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A leitura da literatura no cruzamento das histórias culturais | Imprimir |  E-mail

O confronto cultural provocado pelo encontro de várias culturas, portadoras de valores e de tradições distintas, mas reunidas num espaço geográfico comum, é sem dúvida uma ocasião oportuna para que se façam algumas reflexões sobre o papel da literatura na história e na sociedade. Durante o período formalista, se havia abolido a idéia de um elo entre literatura e "real" porque nós nos tínhamos deixado convencer de que as dificuldades que surgem imediatamente quando se questiona a relação com o referencial impedem todo vínculo sólido da ficção ao "real" que ela deveria reconstituir. A metáfora do espelho transportado ao longo dos caminhos pelo abade de Saint-Réal na obra O Vermelho e o Negro, tanto tempo utilizada, não sobreviveu no entanto legitimamente à análise crítica dos realismos ficcionais, qualquer que seja sua origem.


O crescimento da figura do leitor iria modificar este dado e impor ao debate um objeto que havia estado até então amplamente oculto: o real da leitura, o real do leitor e de seu mundo.


Este novo objeto do saber coloca em seu centro a leitura, a partir do momento em que concordamos em dizer que o próprio da literatura é produzir uma experiência estética da qual devemos falar agora.

A leitura, confronta no segredo da intimidade psíquica o mundo do texto à experiência vivida do sujeito leitor. Ela coloca em marcha um processo de analogia e de alegoria que traduz (ou transpõe) no contexto do sujeito implicado pela leitura, o que é expresso no contexto da obra.


O próprio desta capacidade de criar alegorias do processo estético de leitura está ligado à dialética intrínseca à cultura, de um lado social e quotidiana, que convida o sujeito à se projetar nos personagens ou nas situações - e de outro imaginária, independente de toda referência, domínio aberto aos jogos mais livres do pensamento

A leitura do texto histórico ou literário entra no movimento desta dialética de onde emergem os efeitos sociais da literatura, que Paul Ricoeur chamou justamente de refiguração.


Eu vejo duas grandes tendências: construir uma dialética nova no âmago da atividade analógica de refiguração (trans-formação, re-simbolização, re-mitificação, etc...) segundo as condições da alegorização. A atividade de leitura é na verdade eminentemente social. Ela o é pelo aprendizado que todo leitor enfrentou em todos os ciclos de sua formação e de sua escolaridade. A língua, e portanto as formas literárias, são transcendentes à toda experiência feita à partir dela e esta transcendência, memória de atos de fala, de escritura e de conformação narrativa, carrega um saber social muito rico e complexo que se impõe ao leitor com a força de uma tradição incontornável. Sem dúvida ela será de algum modo ultrapassada pelo leitor como ela o é pelo escritor, mas seu peso ainda assim determinará as formas mesmas de sua novidade, pelo menos negativamente.


Com relação a esta transcendência e ao jogo da liberdade à qual ela dá espaço numa sociedade baseada nos valores individualistas e democráticos, a leitura, como atividade e como experiência, posiciona o leitor ao mesmo tempo como sujeito individual e como sujeito coletivo. Ele é EU e cidadão, sábio e político, ele é sempre e simultaneamente o Mesmo e o Outro desta teatralidade social da língua, do texto e da literatura. Como toda atividade, a atividade de leitura constitui no entanto uma tomada de decisão. Em teoria estas escolhas podem ser polares, isto é, apagar a dialética e privilegiar um dos pólos: tudo trazer à si, tudo afastar na alteridade do texto. De fato, o processo deve ser principalmente visto sob a ótica da categoria que sintetiza o Mesmo e o Outro da figuração: a analogia. A alteridade se encontra então, de um modo ou de outro, aplicada ao Mesmo, pois Eu é de alguma maneira análogo aos Outros. O inferno é talvez os outros, mas o Eu está completamente habitado deste inferno, ele fala de mim, ele me fala no âmago mesmo da minha solidão. E a linguagem não é a última a conduzir esta alteridade no fulcro ambivalente do Mesmo. Aí reside todo o poder do verossímil (jogo de palavras em francês: vrai=verdadeiro. semblable=parecido).


A experiência estética é totalmente construída por este confronto entre uma alteridade - forma de narração, modos de expor, tipos de comportamento, referencial desconhecido ou estrangeiro, etc.. - que o sujeito leitor só pode aplicar a ele mesmo. Contrariamente ao entendido (conhecedor), o leitor não se encontra em geral em situação de colocar à distância quem lhe é proposto. O distanciamento é no entanto um de seus recursos, ele pode constituir uma estratégia para uma alteridade que se tornou insuportável ou irreconhecível em seu mistério. O leitor pode fazer o jogo do conhecedor (sábio). O que ocorre mais seguidamente entretanto - compreendendo-se que nós mencionamos aqui um leitor que não é um especialista, isto é, alguém que não é essencialmente um re-leitor - é ele se comportar menos como sábio que como pessoa. Ele será então este rosto/máscara que percorre o discurso do Outro, proferido mas não elaborado, este rosto que tomará os traços de mil personagens, que será Robinson, Rastignac, Marcel, Zazie ou Nekrassov.


É neste momento verdadeiramente que o indivíduo entra na história. Na História com um grande H, pois através da literatura o leitor encontra não somente um alter ego, mas também o quadro da construção histórica do ego. Mas também na história com um "h" minúsculo, tomando um lugar no desenrolar da temporalidade, por analogia com as formas que dão à narração este caráter exemplar que resume a biografia.


Com isto eu pretendo salientar que a leitura, particularmente a da narrativa romanesca, constitui uma das estruturas construtivas essenciais da relação com a história, ela é consequentemente o fundamento da própria cidadania, na medida em que esta está fundamentada simultaneamente no indivíduo construído nas formas da autonomia e da liberdade, mas também sobre um ."socius" que se encontra um lugar nas formas da solidariedade e da consciência social e coletiva.


A literatura ocupa na elaboração da história, considerada desta feita como a modalidade temporal do elo social, - este elo que une as gerações e os indivíduos -, um papel essencial porque somente ela permite que seja representado, no plano imaginário e ficcional, o teatro do tempo e do vínculo social. Sem a possibilidade de representar experimentalmente estas relações na atividade fantasmática individual, a sociedade não teria como regulá-las nem como geri-las, como o constatamos cada vez que esta elaboração simbólica se faz ausente. É neste sentido, eu creio, que podemos afirmar que a teoria do discurso histórico e do discurso literário nos auxilia a compreender melhor a função social, o porquê de nossa literatura como entrada dos indivíduos e das sociedades na história.

Jacques Leenhardt