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RELENDO O POEMA ANTÔNIO CHIMANGO - Léa Masina | Imprimir |  E-mail

 

 

O poema “Antônio Chimango”, escrito pelo médico, jornalista e político Ramiro Barcellos sob o pseudônimo de Amaro Juvenal, é um exemplo quase didático dos deslocamentos da crítica literária quando se depara com um texto de grande impacto social junto aos leitores. Publicado em 1915, o “poemeto campestre” satirizava a figura do poderoso Governador de Estado, Borges de Medeiros, que se tornara adversário de Ramiro Barcellos durante as muitas marchas e contramarchas da política sul-rio-grandense na passagem do Império para a República. A formação de partidos políticos, as adesões e as desistências de apoiadores na formação das legendas partidárias, que oscilavam entre liberais e republicanos, definiram a circunstância inicial em que o poema foi escrito e lido.

 

A história do Rio Grande do Sul, todos sabemos, é marcada por uma sucessão de guerras, algumas na defesa das fronteiras meridionais, outras na definição das dominâncias políticas locais. Dentre tantas contendas importantes, uma das mais referidas é a Revolução Federalista de 1893, que eclodiu quando os chimangos, sob a tutela de Júlio Prates de Castilho, enfrentaram os maragatos, seguidores do liberal Gaspar Silveira Martins, o “Tribuno do Império”. Os liberais, conservadores, disputavam a liderança política do Estado com os republicanos, que eram positivistas. Nesse quadro de confrontos, gerou-se o poema “Antônio Chimango”.

 

Jornalista combativo e de forte presença nos meios políticos e periodísticos do Estado e do país, Ramiro Barcellos encontrou, na sátira política, o modo de denunciar e tornar visíveis as manobras e os conchavos que asseguravam a permanência dos castilhistas no poder através de farsas eleitorais. Essa manipulação política, silenciada pela força, está representada no poemeto campestre, eis que o autor cria uma metáfora do Estado e de seu Presidente Castilhos na configuração da Estância de São Pedro, pertencente ao Coronel Prates e seus empregados e peões. Esse é o cenário para a biografia do Chimango, que será cantada através de cinco “rondas”, cinco partes do poema compostas por duas vozes narrativas. A primeira, cujos versos estão grafados em itálico, pertence a um narrador que descreve o ambiente da estância, seus costumes, incluindo os afazeres, a alimentação, a circunstância de cada “ronda”, ou seja, de cada vigília de gaúchos, possibilitando tempo e espaço narrativo para uma segunda voz. Essa, grafada em letras comuns, pertence ao tio Lautério, mulato velho mui sério,/Cria de dona Maruca.


Para avaliar a presença do “Antônio Chimango” nas letras rio-grandenses, é preciso recuperar alguns elementos que formam a fortuna crítica do poema. Não foram poucos os que se dedicaram a estudá-lo e interpretá-lo depois de seu ingresso no chamado “mundo das letras”, o que veio a ocorrer, de modo mais intenso, a partir da segunda metade do século XX. Podem-se citar Augusto Meyer, Guilhermino César, Manoelito de Ornelas, Mansueto Bernardi, Raymundo Faoro, Sérgio da Costa Franco, Cyro Martins, Carlos Reverbel entre os primeiros intelectuais que se ocuparam do poema. Porém o fato de continuarem a surgir outras leituras ao longo de noventa anos mostra a vitalidade e a força do texto literário, que superam as intenções satíricas iniciais.

 

Foi Maria Helena Martins que, ao publicar, em 1980, o ensaio crítico Agonia do Heroísmo, propôs ler o poema em sua complexidade, como articulador de um momento histórico crucial para o Rio Grande do Sul, mas também como um discurso literário construído com consciência por parte de seu autor. Tomando um dos motes instigadores de Augusto Meyer em Prosa dos pagos (1960), escrito vinte anos antes, Maria Helena investiga a existência de “dois poemas num poema só”, com relação às vozes das rondas, ao mesmo tempo em que analisa a temática subjacente à sátira e o ponto de vista narrativo. Além disso, examina o contexto de recepção da obra, concluindo que o efeito imediato da sátira política assegurara ao poemeto rápido sucesso junto aos leitores do povo. Por outro lado, o reconhecimento da qualidade literária do texto coincidiu com seu esquecimento no âmbito popular, eis que o poema vai perdendo, ao longo do tempo, sua motivação política. Maria Helena Martins questiona “até que ponto o exame da crítica e a pesquisa da opinião pública reforçariam essas suspeitas”. E encerra o ensaio de modo aberto, sugerindo novas questões: “As características satíricas, a transparência de alusões ao contexto real e a sua utilização panfletária determinariam um risco a quem se dispusesse a abordar a obra?”. E, ainda: “Seria a crítica sul-rio-grandense elitista a ponto de ignorar um texto literário por ele ser do gosto popular?”. A partir desse caminho percorrido, pretendo inserir estes breves comentários.

 

A primeira expectativa do leitor que se depara com um texto novo é sentir se gosta ou não do que está lendo. Antes de desenvolver qualquer metodologia de abordagem teórica, é preciso entrar em sintonia com o texto e dialogar com ele. O “Antônio Chimango”, desde a primeira leitura, soa para nós, gaúchos, como algo próximo pelo ritmo nitidamente marcado dos versos que compõem as sextilhas. Esse ritmo, respiração interna do poema, repete-se e ecoa em duas vozes, formando as rondas. A presença de um metro popular, como o heptassílabo, ou redondilha maior, fácil de apreender porque muito conhecido, remete o leitor à memória afetiva, formadora de uma identidade regional: trata-se do mundo rural no tempo das estâncias. Ali se encontram a lida previsível, os hábitos e costumes campeiros a definir essa simetria e calma, cuja performance é refeita ficcionalmente em duas vozes: a do narrador, que descreve, e a do tio Lautério. O velho cantador chega com seu bandônio, atendendo ao chamado do piá taludo que o desafia para contar uma história:

Um piá já bem taludo,
No ponto de assentar praça,
Disse ansim, meio por graça:
“Isto é ronda relambória,
Quem quer contar uma história
Por um trago de cachaça?”

Enquanto a botija de cachaça circula, tio Lautério se levanta, e todos param para escutá-lo:

Nos cerros de Caçapava
Foi que viu a luz do dia,
À hora d’Ave Maria,
De uma tarde meio suja;
Logo cantou a coruja
Em honra de quem nascia.

Veio ao mundo tão flaquito,
Tão esmirrado e chochinho
Que, ao finado seu padrinho,
Disse espantada a comadre:
“Virgem do céu, Santo Padre!
Isto é gente ou passarinho?”

A regularidade da cantiga, assegurada pelo ritmo poético, acentuando sempre a sétima sílaba, é característica das canções populares e das quadrinhas em geral. Considerada pelos estudiosos como herança da lírica portuguesa, já se encontrava presente nas cantigas medievais. No entanto não se pode esquecer que, em suas origens, Portugal e Espanha formavam uma só Península Ibérica. De outra forma, seria difícil explicar a presença da redondilha maior nos cielitos do uruguaio Bartolomeo Hidalgo (1788-1822). Leia-se o início do poema “El gaúcho de la guardiã Del Monte”:

Ya que encerre la tropilla
Y que recogi el rodeo,
Voy a templar la guitarra
Para explicar mi deseo
Cielito, cielo que si,
Mi asunto es un poco largo;
Para algunos será alegre,
E para otros será amargo.”

Do mesmo modo, a redondilha maior articula os versos do poeta argentino Hilário Ascasubi (1807-1875), quando escreve “Paulino Lucero o los gaúchos Del Rio de la Plata cantando y combatendo contra los tiranos de lãs Repúblicas Argentina y Oriental del Uruguay” (1839-1851). O poema é um libelo contra Rosas e Oribe. O fragmento abaixo foi escolhido a esmo:

“No, amigo, eso sí que no.
Yo, aunque soy un pobre gaucho,
me creo igual al mejor,
porque la ley de la Patria,
como las leys de Dios,
no establece distinciones
de ninguna condición
entre el que usa chiripá
o el que gasta casacón.
Todos os hombres iguales
ante la justicia son,
la cual tan sólo distingue
y le da su protección
que me creo en cualquier parte
del todo merecedor.”

Em Santos Vega el Payador, editado em Paris em 1872 , Ascasubi tem consciência do seu processo criativo e diz, na carta dirigida ao leitor, que seu livro não é apenas el eco de los cantos del Gaúcho ou una violación de las reglas literarias de su lenguaje. A intenção do escritor é homenagear a Pátria. Mas, como em Hernández, o herói de Ascasubi es um malevo capaz de cometer todos los crimenes, y que dió mucho que hacer a la justicia. Ascasubi, então, dá a voz ao payador Santos Vega, espécie de “mito” de los paisanos, que también he querido consagrar. E, assim, pode narrar a vida da estância e de seus habitantes, descrevendo os costumes mais peculiares da campanha com alguns traços da vida na cidade. Nas páginas de Santos Vega o Los Mellizos de la Flor, o payador descreve o pampa, a tapera, a laguna, os costumes locais, mediante descrições e diálogos com interlocutores locais e forasteiros. E, além da afinidade temática com a chamada gauchesca brasileira, o escritor também emprega a redondilha maior. Leia-se o fragmento em que descreve a Estancia de la Flor:

“Tal era la estância grande
que don Faustino pobló,
conocida allá en su tiempo
por la estancia de la Flor,
en cuyo sitio, hace poco,
ha que un día estuve yo
contemplando una tapera
en triste desolación.”

Também Estanislao del Campo, no Fausto, ou mesmo José Hernández, no seu Martín Fierro, confirmam o uso da redondilha como verso dominante. Muito embora esse uso não seja suficiente para definir o influxo platino na construção do “Antônio Chimango”, a popularidade alcançada pelo poemeto campestre, na época em que foi posto a circular, obriga a considerar a afinidade existente entre essa metrificação comum aos payadores das regiões fronteiriças, de onde proveio, por certo, a inspiração para os poetas urbanos criarem a gauchesca platina. Vega-se, pois, que a afinidade entre o “Antônio Chimango” e a gauchesca platina não se resume apenas à temática do gaúcho da estância, mas também à forma do verso. Como se lerá adiante, essa proximidade refere-se também às estrofes escritas em sextilhas .

 

Do ponto de vista temático, a formação de um sentimento criollo caracteriza esse tipo de texto literário. No caso especial do Martín Fierro, como examinei em outros ensaios, o poema circulou inicialmente no meio popular até que Leopoldo Lugones, ao publicar El Payador, transformou-o na “bíblia argentina”. Depois de muito circular pelas fronteiras, pulperias, armazéns, publicado em tiras de periódicos, o Martín Fierro ingressou numa outra camada de recepção: a dos intelectuais. De qualquer forma, há inúmeras teorias que hoje circulam, com ênfase para as hipóteses levantadas por Itamar Even-Zohar, tentando provar que as formas migram permanentemente entre sistemas abertos e intercomunicantes, o que mantém a vitalidade dos sistemas literários. Essa visão polissistêmica permite examinar no que resultam as passagens e flutuações temáticas entre textos produzidos em diversos momentos por diferentes culturas. No caso de “Antônio Chimango”, o tom satírico – e não nostálgico, como se lê em grande parte da gauchesca platina – guarda resíduos da picaresca espanhola. Contudo, a motivação do poema, escrito para biografar um inimigo político e, assim, pela sátira, ridicularizá-lo e vingar-se, justifica a mobilidade e a graça das falas do Lautério. Sua última estrofe, conforme destacou Augusto Meyer, é um exemplo primoroso dessa “tonada” satírica e dessa ironia alcançada pelo autor mediante a voz do velho peão, mulato e cantador, sob a forma de “adágio crioulo” ou de “anedota galponeira” num caso “crivado de reticências...”.

 

É possível que Augusto Meyer, ao escrever sobre “Antônio Chimango” nos anos sessenta, não quisesse investigar as relações quase explícitas com a literatura platina, temendo expor-se num meio intelectual visivelmente lusófono. Portanto, limitou-se a referi-las sob o ponto de vista da originalidade, negando que Amaro Juvenal tenha buscado suas fontes na poesia platina. Refere, mas afasta a possível influência de Hernández, Ascasubi, Del Campo, justificando as semelhanças por “coincidências temáticas” e, de qualquer modo, reivindicando a superioridade do poemeto brasileiro sobre as obras vizinhas. Para ele, há no “Chimango” uma verticalidade, um rigor estrutural, que não se encontra nos outros poemas gauchescos. Dessa forma, a concisão, representada pelos atributos de “agilidade, leveza e graça”, torna o poema brasileiro superior aos pretensos modelos platinos. Refutando a opinião de Manuelito de Ornelas, que reconhecia aproximações episódicas entre o Chimango e o Santos Vega de Acasubi, Meyer, um dos poucos críticos brasileiros do século XX a não dar as costas ao Prata , nesse ponto é categórico:

 

Nem no tema, ou nos motivos, nem nas personagens e muito menos na técnica vejo eu algum parentesco mais próximo: a não ser nessa inevitável coincidência de alguns traços, que semelhança maior pode haver entre o informe, desproporcionado e indefinido ‘Santos Vega’, onde qualquer outro episódio pampiano caberia por simples acrescentamento, e a sóbria arquitetura de ‘Antônio Chimango’, sua compassada divisão em cinco rondas, dentro de cada ronda aquela bissecção em quadro de ambiente e sátira política, canto descritivo e canto épico”

 

Como venho pesquisando há algum tempo, a crítica brasileira do século XX, até aproximadamente as duas décadas finais, negou sistematicamente os influxos platinos na cultura brasileira. Melhor dizendo, na cultura gaúcha. Essa recusa em ver o óbvio foi movida por questões ideológicas por parte de um grupo de críticos cujas vozes eram dominantes e cuja formação intelectual era definitivamente lusófona. Esse modo de ver pré-excluía, ou tentava regenerar, os intelectuais que se aventurassem a apontar vínculos ou relações de contato com as culturas do Prata, dando continuidade a uma beligerância íntima que importavam da série histórica e da política para a cultural.

 

Em conseqüência, poucos foram os críticos que nadaram contra a corrente, encontrando-se, entre esses, o historiador João Pinto da Silva, o já citado Manuelito de Ornelas, Guilhermino Cesar e o crítico e professor Silvio Júlio que, por ser pernambucano, sentiu-se, por certo, mais livre para contemplar a proximidade do Rio Grande do Sul com o Prata, fazendo-o em diversos momentos, sobretudo nos “Estudos Gauchescos de Literatura e Folclore” (1953) e em “Literatura, folclore e lingüística da área gauchesca no Brasil” (1962). Nas duas obras, Sílvio Júlio examina obras regionalistas gaúchas, como as de Simões Lopes Neto, Alcides Maya e Amaro Juvenal, à luz de suas relações com o Prata. A proximidade entre as obras regionalistas do Brasil sul e as obras de escritores argentinos e uruguaios é vista por ele com naturalidade, eis que considerava haver uma identidade cultural unindo as fronteiras meridionais. Assim, não lhe passa despercebido o desconforto da crítica do Rio Grande do Sul com relação ao que parecia ser o reflexo da proximidade platina em nossa cultura. Ressaltando a figura do crítico Augusto Meyer como um dos primeiros a reconhecer a relação com as fronteiras, pois antes dele a análise da arte gauchesca (...) girava num círculo estreito de patriotadas lusitanófilas e bairrismos aéreos, Sílvio Júlio diz:

 

“Preocupados com vaidosos e estreitos ciúmes partidários, com ódios contra o ‘castelhano’, com desconfianças exorbitantes, eles inventavam teorias falsas, onde se excluía do linguajar e do tradicionalismo gaúchos a influência que não fosse açoriana ou paulista. O exagero prejudicou-lhes a parte de autenticidade que havia nesta doutrina, porque através de tais hipérboles lusas e brasileiras esqueceram de explicar vultosos setores da cultura sul-rio-grandense.” 

 

Passados mais de quarenta anos, com o crescimento e o prestígio dos estudos de Literatura Comparada, questões como originalidade, fonte e influência passaram a ser desconsideradas e substituídas por estudos de texto que trabalham com as relações intertextuais. E, também, com as aproximações interculturais fortemente representadas nos textos em análise. Desse modo, a proximidade entre o poemeto campestre “Antônio Chimango” e a gauchesca platina lato sensu, hoje, é quase óbvia. Como afirma Ligia Chiappini quando trata a recepção de Martín Fierro na cultura brasileira, o poema foi traduzido não apenas texto a texto, mas incorporado à obra dos escritores, criando uma geração de narradores e poetas seguidores de Hernández. A sextilha hernandiana, como expõe Chiappini em suas pesquisas, é criação do autor, forma criolla com que ele substitui a copla espanhola ou a quadra lusitana e brasileira. Citando, além de Meyer, estudiosos e investigadores do folclore, como Luis da Câmara Cascudo e Marlyse Meyer, Ligia Chiappini demonstra que a sextilha hernandiana, cujas rimas formam-se conforme os modelos abbccb e abbcbc, não existia na tradição oral rio-grandense antes da publicação do “Antônio Chimango”. Assim, o modelo formal da sextilha foi importado por Ramiro Barcellos diretamente do Martín Fierro, o que reforça a tese da originalidade de Hernández.

 

Para concluir essas reflexões, quero acrescentar o que diz Carlos Alberto Leumann sobre a migração de temas entre diferentes estratos sociais. Partindo da noção sarmentiana de que todo gaúcho es cantor, Leumann valoriza o poder do canto gauchesco por sua estranheza aos ouvidos urbanos. E, embora a intelectualidade argentina condenasse o regionalismo e o idioma dos gaúchos por seu aspecto rústico, Leumann concorda com as palavras de Hernández no prólogo de Martín Fierro: os personagens gaúchos devem hablar em su lenguaje peculiar y próprio, com su originalidad, su gracia y sus defectos naturales, porque despojados de esse ropaje lo serían igualmente de su carácter típico... Talvez seja oportuno referir a recepção do Martín Fierro na Argentina quando se pensa na trajetória do “poemeto campestre” de Amaro Juvenal no Brasil. Ao conjugar, habilmente, os “dois poemas”, Amaro Juvenal alcançou um resultado surpreendente. Esse se deveu ao sucesso inicial vinculado à causa política, identificável, portanto, com as obras dos primeiros platinos, Hidalgo, Ascasubi, seguido de um segundo sucesso, associado à qualidade literária do texto, identificável à obra de Hernández. E, se a intertextualidade é um critério válido para a prática comparatista, sugiro uma breve mirada aos versos finais de “Antônio Chimango”, lidos em contraste com os primeiros versos de El gaúcho Martín Fierro:

“E aqui lê ponho o arremate-
Na presilha desta história.
Que um outro tenha a vitória
De cantar nalgum fandango
O mais que fez o Chimango
Pra levar S.Pedro à glória.”

“Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela
que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria
como la ave solitaria
con el cantar se consuela”

Lê-se aí a mesma forma, o mesmo metro, o mesmo enquadramento rítmico e, certamente, a mesma intenção, entendida essa como visão de mundo. Há imagens que serão recorrentes, como a relação entre o pássaro Chimango e a ave solitária. Muda o foco narrador: Martín Fierro é um peão desgarrado e um soldado desertor. Tio Lautério é um negro da Estância, tão nativo quanto os umbus e os quero-queros. O processo de criação de ambos, embora aparente ser pulsional e instintivo, é fruto de construção cuidada, pois o texto escrito deve preservar a respiração do povo, recuperável à leitura performática:

“Yo no soy cantor letrao
mas si me pongo a cantar
no tengo cuando acabar
y me envejezco cantando
las coplas me van brotando
como agua de manantial”

“Para les contar a vida
Saco da mala o bandônio,
A vida de um tal Antônio
Chimango - por sobrenome,
Magro como lobisome,
Mesquinho como o demônio.”

Há semelhanças visíveis entre os dois poemas, porém são muitas as diferenças. Tal igualdade na diversidade aponta para o diálogo tradutório entre textos e culturas, o que não implica em cópia ou sujeição, mas em absorção e transformação. Dessa forma, a relação que existe entre o “Antônio Chimango” e o Martín Fierro, de modo específico, ou a gauchesca platina, de modo amplo, é sobretudo tradutória. A partir de textos lidos, em especial o poema de Hernández, Ramiro Barcelos empreendeu um processo de tradução criativa. Essa implica em absorção, escolha, transposição, transgressão em novas propostas – parafrásicas ou parodísticas – dos textos platinos, que passam, dessa maneira, a integrar o sistema literário brasileiro. Ao incorporar esse legado, transformando-o criativamente, os escritores gaúchos forjaram uma expressão literária própria.

 

Não há, e nunca houve, razão para temer a proximidade com o Prata: nos textos literários, como nas relações culturais em geral, sempre há lugar para a alteridade. Que, por sinal, convive bem com a identidade.

 

Léa Masina
Crítica Literária e Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 


NOTAS

Ramiro Barcellos (Cachoeira do Sul, RS, 23.08.1851 – Porto Alegre, 28.01.1916). Foi deputado provincial pelo Partido Liberal do Império de 1877 a 1880. Médico. Exerceu o jornalismo, publicando crônicas nos Jornais Novo Mundo e A Federação, neste último com o pseudônimo de Amaro Juvenal. Participou da Revolução de 1893, como legalista. Publicou o “Antônio Chimango” em 1915. Segundo o pesquisador Júlio Petersen, o poemeto campestre teve 21 edições, muitas das quais clandestinas. Cf. RUAS, Tabajara. “20 Personagens da Literatura Gaúcha do Século 20: Antônio Chimango”. In ZERO HORA, Cultura. Porto Alegre, set. 1999.

O crítico e professor Sílvio Júlio, em 1953, registra a existência dos galpões nas estâncias do sul e no Prata, centro de práticas noturnas, onde os gaúchos se reúnem em torno do mate amargo, do churrasco e onde rolam o comentário, o boato, a sátira e o jogo. In: Literatura, Folclore e Ling6uística da Área Gauchesca no Brasil. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1962, p. 17 e segs.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. 13.ed. São Paulo: Ática, 2000.

BORGES, Jorge Luis. Bartolomé Hildalgo. In: Poesia gauchesca I. México, Fondo de Cultura Económica, 1984. p. 34.

Paulino Lucero. In: BORGES, Jorge Luis. Poesia Gauchesca I. México: Fondo de Cultura Económica, 1984. p. 37-303, p. 48.

Em 1872, publicou suas obras completas na França. Ascasubi foi um dos principais colaboradores na construção do Teatro Colón, em Buenos Aires.

Santos Vega. In: id ibidem, p. 329.

No livro José Hernández – Martín Fierro, Coleção Archivos, coordenado por Elida Lois e Angel Nuñez, Ligia Chiappini estuda a recepção do poema argentino na literatura brasileira. Para tanto, examina a permanência do texto de Hernández na obra de escritores brasileiros, sobretudo gaúchos, com destaque para o poemeto campestre de Amaro Juvenal.

Bem o reconhece Sílvio Júlio, ao arrolar o nome de Augusto Meyer como crítico receptor de fontes platinas representadas por críticos e historiadores literários que estudaram o regionalismo e a gauchesca, tais como Ricardo Rojas, Leopoldo Lugones, Emílio Coni, Ezequiel Martinez Estrada, Eleutério Tiscornia, Juan Carlos Dávalos e outros. Op. Cit., p. 120.

MEYER, Augusto. Prosa dos pagos. 4.ed. Porto Alegre: IEL-CORAG, 2002, p. 208.

JÚLIO, Sílvio. Op. Cit., p. 117.

CHIAPPINI, Ligia. Martín Fierro e a cultura gaúcha do Brasil,. In:LOIS, E. e NUÑEZ, A. (Coordenadores). Martín Fierro. – Jose Hernández. Edición Crítica.. Madrid, Barcelona, La Habana; Lisboa; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Lima; Guatemala; San José; Caracas; ALLCA XX, 2001, p. 691-730, p. 695.

LEUMANN, Carlos Alberto. La literatura gauchesca.y la poesia gaucha. Buenos Aires: Raigal, 1953, p. 22.

 


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