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GOOOOOL DO OUTRO LADO DA FRONTEIRA* | Imprimir |  E-mail

Glória Kirinus


Sempre que ficava de ouvido colado ao pé do rádio, todo mundo lá em casa estranhava o meu interesse pelo jogo de futebol. - Desliga esse rádio, falava meu pai. Se fosse teu irmão, faria sentido, mas você... menina? - Por que você não escuta o programa de contos de fadas que é bem mais interessante, dizia minha mãe, tentando amenizar a recriminação machista do meu pai. Sim, esse programa dominical de contos de fadas era pra lá de interessante... Mas, oras bolas, essa língua que chegava ao meu país, do outro lado da fronteira, através do radialista brasileiro era, para mim, um campo embolado de surpresas.


Devia entender pouco do que o radialista brasileiro relatava sobre o jogo. Mas quem diz que eu estava interessada em saber com quantos gols o time ganhador festejaria sua vitória?  Não era isso, não. O que eu gostava mesmo de ouvir, por trás das proibições e por trás do próprio jogo de futebol, era essa língua brasileira movida a botes e rebotes que sabiam avançar e recuar pelo campo com passos de dança.


Como não esquecer do mundo e ficar ali, por horas, ouvindo partidas completas do jogo de futebol, se pela primeira vez, ouvia uma língua com tanto jeito? Uma língua que sabia divertir-se alternando giros rápidos, com demoradas pausas, como se fosse luta... Uma língua ágil que sabe subir e descer, com altos e baixos, como se fosse canto. Lembro que, a primeiro ouvido, percebia seus requebrados e suas redondas redondilhas de pés quebrados, seus trejeitos de joelhos e tornozelos para lá de bem gingados. No ar, ficavam dançando por bom tempo, seus movimentos sinuosos, ondulados que, com cuidado, eu desenhava e pintava no ar.


Claro, língua tem corpo, tem cor e tem ação. Com o coração, decorava aquelas palavras risonhas, tão cheias de leiros goleiros, de neiras maneiras, de teios escanteios  e gooooooool,,, eirolas bandeirolas dançavam no ar, rimando com mar. Martírio amado a espera do grito glorioso; martírio amado pelo jogo bem armado no campo; doce martírio amador da torcida que torce, torce e, finalmente, relaxa na jogada imprevista feito relâmpago versátil. Extra-sístole,  extra-diástole de tirar o fôlego de qualquer verso e até de qualquer reverso!


Amar o jogo ou armar o jogo? Milagre! Uma única letra muda o sentido do mundo. Do mundo ou do mudo? Do jogo ou del juego? Descobria, descobrindo-me, o fascínio das palavras. Qual seria o meu ofício no jogo da vida? Pai, existe o ofício de palavreira???


Bela equipe de consoantes saltitava na voz do radialista. BB rr aa ss ii ll, ele gritava eufórico, armando no seu jogo de letras uma alternância insólita de consoantes e vogais. O eco dessa voz me acompanhava por horas e horas. Quem arma esse jogo tão perfeito entre consoantes e vogais para dar origem à palavra? Mãe, existe o oficio de palavreira???


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Como se fosse um segundo tempo de jogo, o acaso , sem nenhum aviso prévio nem preparo físico ou espiritual, de um arremesso me transportou para o Brasil. Cheguei tateando palavras novas no campo local. Esbarrei com algumas, acolhi outras, reconheci muitas, recriei quantas.


Me pegaram de surpresa os nomes dos dias da semana. Com o sábado e o domingo me dei muito bem, graças ao radialista brasileiro. Mas tropecei de cara com a segunda-feira, no lugar de um lunes lunero. Foi difícil convencer-me que era normal para todos os brasileiros receberem, no calendário, a chegada de uma segunda-feira apressada, atropelando, sem nenhum respeito, a primeira - feira. Mas  o pior, foi constatar, a seguir, que a terça-feira tomava o lugar da segunda-feira e a quarta-feira tomava o lugar da terça- feira e assim, sucessivamente. Solitariamente indignada, com tanto atropelo, hoje, ainda conspiro em vão pela recuperação da primeira- feira.


Mas isso foi no começo. Atualmente, em plena copa do mundo de 2002, vejo com surpresa que o país inteiro acorda por volta das três horas da manhã para assistir o jogo. No começo não acreditei. Ah, não vão acordar, não. Pelo menos em casa, não deve acontecer isso, nem na vizinhança, nem no próximo bairro. Reconheci que ainda não conheço este país que me surpreende. Não é que todo mundo acordou, torceu, e gritou gooooooooooool, assim, unindo milhares de vozes?


Como não lembrar daquele radialista brasileiro, tão milagreiro, que me permitiu conviver por longas temporadas com algumas palavras inesquecíveis, assim como Maracanã, Corcovado, chuteira, zagueiro, cotovelo, Pixinguinha .... Quando cansava delas, lembro que as trocava por outras palavras recém aprendidas: Pelé, Ipiranga, moleque, capoeira, songamonga .... Não sei se a troca de cada nova equipe de palavras, revezando sentidos, sonoridades e imagens, obedecia a secretos ciclos do tempo ou misteriosos apelos do temperamento. Mas sei que me nutriam e, como estranha medicina, animavam meus sentidos.


Eu compreendia, sim,  essa língua tão diferente da minha e, ao mesmo tempo, tão semelhante. Eu compreendia seu rebolado e todo esse seu jeito no trato, no  jogo, na ginga. Sim, claro que eu compreendia e, quem sabe, até suspeitava que um dia ousaria ensaiar jogadas, em campo alheio, com essa língua brasileira.


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Glória Kirinus
é Doutora em Teoria e Literária e Literatura Comparada pela FFLCH da USP.Professora da PUC do Paraná, poeta e  autora de inúmeros livros de Literatura infanto-juvenil.


* KIRINUS, Glória. Aranha castanha & outras tramas. Curitiba, Nova Didática , 2002, p.33.