carreira na Universidade de São Paulo. Nada se iguala a este reconhecimento por parte de meus pares, e aqui eu incluo os estudantes e os funcionários, ao lado de meus colegas docentes.

Além de uma homenagem pessoal, que me comove, vejo aí também uma saudação aos valores democráticos que acabaram sendo os de minha geração e que aprendi a cultivar e ampliar conceitualmente e na prática no convívio, nestes 37 anos, com meus e minhas colegas aqui nesta Faculdade que se fez a minha Casa, contando o tempo de estudante, e há 32 nesta Congregação que foi nosso gabinete comum de trabalho e dedicação.

Não tomo geração no sentido genérico de vivência num período histórico expresso numericamente.

Éramos jovens estudantes e/ou jovens professores em 1964 e 1968, muitas vezes ambas as coisas. Vimos o futuro ser roubado a todo um povo pela ditadura mais infame que se abateu sobre a vida brasileira, porque acalentada e acolhida por muitos que se diziam e ainda hoje se dizem liberais. Muitos de nós pagaram com a vida a ousadia de se rebelarem ontra ela. Outros com o exílio, ou com a perda de meios de subsistência e direitos. Todos pagamos com a perda, durante pouco mais de duas décadas, de muito de nossa alegria de viver, cicatriz que até hoje empana nossos melhores sorrisos e nossas mais sonoras gargalhadas.

Mas muitos sobrevivemos, e continuamos fiéis aos princípios que animaram nossas aspirações e nossas lutas. Já maduros, assistimos a derrocada da ditadura, o restabelecimento da democracia, ainda que com as limitações emanadas pela injustiça estrutural da nossa sociedade, uma das mais iníquas do mundo.

Agora, ao adentrarmos o terceiro milênio da era cristã, compartilhamos as perplexidades com as gerações mais antigas e as mais novas. O mundo mudou, não como queríamos, nem sempre para melhor. Mas podemos dizer que para nós e pelo menos para o consenso geral, a liberdade tornou-se um valor necessário, e as desigualdades extremas, embora continuem existindo, tornaram-se insuportáveis para uma consciência que se queira informada, ilustrada, coerente e consistente do ponto de vista ético, não era assim. Lembro-me do tempo em que a pobreza e a miséria eram ditas "da vontade de Deus", enquanto a liberdade era vista como um excesso no caso de povos pobres. É verdade que hoje o Deus mercado justifica para muitos as injustiças e a compressão de direitos basilares da civilização para esmagadoras e esmagadas maiorias em muitos países, inclusive nos centrais do capitalismo. Mas os que nos erguemos contra essas injustiças não somos mais uma minoria derrotada, como ficamos nos momentos mais sinistros da ditadura assada.

Ao longo de minha passagem por esta Congregação nestes anos todos, a partir de 1974, aprendi com meus colegas a fazer da democracia um valor permanente. Não uso a expressão "universal" porque ela ficou reservada para o elogio de uma das formas da democracia, a liberal e de inspiração burguesa que, sem dúvida faz parte da experiência democrática, mas que não é a única. Digo "permanente" porque para muitos de nós a democracia era vista como ma passagem, de uso tático contra os opressores daquele momento, mas assim que nos livrássemos deles poderíamos suspender, ainda que momentaneamente, as liberdades democráticas, porque nossos valores seriam universais.

Nossa Congregação, nossa Faculdade, estão longe de serem plenamente democráticas. Podemos e devemos procurar aperfeiçoa-las. Sabemos, por exemplo, que aqui a representação de funcionários e estudantes está subdimensionada, podendo haver discordâncias quanto ao número adequado, o mesmo acontecendo em relação às categorias docentes. Mas ao longo desses trinta e tantos anos de história pude ver esta Congregação construir, em que pesem as limitações, e pelo esforço comum, a sua legal pela imposição da ditadura de 1964 e por uma reforma universitária feita nos marcos do autoritarismo que, se modernizou insituições, recusou-se a instituir ou simplesmente cerceou a representatividade em seu interior.

Hoje, podemos dizer com tranqüilidade que a nossa Congregação se legitimou, na prática, como o órgão soberano de nossa Faculdade, e que assim deve continuar sendo, para que não destruamos o sentido de nossa própria história. E o que possibilitou essa conquista, que é de toda a Faculdade, foi a qualidade dos debates aqui dentro, que foram se ampliando, se fizeram significativos quanto àquilo que é a matéria mesmo de nossa Faculdade e da Universidade, que é a formulação de um pensamento crítico, rigoroso e ao mesmo tempo generoso quanto à democratização do saber.

A ideologia da sacralização do Mercado como panacéia universal veio acompanhada, nas últimas décadas, por um olhar que vê nas instituições universitárias meras prestadoras de serviço. Isto as induziu à busca desefreada dos superávits de produtividade, e do crescimento do seu Produto Interno Bruto, sem discussão dos aspectos qualitativos desse crescimento. Essa tendência arrisca fazer nosso Produto cada vez mais Interno, voltado apenas para as estatísticas competitivas, e cada vez mais Bruto, apesar da aparente sofisticação.

Felizmente tais tendências não encontraram acolhida fácil em nossa Faculdade e ela, certamente ao lado de outras institutições, como a nossa valorosa Adusp, continuou sendo um foco de pensamento voltado para outra universidade possível. A presença do debate de alternativas (que hoje deveria ser intensificado) em nossa Congregação deu a ele indispensável foro institucional, contribuindo de modo decisivo para que nossa Faculdade não renegasse sua tradição ilustrada e de pensamento radical (como diz Millor Fernandes, "livre pensar é só pensar"). Essa tradição, que é sua razão histórica de ser, abre-a para as constelações totalizantes (e não totalitárias) desse pensamento e para o medir-se com as vicissitudes históricas que a emolduram, nem sempre favoráveis, mas sempre instigantes para novas vivências e investigações.

Isto não quer dizer que devamos cair na armadilha da auto-contemplação e da fixação num passado que deve ser visto sim, com reverência e respeito, mas sem impedir que nos aprestemos para os novos desafios do futuro.

É significativo que as Secretarias de Direitos Humanos, a Federal e a Estadual, num belo movimento supra-partidário em tempo de eleição, tenham comparecido ao prédio da Maria Antônia para a cerimônia que inaugurou oficialmente a coleta de material visando a constituição de um banco de dados genéticos de familiares de desaparecidos políticos. Este mesmo fato deve nos impulsionar para aceitarmos os desafios do presente e do futuro, que são os de intensificar nos espaços das universidades públicas a atualização dos valores que nos animaram buscando melhores políticas de extensão, intensificar a indissociabilidade entre ela, o ensino e a pesquisa, e a participação mais ousada na discussão de políticas públicas em relação à produção, apropriação e disseminação do conhecimento e do saber.

Vivi vários momentos memoráveis nesta Congregação. Na construção da sua legitimidade, houve um marco zero de iniciação.

Rememorando-o quero homenagear todos os outros. Refiro-me ao momento, no hoje longínquo ano de 1975, em que se espalhou por esta universidade a notícia da morte de nosso colega Vladimir Herzog, professor da ECA. No dia seguinte ao de sua morte estávamos reunidos aqui mesmo nesta sala, com a presidência do prof. Eurípides Simões de Paula. Vínhamos de recentes acontecimentos traumáticos: tentativas de expulsão de professores, mas felizmente com as primeiras reações por parte de colegas da Casa, e a literal deposição de nosso diretor, prof. Eduardo de Oliveira França, pelo Secretário de Segurança Pública do Estado, Erasmo Dias, porque, entre outras razões, ele permitira a presença do prof. cassado Ângelo Ricci numa banca. O prof. Ricci de quem, aliás, tive a honra de ser aluno no Rio Grande do Sul, fora aposentado compulsoriamente por recusar a colaboração com a ditadura enquanto era diretor da Faculdade de Filosofia da UFGRS.

Em meio à Congregação, uma multidão de alunos e professores invadiu a sala, exigindo que nos pronunciássemos sobre o assassinato do professor Herzog. À frente vinha a profa. Maria Isaura Pereira de Queiroz. Seguiu-se um diálogo veemente entre ela e o prof. Eurípides, que dizia não querer colocar em risco a sobrevivência da Congregação e da Faculdade. Ao final, concertou-se que haveria pronunciamentos de quem quisesse se manifestar sobre o caso, e que o teor de tais manifestações seria levado ao Conselho Universitário, o que de fato acabou acontecendo. Foi com estas pequenas frestas de liberdade, num momento de arbítrio e repressão, que o espírito da busca da legitimidade enraizou-se e floresceu nesta Congregação, para dela, espero, nunca mais sair.

Antes de encerrar quero eu mesmo fazer algumas homenagens. Considero-me afortunado, pois tive mestres e colegas extraordinários. Não poderei mencionar todos. Cada nome que eu disser representa toda uma coleção de nomes cuja contribuição para minha vida foi extraordinária. Assinalo aqui a presença da Iole, que me acompanhou durante tantos anos neste tempo de USP.

Também meu irmão Rogério aqui está, vindo especialmente de Porto Alegre para esta solenidade. Agradeço as palavras generosas dos membros da mesa, professores e meus amigos Sedi Hirano (que está aqui em seu nome e em nome da sra. Reitora, Profa. Suely Vilela), Gabriel Cohn, Sandra Nitrini, Zilda Yokoi, à Marlene Petros Angelides, que representa os funcionários, ao José Clóvis, Secretário Acadêmico e por intermédio deles agradeço a generosidade de todos os membros da Congregação que me propiciou este belo momento em minha vida.

Agradeço ainda a presença do meu querido amigo prof. Boris Schnaiderman, nele saudando a todos os presentes. Como amigo e mestre para mim em conjugar vida acadêmica e militância política, lembro o professor Antonio Candido.

Menciono também a profa. Walnice Nogueira Galvão, minha orientadora ontem, hoje e sempre. Dentro os que foram meus mestres e depois tornaram-se meus amigos, lembro o prof. João Alexandre Barbosa, recentemente falecido. Faço também menção a meus colegas de Literatura Brasileira, entre eles José Aderaldo Castello, Alfredo Bosi, o pessoal do Beco do Theatro, herança que temos do querido prof. Décio de Almeida Prado. Lembro o pessoal do Centro Ángel Rama, em cuja secretária Marlene Petros Angelides homenageio todos os funcionários desta Casa.

Quanto aos que foram meus colegas de formação e depois de docência, homenageio todas e todos lembrando aquele que, para mim, foi e permanece o exemplo que eu procuro seguir, o querido prof. João Luís Machado Lafetá.

Dentre os mestres que tive antes de vir para a universidade, como estudante, quero lembrar dois em nome de todos.

O primeiro é o Padre Valter Seidl, meu professor no Colégio Anchieta, em Porto Alegre. Tivemos a honra de sermos expulsos ambos, eu como aluno e ele como professor, pelo nosso esquerdismo contestador, ao fim do ano de 1963. O Padre Valter veio para o ABC, sediando-se na paróquia do Carmo. Por isso, tornou-se o capelão do Sindicato dos Metalúrgicos então de São Bernardo, hoje do ABC, podendo acompanhar acontecimentos extraordinários que mudaram a história do Brasil, e deles participar, trazendo-lhes inclusive a bênção do Cristo libertário que era o seu.

A segunda é a professora Gladys Colburn, da Burlington High School em Vermont, nos Estados Unidos, cujas aulas de literatura inglesa, em 1964 e 1965 me convenceram que meu destino era o das Letras, e não o da Medicina, como eu pensava. Acho inclusive que nós deveríamos aprovar uma moção de louvor a ela, pela quantidade de vidas que salvou ao impedir que eu me tornasse médico.

Por último, registro que recebi de meus colegas mais próximos a carinhosa reprimenda de que me aposento sem ter feito sequer a livre-docência. Aceito-a, mas se não peço concordância, demando solidariedade. Apenas para registro menciono que no momento adequado para a livre docência, escrevi um romance, com 5 anos de pesquisa e 2 de escritura. Aquele gesto prenunciava já o gesto presente, que me traz aqui, de construção de projetos, sempre em torno da palavra, que, se permanecem inspirados nos valores desta Casa, nela já não se contém.

Um dos livros fundamentais de minha formação foi Narciso e Goldmund, de Hermann Hesse. A história se passa na Idade Média.

Narciso e Golmund vivem num convento, onde o primeiro é o mestre e o segundo o discípulo. Entre eles desenvolve-se uma amizade imorredoura. Mas são muito diferentes. Narciso, que é filósofo, permanece no convento; Goldmund, que é escultor, aventura-se pelo espaço e pelo tempo, testemunhando o fim de um universo de valores que antes eram julgados eternos, e o nascimento de outro, cujos contornos são indefinidos. Traz para o mestre notícias desses fatos extraordinários, tanto em suas narrativas como nas cicatrizes de amor e ódio que povoam seu corpo, ao fim de cada viagem.

Não estou ironizando nem criticando meus colegas. Narciso não é narcisista. Pelo contrário, quem busca se reconhecer na imagem que os outros (sobretudo as outras...) lhe devolvem é Goldmund. Narciso é apaixonado pela clareza do pensamento, em que vê um

espelho onde se encontram as aspirações da criatura e os desígnios implantados pelo Criador na sua Criação rebelde. Narciso aspira portanto à percepção do ser e da totalidade. Goldmund se entrega de todo à precariedade da história, mergulhando na vertigem sôfrega das passagens pelo tempo.

Meu querido amigo Gabriel, minhas amigas, meus amigos. A chegada à maturidade impõe prudência, mas inclusive a prudência de não nos furtarmos às ousadias necessárias, como a tua de merecidamente se tornar o diretor de nossa Casa. Essa maturidade impõe a busca da lucidez para reconhecermos qual a natureza das pulsões que movem nossos caminhos e definem nossos valores e trajetórias. E hoje, com serenidade, reconheço que minha admiração fica com Narciso, mas meu destino é o de Goldmund.

Muito obrigado.

Prof. Flávio Wolf de Aguiar