X Jornada CELPCYRO

img banner

Informe CELPCYRO

Cadastre-se e receba nosso INFORME
Nome
E-mail*
Área de Atuação

Redes Sociais

  • Twitter
  • Windows Live
  • Facebook
  • MySpace
  • deli.cio.us
  • Digg
  • Yahoo! Bookmarks



REGIONALISMO ÉTNICO NO RIO GRANDE DO SUL -Léa Masina | Imprimir |  E-mail
Fronteiras Culturais - Outras Fronteiras

 Síntese de uma proposta conceitural


Os estudos sobre o regionalismo, em alta, no Brasil, pelos anos setenta e oitenta, continuam a suscitar reflexões. Apesar de haver posições críticas em contrário(1), no Rio Grande do Sul, a literatura regionalista confundiu-se, por muito tempo, com a gauchesca, mantendo-se o interesse pelos estudos literários da chamada “comarca pampiana”(2), bem como pelas pesquisas sobre as literaturas de fronteiras. E muito embora seja essa uma vertente rentável, ela não esgota os estudos referidos, ainda que tais enfoques continuem presentes, a influir na recepção dos leitores, afetando o modo como os textos literários foram e são recebidos pela crítica e pelo público.

A visão disseminada pela crítica, a partir da segunda metade do século XX, eivada de preconceitos com relação ao regionalismo dito tradicional, influi também na reflexão acerca da produção literária dos escritores brasileiros, em especial dos gaúchos, que vivem a tensa relação entre escrever sobre o terruño e suas questões locais, e pretender um universalismo entendido erroneamente como incompatível com a visada regional. Até hoje, é comum, entre os escritores do Rio Grande do Sul, negar a vinculação telúrica ou a especificidade histórica de suas obras, como se delas se envergonhassem. E o fazem, certamente, para não serem incorporados à tradição “amaldiçoada” pela crítica brasileira oficial e acadêmica, que considera os textos regionalistas como literatura menor, pelo predomínio do descritivo e da temática rural, sem levar em conta que essas características também integram a tradição discursiva da América Latina.

Como o propósito deste artigo é reflexivo e não classificatório, serão desconsideradas, aqui, as distinções existentes, por exemplo, entre as expressões regionalismo, literatura de temática regionalista, literatura gauchesca, histórica, erudita, folclórica ou popular. Do mesmo modo, não se pretende distribuir os diversos regionalismos numa cronologia, a começar pelas primeiras manifestações, numa dada literatura, até o momento atual. Como a experiência crítica nos tem mostrado, o regionalismo articula diversas formas, simultâneas por vezes, portadoras de mobilidade interna, o que lhes permite transitar entre a chamada literatura culta, ou erudita, o folclore e a literatura popular.

Assim, está-se propondo refletir sobre uma categoria complexa, o regionalismo lato sensu, que, no Rio Grande do Sul, aproxima obras tão diferentes, quanto a mito-poética de Simões Lopes Neto, os romances e contos de forte impregnação social, de Alcides Maya, os romances de 30, de Erico Veríssimo, Cyro Martins e Aureliano de Figueiredo Pinto, e, ainda, a narrativa contemporânea de Sergio Faraco, Luis Antonio de Assis Brasil, Tabajara Ruas, Barbosa Lessa, Aldyr Schlee, Alcy Cheuiche e outros ainda mais recentes. Importa apreender a complexidade do regionalismo enquanto conceito abstraído a partir de uma diversidade de manifestações locais que, no caso, interessam quando articuladas na literatura. Com relação ao restante do Brasil, um conceito amplo de regionalismo abrangeria tanto os narradores românticos, como Bernardo Guimarães, quanto naturalistas e modernos, como Mário Palmério, Jorge Amado, Lins do Rego, Guimarães Rosa, José Candido de Figueiredo e Márcio de Souza, para citar alguns. Assim, livre da persecução classificatória, pode-se pensar numa categoria - mais do que um movimento, corrente, período ou programa - muitas vezes paradoxal, cujos textos podem ser lidos e interpretados tanto como manifestação conservadora, quanto como progressista(3). O regionalismo, pois, dá visibilidade a ideologias em conflito, as quais se refletem em sua produção e recepção.

Ainda que se desconheçam estudos completos sobre o regionalismo na América Latina(4), informa a crítica que, nos países do Prata, conviveram num diálogo tenso, três movimentos diversos: o modernismo (que corresponde aproximadamente ao simbolismo brasileiro), a vanguarda e o regionalismo. Também, segundo o entendimento dominante, o regionalismo só poderá ser compreendido se revisto à luz do contexto literário em que surge e no qual seus textos são lidos. Significa dizer que existem conceitos coincidentes e divergentes sobre o regionalismo, sendo a temática o elemento preponderante para sua conceitualização. Nesse sentido, embora distantes pela escritura, podem considerar-se regionalistas textos literários de diferentes épocas e linguagens, o que afasta a possibilidade de se pensar o regionalismo como uma categoria meramente classificatória. Desvendar a utilidade analítica do conceito continua a ser, segundo o crítico Bernal Herrera, o desafio que se impõe à crítica latino-americana(5).

Quanto à cultura popular, que ignora as manifestações da academia, as expressões regionalistas, ao menos no Rio Grande do Sul, sempre estiveram presentes e até se multiplicaram, reproduzindo e reinventando os discursos literários tradicionais. O fenômeno está a merecer um estudo mais alentado, eis que essas manifestações cada vez mais se disseminam por outros estados brasileiros através de práticas diversas, que incluem a difusão da culinária, representada por pratos típicos gaúchos, como o churrasco, a canjica e o arroz de carreteiro, enquanto incentivam a música e a dança, através de eventos nativistas e tradicionalistas, promovidos por Centros de Tradição Gaúcha. E mesmo por entidades institucionais, que promovem exposições de gado, desfiles, e outras comemorações alusivas a datas da história sul-rio-grandense, como, por exemplo, o 20 de setembro, conhecido como a data máxima da Revolução Farroupillha(6). Nessas ocasiões, a mídia celebra “o orgulho de ser gaúcho”, enquanto os jornais de maior circulação destinam um espaço privilegiado para documentar os eventos. Na verdade, o que pode se depreender das notícias é a “domesticação” do tradicionalismo, que vai sendo apropriado, aos poucos, pelo turismo. Cabe registrar também o forte apelo latino-americano que aos poucos se vai impondo, à revelia do gosto dominante nos centros de tradições locais. A permanência desses eventos no cenário cultural brasileiro sugere a existência de diferentes espécies regionais, como se lê, por exemplo, em Álvaro Santi quando examina a canção nativista nos festivais e califórnias do Estado. Para ele, no contexto da tradição gaúcha, existem um regionalismo tradicional, monárquico, e outro mais voltado para as questões sociais que afetam a América Latina(7). Embora a comparação seja binária, a possibilidade de reconhecer formas simultâneas de regionalismo parece adequar-se melhor ao pensamento contemporâneo, aberto e multicultural.

Em meados do século XX, estudar o regionalismo no Brasil obrigava a definir precisamente o objeto: o adjetivo literário fazia toda a diferença. Lúcia Miguel-Pereira, em sua Prosa de ficção resume essa tendência, quando, ao assinalar a constante presença da cor local na literatura brasileira desde as primeiras manifestações, adverte para o fato de que, com o naturalismo, o regionalismo, antes difuso e generalizado, começou então a formar um gênero especial, com tendências limitadas e definidas: o estudo do povo do interior do país, marcadamente diferenciado, não só dos estrangeiros, como das populações urbanas. A autora considera o regionalismo “gênero” comum a escritores de um determinado período, cujas obras teriam como fim primordial a fixação de tipos, costumes e linguagem locais, cujo conteúdo perderia a significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em ambientes onde os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que imprime a civilização niveladora(8).

No mesmo sentido, para Afrânio Coutinho (1955), o regionalismo era uma fragmentação do nacionalismo romântico, denotando pendores pela observação exata, a que mais tarde se mistura a influência do Naturalismo. Segundo ele, no Rio Grande do Sul, o relativo insulamento somou-se a vários fatores naquela zona geográfica de transição, para dar ao regionalismo literário um cunho inconfundível. Dentre esses fatores, Coutinho aponta a formação tardia do Estado e suas condições de fronteira aberta, durante muito tempo, à invasão e às influências do Prata(9). Resgatando documentos literários e referências institucionais, como a Sociedade Partenon Literário, registra a tendência “costumista” do regionalismo gaúcho, destacando, todavia, seu caráter de resistência face à centralização cultural.E cita, nesse sentido, a resposta do escritor gaúcho Vitor Valpírio a artigo de Joaquim Nabuco, publicado na revista do Partenon Literário, ema 1872, reivindicando a separação entre a literatura brasileira e a portuguesa. Num parágrafo, longo e instigante, Valpírio escreve sobre o desconforto do gaúcho dos pagos rio-grandenses, acostumado ao churrasco mal assado (...) vendo-se obrigado a engolir o apetitoso caldo verde de Balbão ou São Cosme (...)(10). Assim, para descrever o que denomina corrente da literatura ou movimento regionalista, Afrânio Coutinho arrola nomes e obras, desde os primeiros regionalistas até os romancistas de 30, como Erico Veríssimo e Cyro Martins. Não obstante, o crítico lamenta não estarem representadas na corrente regionalista gaúcha, (...)nem a vida colonial, nem a faixa costeira, nem o Planalto e o Oeste, com sua nova onda migratória. E, aludindo, como exceção, à figura de Viana Moog, o renomado autor de Um rio imita o Reno (1939), lamenta que a expressão literária do regionalismo gaúcho tenha sido restringida e empobrecida por um preconceito vesgo e saudosista(11). Tal preconceito teria a ver com a criação nostálgica de um mundo rural, mítico e bucólico, no dizer do crítico Bernal Herrera, comum à Hispanoamérica, mundo no qual se suponen depositados los valores fundantes de la nacionalidad, sometidos al embate de procesos de inmigración y urbanización que estaban acabando con esse mundo que, em sentido estricto, nunca había existido(12).

Certamente, o conceito de regionalismo, que instrumentava as investigações de Afrânio Coutinho, não lhe tenha permitido desenvolver a intuição enunciada: o regionalismo deveria abarcar as contribuições das diferentes etnias advindas das migrações e, assim, multiplicar-se na tensa relação com um imaginário já existente e dominante. Como se pretende examinar, esse regionalismo fronteiriço, da campanha, próximo à gauchesca platina, irá conviver, nas últimas décadas do século XX, com outros regionalismos literários, fruto das correntes migratórias sobretudo alemãs e italianas. Como se justificará adiante, nessas diferenças funda-se o conceito de regionalismo étnico.

Foram muitos, senão quase todos, os historiadores literários brasileiros do século XX que dataram e limitaram as manifestações localistas, situando-as em períodos estilísticos e de época, ou identificando-as como reiterações de tendências, tais como neo-realismo, neo-naturalismo ou mesmo neo-regionalismo. Hoje, a questão pode ser vista sob outra perspectiva. Mesmo a definição de Lúcia Miguel-Pereira depõe sobre essa necessidade classificatória, que obrigava a isolar o objeto para precisá-lo, com vistas a enquadrá-lo numa cronologia historiográfica. Apesar disso, a lucidez e o conhecimento literário da autora permitiram-lhe apontar a natureza reativa do regionalismo contra a “civilização niveladora”, bem como formular outro conceito que adiante será discutido: sua natureza rural e anti-urbana. Como se pretende sugerir, o regionalismo contemporâneo pode surgir nas cidades, onde quer que exista um elemento diferencial o aglutinador: a tribo, o gênero, as raças, as culturas e as etnias. Não se trata mais de delimitar áreas geográficas, mas de examinar a porosidade de espaços, reais ou virtuais, geradores de relações de agregação intercultural e, por conseguinte, interdiscursiva. A geografia, em questão, pode ser outra: não apenas a delimitação topográfica de uma região, mas a condição interna dos indivíduos, um desejo diferenciador de identidade e pertencimento. Uma reivindicação política, por certo(13). Nesse sentido, é mais rentável examinar o regionalismo vivo e produtivo, no dinamismo das trocas interculturais, do que isolar seus textos literários e classificá-los como “corpus” a ser dissecado. Essa expansão da visada crítica deve muito à literatura comparada que possibilita perseguir movimentos, diálogos e passagens de uma cultura para outra, sem perder de vista a especificidade do texto literário.

A proposta de Miguel-Pereira fundava-se na tentativa de conciliar “historicismo e estetismo”; no entanto, hoje são bem vindas as aproximações interdisciplinares, como por exemplo, estudos sociológicos sobre a importância política do regionalismo na definição de interesses nacionais. Não se pode esquecer que, potencializado, o sentimento regionalista afirma identidades locais muito próximas às noções de federalismo e de separatismo, eis que os regionalismos postulam sempre uma relação nova entre o centro e as regiões. Assim, mais do que a consciência de que os movimentos regionalistas buscam recuperar culturas ameaçadas pela homogeneização global, há que neles reconhecer outras reivindicações; dentre essas, a meu ver, salienta-se, no Rio Grande do Sul, o desejo de inclusão no mapa cultural brasileiro. Brasileiros por opção, costuma-se dizer para justificar o orgulho de pertencer a uma região diferenciada; paradoxalmente, existe, no gaúcho, a consciência de uma identidade própria e inconfundível. Essa diferença está alicerçada na história local, nas tradições e processos particulares de mestiçagem, decorrentes da condição de estado fronteiriço e receptor de levas de imigrantes. Trata-se, pois, de um conflito cultural, no qual a dimensão simbólica desempenha um papel preponderante. (...). Segundo Pierre Bordieu,

O regionalismo (como o nacionalismo) não passa de um caso particular de lutas propriamente simbólicas em que os agentes estão engajados seja individualmente e de forma dispersa, seja coletivamente e de forma organizada, e que tem como objetivo a conservação ou a transformação das relações de forças simbólicas e dos lucros correlatos, tanto econômicos como simbólicos(14).

Por outro lado, esse pertencimento, ambíguo e paradoxal, contribuiu para acentuar a conotação negativa do regionalismo, que migra para as demais áreas de conhecimento, inclusive a literária, como elemento de ruptura da chamada “unidade nacional”. Nesse sentido, o regionalismo sul-rio-grandense equipara-se aos países hispânicos da América, em que diferentes regiões culturais disputaram, por longo tempo, a hegemonia nacional.

Deslocando o olhar para o pensamento crítico argentino, a figura pioneira do historiador literário Ricardo Rojas aparece no início do século XX. Em artigo intitulado Ricardo Rojas y los regionalismos culturales(15), Julián Cáceres Freyre, antropólogo argentino, dedicado ao estudo da tradição local, destaca a importante contribuição de Rojas para o estudo morfológico da cultura. Segundo Cáceres Freyre, Rojas diferencia-se dos intelectuais de sua geração, por su apasionado fervor por todo aquello que sea aborigen y extranjero que, con la entrada al país de milliones de inmigrantes, habría de ejercer una influencia muy grande en los costumbres, en el habla y en la economia del país(16).

Escrevendo num período de forte aluvião imigratória, Ricardo Rojas construiu seu projeto intelectual baseado na idéia de restauración nacionalista: para ele, um país novo e cosmopolita, como a Argentina, requeria el culto de la tradición y la formación de um ambiente histórico nacional. A teoria cultural, já exposta nos primeiros livros do autor, como, por exemplo, Eurindia (1924), contempla os regionalismos culturais inspirado em el sentir telúrico americano que, conjuntamente con la herencia española, nos da uma “cultura própria definitivamente individualizada como cosa distinta de lo europeo originário y de lo indígena primitivo(17) . Pesquisador de fontes e influências, ele examina as diferenças culturais na Argentina, sendo o primeiro a intuir o modo como os aportes indígenas, criollos e espanhóis articulam suas diferenças cruzando, por assim dizer, memórias coletivas. Sem perder de vista a questão das províncias e seu significado político no conjunto das nações, Ricardo Rojas identifica a questão do isolamento geográfico como gerador de um folclore expressivo, conjugado à presença da língua quéchua, remanescente em algumas regiões do país. Além disso, descreve o diálogo entre as províncias argentinas e Buenos Aires, a capital cosmopolita e influente. E registra que, sob a aparente semelhança política e administrativa, persistiam, em cada região, as diferenças da herança colonizadora na relação com o próprio meio, compondo uma espécie particular de “espírito dos lugares”. Isso explicaria, a seu ver, a produção de obras literárias como Martín Fierro, de Hernández, representando las pampas bonarenses; Montaraz, de Leguizamón, representando as cochilhas de Entre Rios, e Mis Montañas, de González, as paisagens de Riojas. Assim, desse flujo y reflujo de fuerzas espirituales (...) resultara la inquietud fecunda y la compleja originalidad de nuestra cultura en formación(18).

Desse modo, a força do pensamento nacionalista, dominante na primeira metade do século XX, contribuiu para formar a idéia patriótica de “argentinidade” pura, composta pelo espanhol e pelo autóctone, rejeitando os aportes imigratórios posteriores à formação de uma “tradição” local. Quando, em 1907, Rojas inicia sua vida intelectual na Argentina, el inmigrante italiano alojado en los conventillos de toda la ciudad daba lugar al habla deturpada: el cocoliche. El compadrito orillero, con el lunfardo, también contribuía a su bastardeo. (p.42). Isso, somado a outras imigrações e à pouca herança deixada pelos escravos negros, motivou a publicação de livros como La restauración nacionalista e La Argentinidad. No entanto, foi a Historia de la literatura Argentina, de Rojas, a obra que possibilitou fijar los regionalismos culturales vigentes em nuestra vida Argentina.(19)

Para o objetivo deste trabalho, a posição de Rojas é significativa: ela acentua a existência de múltiplos regionalismos no território argentino; reconhece nesses uma hibridez cultural que se multiplica e diferencia pelas províncias; identifica a existência de uma “tonada” provinciana, quando a entoação da fala funde o castelhano e o indígena; aponta a imigração estrangeira, principalmente a européia, como ameaça à “integridade” da cultura nacional. Além disso, a visão de regionalismo desenvolvida por Ricardo Rojas pode ser lida como próxima a formulações conceituais mais contemporâneas, que não se esgotam mais na abordagem do literário, mas exigem do crítico uma visão interdisciplinar.

Também na Bolívia, como expõe Salvador Romero Pittari, o regionalismo não se limitou à nostalgia de uma comunidade de sangue e costumes, de uma fraternidade provincial. O desenvolvimento de conflitos, ao longo do século XX, transformou as relações entre região e centro, apontando para a necessidade de adoção do federalismo como modalidade institucional. Do mesmo modo, no Brasil, para além da literatura, sempre existiu o desejo federalista de influir no desenvolvimento, de fazer-se presente, com sua capacidade produtiva e de liderança. Na política, como nas demais manifestações da cultura, o objetivo regionalista parece ter sido a descentralização e a reorganização do espaço. Como alerta Pittari, no ensaio El Nuevo Regionalismo(20), esse já não corresponde à idéia de retrair-se para preservar os particularismos locais. Ao contrário, pensado como um todo, cabe-lhe o papel de contribuir para as definições globais do futuro. De um futuro plural, pode-se acrescentar.

Com certeza, as motivações que condicionam determinados comportamentos de afirmação localista mostram-se através de representações simbólicas. Nesses casos, o regionalismo irá representar diferenças locais ou de grupos face a construções simbólicas centrais, homogeneizadoras e totalitárias. Nesse sentido, a proximidade com a sociologia e com a antropologia, bem como com a geografia, a psicanálise, a história e a política, contribuem para ampliar as múltiplas facetas do regionalismo. E assim, é possível pensá-lo em sua natureza plural, como manifestação de uma categoria trans-histórica, sempre oposta a tentativas de centralização e homogeneização. A tradição, identificável com a memória coletiva de cada sociedade, exerce, no caso, uma função agregadora, capaz de reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo (...)(21).

Como já foi dito, para obter-se uma visão panorâmica sobre o regionalismo no Brasil e no Rio Grande do Sul, é preciso remontar aos anos setenta, época em que foram publicados diversos trabalhos sobre o tema. A tendência à exatidão classificatória e, muitas vezes, às divisões taxonômicas, integrava as teorias mais correntes, sobretudo do Formalismo Russo, importado da Europa, que induzia a descrever os textos e escandi-los através de análises textuais. No caso das narrativas regionalistas do sul do Brasil, essas análises apontavam a reificação da personagem, identificada com o mundo; esse, numa visão sincrônica, resumia-se à paisagem, às taperas, a visão das coxilhas após os embates, nas guerras; ou, mesmo, à água estagnada nos açudes da campanha gaúcha. E os analistas de textos literários, embora pretendessem dar as costas à História, dela se serviam ao concluir que essa letargia era sintomática do gosto passadista e do apego ao rural, anacrônico e anti-urbano.

Mais ou menos por essa época, uma nova leitura do regionalismo começou a ganhar forma. Publicado pela primeira vez na Revista Argumento(22) , em 1964, o ensaio de Antonio Candido “Literatura e Subdesenvolvimento”(23) alterou o rumo das investigações, mostrando, em plena ditadura militar no Brasil, que o regionalismo poderia ser manifestação literária representativa de zonas subdesenvolvidas, nas quais o processo de urbanização ainda não tivesse alcançado um nível de desenvolvimento adequado. Assim, o regionalismo tradicional correspondia à “visão amena do atraso”, oposta, portanto, à “visão catastrófica”, também presente na literatura brasileira, que pagava, desse modo, seu tributo à condição de literatura transplantada. Excepcionais eram as obras que investiam na renovação estética da linguagem para expressar uma nova visão de mundo. Dentre essas, Candido destacou a obra ímpar de João Guimarães Rosa, autor de contos e do romance Grande Sertão: veredas.

Nas hipóteses acima, o regionalismo, salvo exceções, era considerado literatura “menor”, “atrasada”, pobre no tocante à articulação formal dos textos, sintomática do atraso cultural de uma região ou de um país. Isso porque representava formas de vida periféricas e atrasadas, expressando uma visão de mundo anacrônica e indesejada. Por muito tempo, foi essa a opinião dominante.

Na Argentina, juntamente com Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges estudou detidamente a poesia gauchesca e publicou, em 1955, as obras literárias de Bartolomé Hildalgo, Hilário Ascasubi e Estanislao del Campo(24). Reconhecendo a sigularidade da gauchesca enquanto gênero, questiona as circunstância que determinaram sua origem nas repúblicas do Prata. E insiste na idéia, já apontada no ensaio El escritor argentino y la tradición, de que os “gauchescos”, segundo a expressão de Rojas, foram homens da cidade que conheceram a vida dos gaúchos. Assim, acentua a natureza elaborada e artificial dos poemas gauchescos, escritos por homens urbanos, que inventavam uma representação literária da sua regionalidade(25). Não obstante, Borges discorda de Ricardo Rojas para quem a gauchesca derivaria da poesia popular dos payadores. Para ele, os textos da gauchesca eram elaborados literariamente para expressar as vozes rústicas dos homens rústicos que, caso cantassem, não buscaria temas cotidianos nem cultivariam a cor local. E cita como exemplo dessa perspectiva o Martín Fierro, para ele rico em temas nobres e abstratos e em ambiciosos ejercicios intelectuais.

A posição de Borges, repetida em outros momentos, tornava sem sentido a discussão sobre a fidelidade do texto literário à representação do gaúcho e das formas de vida da campanha, assunto que muito ocupava a crítica quando, por exemplo, comparava o gaúcho brasileiro ao platino. A herança realista, dominante na crítica, formada á luz do determinismo oitocentista, ainda cobrava paralelismo, analogia e correspondência entre as séries histórica e literária. E a visão de Sarmiento, sobre a dicotomia “civilização – barbárie” foi o lastro sobre o qual os discursos críticos se construíam. A marginalidade do gaúcho contaminava a literatura da qual era ele o protagonista.

Nesse sentido, mesmo no Brasil do século XX, a literatura regionalista gaúcha, exceção feita à obra de Simões Lopes Neto pela inventividade formal, foi tomada como representação de zonas de atraso, pois acolhia, em seu discurso, as vozes incultas dos excluídos e pobres da campanha. Agravava essa circunstância a leitura crítica dos textos, que destacava a voz culta, não raro o tom retórico do narrador em contraste com as vozes incultas do povo, muitas vezes grafadas foneticamente. Além disso, havia tendência nacionalista de examinar o regionalismo gaúcho em relação exclusiva com a literatura “brasileira”, na qual O gaúcho, de José de Alencar, era o texto fundador. Sequer suspeitavam os críticos de que um texto de forte extração popular, como Martín Fierro, de José Hernández, facilmente migraria de um sistema literário para outro, atravessando as porosas fronteiras do pampa, à revelia das classificações historiográficas consagradas. Só mais tarde, ao deslocar-se da recepção popular para a culta, a partir da legitimação que lhe conferiu a crítica platina, em particular Leopoldo Lugones, considerando o poema a Bíblia argentina, o texto de Hernández ampliou sua circulação para o âmbito intelectual e acadêmico, sendo assimilado, a partir dessa nova instância, pelas literaturas do Brasil e do Uruguai.

Embora sejam inúmeros apenas estudos sobre obras regionalistas individuais, é importante registrar a existência de fortes correlações entre os diferentes sistemas literários da América Latina. (26)Neles se identificam motivações temáticas comuns, o registro dos usos e costumes fronteiriços e rurais, a guerra e suas ramificações, definindo personagens, travessias e outras questões sociais e políticas. Escritores brasileiros do começo do século XX, como Alcides Maya, Simões Lopes Neto e Amaro Juvenal(27), por exemplo, relêem em suas obras o Martín Fierro, de Hernández, texto fundador de culturas regionais. Suas obras perfilam as mesmas questões sintetizadas na oposição civilização-barbárie, postulada por Sarmiento. E, assim, formam uma linhagem que inicia com as manifestações românticas e acentua-se a partir das narrativas naturalistas. Narradores como Eduardo Acevedo-Díaz e Javier de Viana, no Uruguai, Eugenio Cambaceres, depois, Benito Linch, na Argentina, e muitos outros, dão consistência a uma representação particular e localista que extrapola a temática campagnard européia e expressa uma visão de mundo, por assim dizer, criolla, híbrida porque resultante da diversidade com que os textos europeus foram assimilados e recontados na perspectiva ora resistente, ora compassiva, dos escritores latino-americanos.

Nos estudos de literatura comparada têm-se constatado que os brasileiros sempre leram os uruguaios e argentinos, além de partilharem a mesma origem colonial ibérica, os mesmos textos primordiais e a vida social sob circunstâncias históricas análogas. Daí que os escritores sul-rio-grandenses contemporâneos permaneceram ligados a questões geograficamente circunstanciadas, percorrendo o espaço histórico e social gaúcho para criticá-lo, exortá-lo, relê-lo e registrá-lo na existência ficcional. Nesse caso, não têm sido proveitosas ou relevantes as raras manifestações críticas (que mais atrapalham do que auxiliam), quando tentam definir subliminarmente o que a literatura gaúcha e brasileira são ou deverão vir a ser. Anacrônica porque prescritiva, essa crítica exige dos escritores visões de mundo que expressem novidades formais, afastando-se da variedade regional a que se vinculam. Cria-se, com isso, uma falsa questão: o desencontro entre regionalismo, entendido como tradição, e vanguarda, entendida como o moderno e o novo, embora se saiba que, ao menos no Prata, modernismo, regionalismo e vanguarda conviveram, dialogaram e em muitos momentos se confundiram. Aliás, da tensa relação entre regionalismo e modernismo, o crítico uruguaio Ángel Rama extraiu conclusões que lhe permitiram formular importante teoria sobre a hibridez literária, a da “transculturação narrativa”, criada a partir da visão teórica do sociólogo Fernando Ortiz(28).

De qualquer modo, o século XXI parece também preocupado em compreender essas questões culturais, presentes nos estudos sobre a simultaneidade, a convivência de contrários, a inclusão e a exclusão, a revisão, a ampliação e a relativização de categorias, paradigmas e conceitos. Nesse sentido, cabe incluir aqui a contribuição do crítico e filósofo costariquenho Bernal Herrera, resumida no já referido ensaio El regionalismo hispanoamericano: coordenadas culturales y literárias (2001).(29)

Bernal Herrera comenta o caráter ambíguo do conceito de regionalismo hispanoamericano que, para ele, restringe-se a obras voltadas para a descrição oscilante entre la critica y la exaltación, de diversos entornos humanos y geográficos ubicados em las vastas áreas rurales de nuestro continente(30). O crítico recorta um espaço de tempo, de 1924 a 1940, em que ocorre forte concentração regionalista na América hispânica. E chama a atenção para o fato de caberem, nesse período, obras tão diversas, como La vorágine, de Rivera,e Los caranchos de la Florida, de Benito Linch, publicadas em 1924; Don Segundo Sombra, de Ricardo Guiraldes (1926); Doña Bárbara (1929), de Rómulo Gallegos; e, no caso brasileiro, Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. Para ele, o critério aglutinador do regionalismo, embora discutível, é o temático(31). Porém desconfia que, sob esse prisma, o conceito de regionalismo mostra-se problemático e destituído de utilidade analítica. Não obstante, por reconhecer a importância dos textos elencados, tanto para as literaturas nacionais, quanto na tradição literária hispano-americana, ele propõe estudar os contextos de produção e recepção do regionalismo; isso inclui considerar a complexidade das forças literárias e extra-literárias atuantes em sua gênese e difusão. Dentre essas, chama atenção para o reconhecimento da transformação do conceito de literatura desde as primeiras manifestações localistas até os dias atuais. E constata que a tradição literária, na América Latina, iniciou com textos históricos e não literários. A própria literatura indígena, que poderia ser considerada constitutiva de uma tradição local, apenas recentemente foi reconhecida. A dominante,salvo raras exceções, reduziu-se à literatura oitocentista local, que assimilava e importava modelos retóricos e literários europeus. Obras excepcionais, nesse sentido, tais como Facundo e Os Sertões, irredutibles a ningun modelo europeo, constituían cimientos adecuados para una nueva tradición de prosa literária, propia de las nuevas repúblicas americanas, pero ni fueron las que primaron, ni fueron necesariamenten leídas em la época desde tal perspectiva(32). Além disso, observa que o modernismo hispanoamericano foi predominantemente poético. E disso resultou que a crítica do século XX prolonga o colonialismo moderno, lendo a literatura da América Latina sob perspectiva européia, ao passo que os europeus continuavam a identificar o humano e o civilizado como o próprio. Assim, porque todas as decisões e modelos vinham da Europa e, depois, dos Estados Unidos, a Primeira Guerra Mundial foi o acontecimento externo que possibilitou a introspecção necessária para a ocorrência, em bloco, de narrativas regionalistas. É nesse momento que a Europa deixa de ser um modelo a ser seguido e mostra sua fragilidade na barbárie da guerra.

O esboço periodológico de Bernal Herrera, circunscrevendo o regionalismo hispanoamericano entre os anos 24 e 40 do século XX , aponta para a possibilidade de um paralelo entre essa produção e o chamado “romance de 30” do Brasil. Para além de Vidas Secas, de Graciliano, por ele referido, são inúmeros os romancistas brasileiros cujas obras se enquadram no conjunto: no Rio Grande do Sul, de modo exemplar, Erico Veríssimo, Dyonélio Machado, Cyro Martins, Ivan Pedro de Martins, Aureliano de Figueiredo Pinto e Pedro Wayne. No restante do Brasil, diversos os narradores ilustram, com suas obras, a conceituação teórica de regionalismo cultural sob o rótulo “Geraçãode 30”.(33)

Quando o chamado romance de 30 surge no Brasil, foi considerado, pela crítica, o ápice das conquistas modernistas de 22 no tocante à narrativa, momento em que se concretizavam plenamente a liberdade de pesquisa estética e a manifestação de uma consciência criadora nacional. Esses romances perdiam os contornos da escritura lingüisticamente elaborada e culta e procurava simplificar-se, aproximando-se à linguagem cotidiana e dos periódicos, com oralidade e usos lingüísticos até então inusitados para os padrões literários dominantes. Conforme referido por Bernal Herrera com relação à América Latina, no plano histórico, o romance de 30 surgiu num momento introspectivo, no qual o Brasil, isolado da Europa, em decorrência da guerra de 1914-1918, procurava olhar para dentro de si próprio. A crítica, desde então, tem investigado as circunstâncias que propiciaram transformar a narrativa, que retomou vertentes realistas no afã de dar conta das diferentes regiões culturais brasileiras. Dentre essas circunstâncias encontram-se a difusão do ideário marxista; a quebra da Bolsa de Valores, de New York, em 1929; a mudança nos modos de produção, a partir das primeiras décadas do século; e também a vinda, para o Brasil, de levas de imigrantes europeus em busca de empregos e novas oportunidades de ascensão social.

Em conjunto, a obra dos principais romancistas de 30 representa um Brasil fragmentado em diferentes culturas que, somadas, formariam a cultura nacional. Uma cultura aditiva, decorrente da soma das partes. Para além disso, no plano estético, Mário de Andrade concebera o romance Macunaíma (1928) como tentativa de integração ficcional de todas as características regionais do país. Em plena inventividade modernista, Mário rompeu com os preceitos de tempo e espaço, categorias até então essenciais, para explorar a riqueza do regional sob o âmbito do non sense.

Enquanto isso, em contraponto à imagem da Europa arrasada pela guerra, os Estados Unidos e a Argentina desenvolviam-se, o que permitia à América confiar em suas potencialidades e em seu desenvolvimento.

Nesse mesmo sentido, referindo o período anterior à década de 30, Bernal Herrera aponta a Revolução Mexicana (1910) como o acontecimento de maior impacto cultural na América durante o século XX(34). Por contrariar o mito da supremacia branca e da superioridade espanhola, em voga desde os primórdios da civilização americana, sus reverberaciones culturales se hicieron sentir em todo el continente, em decorrência da reivindicação militante de elementos autóctones. Assim, a maior contribuição desse movimento para a gênesis do regionalismo literário fue um renovado interés de los pensadores y literatos hispanoamericanos por su propia cultura (p.8) não mais com a intenção de diagnosticar seus problemas, mas para valorizar suas peculiaridades. Antes disso, imperava a noção de que a cultura autóctone deveria ser erradicada para que seus representantes - indígenas, gaúchos rio-platenses, llaneros venezuelanos, descendentes de escravos afroamericanos pudessem ser “reeducados” e absorvidos pela europeizante cultura oficial(35).

Herrera relaciona , como fatores adicionais ao processo de restauração regionalista os mesmos identificados, no Brasil, com relação ao surgimento da Geração de 30: além da primeira Guerra Mundial, a quebra da bolsa de valores nos Estados Unidos em 1929 e o surgimento de um novo público leitor. O último fator parece de extrema importância, como conseqüência de programas de alfabetização e escolarização desenvolvidos, em alguns países como a Argentina, a partir da segunda metade do século XIX, ainda segundo a ótica positivista. Essa dominava a América Latina desde o século XIX, com seu culto à modernidade, impelindo à importação do pensamento cientificista da França e da Inglaterra e intensificando o descaso pela cultura autóctone.

O autor menciona também o fortalecimento das instituições estatais e a crescente atividade econômica, com o surgimento de uma classe média diversa das elites intelectuais que, até então, atuavam como público dominante. Assim, enquanto intelectualidade buscava intermediar a relação entre as culturas metropolitanas e o exíguo mercado de consumidores, exibindo um discurso identificado com o progresso das metrópoles, o público leitor, formado pela classe média urbana, consumia tanto productos narrativos de ambiente urbano (...) como narrativas de ambiente rural, definidoras de un otro interno frente al cual adoptar una mezcla de sentimientos de superioridad, deseos redentores e interes por lo exótico local. (p.9) Desse modo, o regionalismo irá acolher a herança do fascínio exercido pela terra e pela natureza, registrada na literatura desde os primeiros textos locais. Na visão de Herrera, la literatura regionalista nos es sino un eslabón más de una larga cadena cuya producción continúa en nuestros días en textos tan diferentes como ‘Cien años de soledad’ o en los afiches turísticos que promocionan el subcontinente como una suerte de destino natural paradisíaco. (9). E acrescenta que o retorno ao telúrico, no regionalismo, combina fatores tão díspares quanto a nostalgia das velhas oligarquias rurais, e a crescente influência do pensamento marxista, quando enfatiza o estudo da realidade local. Essa observação obriga, mais uma vez, a refletir sobre o caráter ambíguo do regionalismo que é capaz d.e resgatar heranças passadas, revisando textos e fatos, no afã de acentuar identidades opositivas e, paradoxamente, agregadoras. No entanto, ele não se resigna a uma função meramente identitária. Caso contrário, de que valeria o esforço de examiná-lo sob novos aportes críticos, se ele está por demais imerso numa concepção tradicional de literatura?(36) Talvez convenha a essa tentativa de interpretação, o conceito antropológico de sobrevivência cultural, já bastante discutido noutras instâncias, e segundo o qual padrões culturais sobrevivem na medida em que persistem as situações que lhe deram origem, ou alteram seu significado para expressar novos problemas(37).

Foi na década de setenta que a contribuição do uruguaio Ángel Rama passou a ter visibilidade no Brasil. Marxista, próximo a Antonio Candido quanto à orientação sociológica nos estudos literários, Rama publicou no segundo número da Revista Argumento (janeiro de 1974), o ensaio Um processo autonômico: das literaturas nacionais a literatura latino-americana. Antecipando questões que viriam a ser divulgadas quando da publicação de seu livro Transculturación Narrativa em América Latina (1985), Rama avalia a questão da dependência da historiografia literária latino-americana aos modelos europeus. E aponta tendências representadas, de um lado, pelo pensamento espanholista e conservador de Menéndez y Pelayo(38) e, de outro, pela obra de Pedro Henríquez Ureña que, em 1926, reconhecia o atraso da crítica hispano-americana em elaborar um discurso que abrangesse as obras literárias de todos os países de língua espanhola da América. Na conferência que proferira, em Buenos Aires, já em 1926, publicada em Seis Ensayos em busca de Nuestra Expresión (1928) Ureña antecipa as contribuições hispano-americanas que tentam fazer a leitura global e coerente da literatura segundo uma visão unitária, evitando agrupar escritores por países, em ilusórias literaturas nacionais(39).

O artigo de Rama, publicado no momento que antecede a ruptura cultural efetivada pelo regime militar no Brasil, enfoca a necessidade de integração da literatura brasileira no conjunto autonômico das literaturas latino-americanas. Ao examinar a tentativa dos críticos hispano-americanos de romper com as barreiras nacionais para escrever uma história literária que não fosse dividida em “dezenove ilusórias literaturas nacionais”, como propusera, dentre outros, Enrique Anderson Imbert, Rama conclui que a chave desses discursos unificadores é a sua concentração nos autores e textos de uma única língua, o espanhol, em suas variadas manifestações dentro do território americano. Ele afirma:

É óbvio que o projeto integrador era mais vasto e difícil que o realizado na mesma época em países como o Brasil, onde foi preciso articular um discurso crítico que dominasse a fragmentação regionalista, e que neste caso fez as vezes da “nacionalização” operada na área da fala espanhola(40).

O comentário é seguido de nota remissiva à obra A Literatura no Brasil (1955), organizada por Afrânio Coutinho, e também a Gilberto Freyre, em Interpretación del Brasil, obra editada no México em 1964. Segundo Rama, o que a crítica até então vinha buscando era a maior especificidade no trato com a cultura do continente, com vistas a uma reinterpretação correta dos modelos europeus de histórias literárias nacionais centrada nas concepções de unidade lingüística e unidade do povo criador. Ao comentar o fato de que somente Pedro Enriquez Ureña integrara as histórias das literaturas de língua portuguesa e espanhola num mesmo volume, Rama observa não haver equivalência, nessa aproximação, por parte da historiografia brasileira que continuou concentrada exclusivamente no âmbito de sua língua, procurando resolver o problema da sua própria unificação, sem pensar na existência da vasta região cultural que a rodeava(41).

Dentre a riqueza de idéias que o texto de Rama explicita, há duas que interessa aqui destacar: a afirmação de que o regionalismo, no Brasil, é comparável à diversidade latino-americana; e a observação sobre o fechamento da crítica brasileira para o diálogo com as culturas latino-americanas. Como irá argumentar, nos textos publicados nos anos oitenta, as peculiaridades da colonização ibérica criaram uma multiplicidade de regiões na América Latina que, com freqüência, desenvolveram tendências separatistas e isolacionistas, elaborando padrões culturais próprios. Esses espaços, quase sempre afastados dos centros urbanos, tornaram-se férteis ao desenvolvimento de tendências localistas, do que resultou um mapa latino-americano composto de regiões e miniregiões. Durante séculos, elas desenvolveram práticas autônomas e endogâmicas a partir dos componentes étnico-culturais, das atividades econômicas de subsistência e adaptação, nem sempre confortável, aos limites geográficos e políticos dos centros administrativos. Esse estado de coisas tenderá a alterar-se apenas no último terço do século XIX, com a imposição de projetos de modernização. No entanto, o Brasil, como a Colômbia, o México e a Bolívia, manterá o mapeamento regional, eis que essas subdivisões, além de historicamente fundadas, agravaram-se pela extensão do país e pela configuração geográfica. Isso, para Rama, explica o fato de que escritores, como João Guimarães Rosa, Garcia Márquez e Juan Rulfo, embora vivendo e trabalhando em cidades, permaneceram presos às raízes regionais(42).

O reconhecimento do vínculo à tradição local, em tensão com a modernidade, irá propiciar a Rama a teoria da transculturación narrativa, expressiva contribuição para o estudo dos processos de assimilação cultural, possibilitando uma nova compreensão dos regionalismos. Apropriando-se do termo transculturación, utilizado por Fernando Ortiz em estudos de antropologia, Rama conceitua a transculturación narrativa, com vistas a descrever e compreender a complexa aproximação entre tradição e modernidade. Ele considera a absorção da cultura estrangeira moderna e seu encontro com a tradição local como um processo dinâmico, criador de significados híbridos. Trata-se, pois, de uma relação tensional em que o escritor não se limita a estereótipos consagrados. Ele cria, a partir de novas sugestões, transformando seu processo em algo novo e produtivo, criado a partir do conflito entre tradição e modernidade. Nesse sentido, Rama se refere a um novo regionalismo na América Latina(43):

La literatura que surje en el movimiento conflictivo, no será por lo tanto ni el discurso costumbrista tradicional (que es simple consecuencia de la aceptación del estado de minoridad dominada, en que se es sólo materia y pintoresquismo para ojos externos) ni el discurso modernizado (que también sería una aceptación sumisa con equivalente cuota de pintoresquismo para usos internos), sino una invención original, una neoculturación fundada sobre la interior cultura sedimentada cuando ella es arrasada por la historia renovadora(44).

Não obstante a lucidez de Rama, não se pode considerar apenas a existência de textos regionalistas – ou super-regionalistas, para usar a expressão de Antonio Candido - que alcancem o diferencial estético e a originalidade que ambos identificaram em poucos escritores latino-americanos. Há no Brasil, e certamente nos demais países da América Latina, um regionalismo que dá as costas à crítica e, independente dela, continua produzindo cultura, não mais no patamar dito “culto”, de Guimarães Rosa ou Simões Lopes Neto, mas em outros patamares mais próximos ao gosto dos leitores médios e também da cultura popular. Nem por isso, essas manifestações localistas, presentes na literatura gaúcha desde sempre, se resumem ao discurso tradicional, tão execrado pela crítica modernista. À revelia dessa – ao menos no Rio Grande do Sul – a literatura regionalista permaneceu ao longo do século XX voltada para o imaginário da campanha(45). E foram muitos os contistas, novelistas, romancistas e mesmo poetas que fixaram a tendência, registrando mais do que usos e costumes: uma respiração fronteiriça, como diria Borges, que confundia o regional e o fronteiriço, mesmo ao buscar outras formas de expressão. Porém, em um estado de colonização recente, como o Rio Grande do Sul, ainda que a condição de terra fronteiriça tenha sedimentado os traços diferenciais e resistentes, a tendência regionalista ampliou-se, alcançando outras periferias irradiadoras de culturas, sobretudo de diferenças étnicas, decorrentes do influxo migratório ocorrido ao longo de XIX e XX. A literatura passará, portanto, a expressar culturas diferentes, absorvendo a rica diversidade de entonações que se impõe sobre o pano de fundo do regionalismo tradicional. Com relação à literatura brasileira lato sensu, as obras de escritores como Milton Hatoun e Raduan Nassar são exemplares dessas novas configurações. Mais do que a forma discursiva, que Rama valorizou como tradução estética de uma nova realidade, há o desejo realista de representar a diferença, influindo na concepção da narrativa e nas demais categorias, como tempo, espaço e personagens.

É nesse sentido que o regionalismo gaúcho amplia sua gama temática e conceitual, para dar conta das diferenças culturais surgidas a partir do processo de colonização tardio ocorrido no Estado, com a formação de bolsões culturais reveladores da dominância de diferentes etnias. Essas “comunidades” culturais não correspondem apenas a zonas rurais, mas representam regionalismos urbanos simultâneos e diferenciados pela procedência da cultura importada. Tais simultaneidades híbridas sugerem rever o conceito de regionalismo herdado e propor o conceito de regionalismo étnico, que se produz a margem da cultura agrária, fronteiriça e campagnard e das novas propostas, parafrásicas ou parodísticas, que marcam a literatura das últimas décadas do século XX. Não se trata mais do Regionalismo escrito em letra maiúscula, como gênero, período estilístico ou manifestações nacionalista comum a literaturas incipientes e transplantadas. Trata-se de uma noção mais ampla, que tem a ver com a necessidade, ínsita ao homem, de representar-se desde suas origens, registrando o seu pertencimento. Essa será a palavra-chave para a compreensão do conceio de regionalismo étnico. Esse se mostra no poema e nas diversas formas narrativas, como o conto, a novela, o romance e, por conseqüência, nas linguagens derivadas, como roteiros para cinema e televisão, textos publicitários e outros.

Em artigo publicado nos anos oitenta(46), Maria Luiza Armando examina a presença do imigrante na literatura regional: trata-se do “gringo”, que representa ameaça em Simões Lopes Neto. Também em Alcides Maya, o estrangeiro é índice de ruptura com o mundo mítico tradicional. Na obra dos herdeiros de Martín Fierro, a desconfiança para com o estrangeiro expressa um sentir coletivo, ao menos no centro de determinadas comunidades discursivas. Simões Lopes e Maya pertenciam à aristocracia rural, então ameaçada pelo advento de uma burguesia urbana, logo industrial, representada por imigrantes alemães e italianos. A colonização concentrava-se nas áreas rurais, e não as urbanas, para onde se dirigiam imigrantes de nível social e financeiro privilegiado: assim, surgem duas sociedades diferentes e autônomas desde o século XVIII: a tradicional e a colonial(47). Cabe lembrar que a existência de sociedades diferentes e autônomas foi sempre apontada como característica das regiões latino-americanas em que a cultura autóctone sobrevivera em choque com o colonizador. Sintetizando as informações de Armando, a partir da segunda metade de XIX, alterou-se a fisionomia econômica do Rio Grande do Sul e a exportação de produtos pastoris foi sendo substituída pela comercialização de produtos agrícolas, o que promovia o crescimento da cidade. No final do século, a zona da campanha deixa de ser hegemônica. As colônias, com o tempo, irão ligar-se ao processo de industrialização, dando origem a importantes eixos industriais: o primeiro, ligado à produção agro-pastoril, e o segundo, formado por Porto Alegre e Caxias do Sul, desenvolvido a partir do trabalho imigratório.

No entanto, a ascensão do imigrante, por diversas causas, não correspondeu a sua imediata assimilação cultural. O isolamento, intensificado pela Primeira Guerra, associou-se aos equívocos administrativos dos governos locais que não só combatiam a preservação dos costumes dos colonos, mas também os obrigavam a adoção da língua e das culturas nacionais. Equívocos e contradições parecem ter marcado esse percurso que é registrado em inúmeros textos críticos de época, inclusive na imprensa, por Simões Lopes Neto e Alcides Maya. Os resultados desse confronto foram estudados por sociólogos e antropólogos sob o rótulo de “a questão do imigrante”(48).

Maria Luiza Armando sugere a hipótese de que a imigração tenha, de algum modo, propiciado as condições para o surgimento em bloco do regionalismo literário, hoje referido como tradicional. Seria ele uma resposta cultural visível à ameaça da estranha solidariedade étnica que se fazia sentir no campo e na cidade. Esse mesmo fator já apontara Ricardo Rojas com relação ao regionalismo na Argentina.

No entanto, quase vinte anos depois dessas observações, encontra-se ainda em processo, por parte dos descendentes dos primeiros colonos estrangeiros, a apropriação de elementos constitutivos do regionalismo fundado na mitologia do gaúcho. É possível que o desejo de se identificar com os símbolos locais os esteja impelindo a assimilar, ao menos, a estereotipia folclórica. Porém, para além disso, estão-se construindo novas culturas regionais, que arejam a literatura, com novos olhares ou, melhor, com uma nova respiração. O que está mudando é, certamente, o lócus de enunciação do escritor. Pois se o imigrante foi tema e personagem da literatura gaúcha, agora são os escritores, seus descendentes, que criam esses registros. Assim, a literatura irá depender, quanto à focalização e à autoria, da circunstância original e étnica do ser colono. Nos contos de Fernando Neubarth(49), por exemplo, há um deslizamento de linguagem que recupera a oralidade alemã, no século XX, deixando ler uma visão particularizada e regional de um mundo não raro submetido a um enquistamento étnico. O mesmo pode-se dizer de alguns livros de Charles Kiefer. E dos romances e novelas de José Clemente Pozenatto, quando traz, para a literatura, o percurso dos colonos italianos que constroem uma nova cultura na serra do Rio Grande do Sul. Há, em todos eles, mais do que a recuperação da saga no nível da história. Todos querem registrar um processo interno de transformação do homem, do que resulta uma cultura regional diferenciada.

Na falta de melhor designação, esse regionalismo novo, enriquecido pela diversidade das culturas subterrâneas, pode ser chamado regionalismo étnico. Como outra forma qualquer de regionalismo, ele se submete aos caprichos da mídia, mimetiza-se, empresta-se ao cinema onde atrai pelo exótico da proposta temática, mas também pela substância humana de onde provém sua originalidade. Chama-se atenção para o fato de que o regionalismo étnico não sucedeu a qualquer tipo de regionalismo fronteiriço ou campagnard. Eles existem e convivem, de modo simultâneo, na ficção, na ensaística, na mídia, em manifestações culturais diversas, interferindo uns nos outros e se deixando tocar por outros sistemas semióticos. Cabe atentar para o fato de que todos os regionalismos decorrem de diferenças culturais.

No entanto, os mapeamentos regionais tiveram sempre por base a categoria espaço. Os regionalismos se circunscreveram a territórios geográficos demarcados, onde existia concentração de determinadas culturas e onde a história local era partilhada por um grupo, traçando normas sociais comuns. A perspectiva crítica, ora proposta, permite reconhecer núcleos regionais dentro de espaços dominados por diferentes culturas. No Rio Grande do Sul, um exemplo flagrante vem sendo estudado pela pesquisadora Karla Muller: a existência de uma comunidade árabe incrustrada na zona de fronteiras. Na cidade de Santana do Livramento, divisa do Brasil com o Uruguai, onde a imprensa midiática é bilíngüe, existe uma concentração de árabes que publicam,em sua língua, uma página num periódico local. O que eles lêem, o que escrevem, o que estão a produzir diferencia-se e demarca uma região que já não é mais espacial, mas internalizada. O regionalismo étnico encontra-se também nos centros urbanos, onde a tendência para o estudo e a preservação da cultura de origem está-se tornando cada vez mais forte em resposta à globalização. Veja-se, por exemplo, o vigor com que a comunidade judaica expressa sua visão de mundo na obra de escritores como Moacyr Scliar, recentemente eleito membro da Academia Brasileira de Letras, e, ainda, Rafael Bán Jacobsen e Cíntia Moscovich.

O regionalismo étnico, porém, não se limita a dialogar entre seus pares, recuperando valores de uma etnia alterada pelas forças da diáspora ou do êxodo. Esse regionalismo é um produto híbrido de muitas vozes atemporais, que se encontram na produção artística. Ele expressa uma nova intenção, entendida como visão de mundo, que traz os paradoxos de sua condição: atrai e agrega, ao mesmo tempo que exclui pela diferença.

Ao encerrar este ensaio, cabe reconhecer que a revisão dos estudos regionais vem sendo no Rio Grande do Sul, prática constante. As abordagens transdisciplinares são dominantes, resultando na publicação de livros e ensaios bastante investigativos, muitos dos quais centrados na questão das fronteiras em seus múltiplos sentidos. Dentre essas publicações encontram-se os estudos sobre o romance de 30 e outros, específicos, examinando obras individuais. De modo geral, há a tendência de apontar para o regionalismo como categoria trans-histórica, que se multiplica em sistemas diversos, como na músicaiii e nas artes plásticas, dando continuidade a uma tradição que ora se renova, ora se desloca em diferentes espaços e se mimetiza para sobreviver, deixando-se assimilar por outras formas de comunicação.

Além disso, ao lado do interesse pela cultura regional, na sua rica proximidade com o Prata, estão sendo estudadas as transformações discursivas por que passam as histórias, as literaturas e as cosmovisões tradicionais. Joseph Love, nos anos setenta, estudou a história regional do Rio Grande do Sul; depois dele, investigadores estrangeiros têm se voltado para a história gaúcha e sua literatura. Dentre esses John Chasteen e Spencer Lewis Leitman, historiadores norte-americanos, ambos questionando interpretações canônicas de movimentos tradicionais, como a Revolução Farroupilha e a Revolução de 1893(50).

Todas essas revisões acontecem, ao mesmo tempo, na práxis da criação literária. Além das paráfrases da história, da desconstrução e da reinvenção dos mitos, através da paródia, por exemplo, o regionalismo sul-rio-grandense vem sendo revisitado em sua permanência e nas variáveis que apresenta. Como Ligia Chiappini desenvolve no ensaio Martín Fierro e a cultura gaúcha do Brasil, integrando a edição crítica sobre o poema de José Hernández (2001) (51), as fronteiras estão abertas e Martín Fierro adentra a pós-modernidade, absorvido por textos contemporâneos. Assim, Donaldo Schuler, com sua trilogia campeira: Martin Fera, Chimarrita e Tatu, por ela referida; também Ivo Bender, parodiando historietas regionais em seus Textos breves para teatro. Ampliando a visada, cabem nessa listagem romances de Tabajara Ruas, contos de Sergio Faraco, poemas de Luis de Miranda, os contos bilíngües de Aldyr Schlee, romances de Alcy Cheuiche. Ultimamente, novos escritores sul-rio-grandenses vem retomando a questão: Tailor Diniz, com O terror no pampa (2004), José Carlos Queiroga, com a paródia Tratado ontológico acerca das bolas do boi (2004) e Letícia Wierzchowski, com A casa das sete mulheres, transformado em mini-série pela TV Globo. Os exemplos se multiplicam e sugerem pensar no paradoxo interno do regionalismo que se impõe pela diferença e, simultaneamente, agrega pela identificação, enquanto se deixa comercializar pela mídia que explora o elemento exótico, o mais aparente.

Talvez seja essa a contingência cultural de um estado sulino que sempre viveu das fronteiras com sua permissiva porosidade: as reais, entre países distintos e as internas, envolvendo culturas em permanente diálogo. Pela amplitude que a matéria oferece, é no âmbito da Literatura Comparada que melhor cabem os estudos sobre o regionalismo. Sua manifestação constante na música popular e erudita, na literatura, nas artes plásticas e no cinema é um desafio aos que afirmam o caráter conservador do regional e sua incompatibilidade com o mundo globalizado. O sucesso recente da minissérie A casa das sete mulheres, cujas cenas transcorrem nas estâncias durante a Revolução Farroupilha, é uma amostra do confronto e das apropriações entre regionalismo e globalização. Ao glamourizar a história das mulheres gaúchas que sobreviviam nas estâncias, à espera dos maridos guerreiros, legitima-se uma visão de mundo orgulhosa do seu segregacionismo e de sua independência. Nesse mesmo sentido, foram roteirizados e adaptados para o cinema romances de diversos escritores gaúchos, de temática marcadamente regional. Não há dúvidas de que o interesse pelo regionalismo tem a ver com a recepção midiática do seu exotismo. Não obstante, esse ato de mostrar-se também pode decorrer da necessidade de arejar mazelas sociais, libertando-as de sua carga ancestral e reverencial.

Este estudo encontra-se em progresso. No entanto, ele sugere alinhavar algumas conclusões acerca da mobilidade do regionalismo, de sua permanência e capacidade para deixar-se legitimar por outras formas, circulando simultaneamente entre diferentes classes sociais de receptores.

 

 


 

 

Notas:

(1) Maria Luisa Armando, no artigo O regionalismo como fenômeno global (1989) posiciona-se contra a “confusão” conceitual , insistindo na diferença entre literatura regionalista e gauchesca. Talvez esse atravessamento dos conceitos seja indicativo da complexidade do regionalismo que é, sem dúvida, um conceito problemático.
(2) A expressão “comarca pampiana”, criada por Ángel Rama, é firmada por Ligia Chiappini para designar o projeto que coordena junto à Cátedra de Brasilianística, na Universidade Livre de Berlin, “Fronteiras Culturais e Culturas de Fronteira na Comarca Pampeana: Obras Exemplares” (2000).

(3) No artigo intitulado Revisitando a tradição (1992) Ruben Oliven indaga: Como explicar que em certos contextos o regionalismo seja considerado uma postura conservadora, e noutros uma bandeira progressista? O que está por trás das reivindicações regionalistas?
(4) São abundantes os estudos sobre obras, autores ou o regionalismo em determinados países latino-americanos. Está a desafiar os estudiosos comparatistas a elaboração de um estudo mais aprofundado sobre os diálogos regionalistas na América e também sua relação com as literaturas regionais dos países europeus.
(5) O crítico costariquenho Bernal Herrera aponta a coincidência entre regionalismo e “novela de la tierra” e as relações entre a questão temática e a estrutural. Por fim, indaga sobre as relações entre regionalismo , indigenismo e romance de protesto ambientado no meio rural, foco de interesse dos estudos de orientação marxista. HERRERA, Bernal. El regionalismo hispanoamericano: coordenadas culturales y literárias. In: REVISTA CASA DE LAS AMERICAS, 224, JULIO-SEPTIEMBRE, 2001.
(6) No ano de 2005, por exemplo, o Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, publicou uma série de reportagens com o intuito de unir “renovação e tradição”. Segundo essa proposta, são contemplados temas, como o desfile moderno, a pilcha com estilo gringo, o orgulho de ser gaúcho.(ZH, 15.set.2005) Também no Correio do Povo, tradicional periódico do Estado do Rio Grande do Sul, centraliza o desfile farroupilha do 20 de setembro, data em que foi deflagrada, em 1835, a mais longa guerra civil da história do país. Ambos periódicos registram as transformações da tradição, com a apresentação de carros alegóricos e a presença de forte influxo platino nas vestimentas regionais. Notam também as divergências decorrentes, criando tensão entre o novo e o antigo, representado pelo MTG. Segundo autoridades locais, pretende-se “manter vivas as tradições, mas também gerar emprego e renda” (Correio do Povo, 14.set.2005).
(7) O autor refere a dissertação de mestrado de Marciano Lopes e Silva, que classifica o regionalismo em duas modalidades: o monárquico e o dissidente, este último próximo à formação discursiva da “música latino-americana de resistência”. SANTI, Álvaro. Do Partenon à Califórnia: o nativismo gaúcho e suas origens. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.p.15.
(8) MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920). 2.ED. Rio de Janeiro: José Olympio,1957, p.26.
(9) COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: Universidade Federal Fluminense. 1986. (edição revisada e atualizada por Afrânio Coutinho e Eduardo Coutinho).
(10) Id. Ibidem, p.300.
(11) Id. Ibidem, p.308.
(12) HERRERA, Bernal. El regionalismo hispanoamericano: coordenadas culturales y literárias. In: REVISTA CASA DE LAS AMERICAS, 224, JULIO-SEPTIEMBRE, 2001. Habana.
(13) Embora argumente que em essência o regionalismo não se constitui num fenômeno cultural, Markusen sugere que em muitos casos ele deve ser pesquisado numa instância intermediária na qual as forças culturais podem ser muito atuantes na formação de lutas regionais. In: OLIVEN (1992, p.35).
(14) BORDIEU, Pierre. Apud: OLIVEN, Ruben George (1991-1992), p.35-6.
(15) FREYRE, Julián Cáceres. Ricardo Rojas y los regionalismos culturales.REVISTA NACIONAL DE CULTURA. Secretariade Cultura de la Presidencia de la Nación Argentina, Anõ 5, N.13. p. 27-47.
(16) Id. Ibidem, p.42.
(17) Id. Ibidem, p.28.
(18) Id. Ibidem, p.33-34.
(19) Segundo Cáceres Freyre, Ricardo Rojas foi preso político durante o governo do general Justo, em 1933. Na cidade de Martín Garcia, na Terra do Fogo, completou o capítulo Las províncias futuras, para o livro Las Províncias (1927) ; também adquiriu material para escrever Archipélago Tierra Del Fuego (1947).
(20) PITTARI, Salvador Romero. El Nuevo Regionalismo”. Documento de Trabajo N.32, Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales. La Paz, septiembre, 1989.
(21) HALBWACHS, apud : OLIVEN, 1991-1992, p.36.
(22) A revista Argumento, da Editora Paz e Terra, foi o segundo caso de censura prévia e recolhimento de publicação no Brasil da ditadura militar, por força do AI-5. Segundo nota da imprensa, “A censura a revista Argumento, publicação dirigida por um conselho integrado, entre outros, pelos professores Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda e Barbosa Lima Sobrinho, baseia-se (...) no Ato Institucional n.5 que dá ao Presidente da República o direito de adotar “se necessário à defesa da Revolução” medidas coercitivas previstas na Constituição (...) Jornal CORREIO DO POVO, 14 de dez.1974.
(23) O ensaio encontra-se publicado em: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p.140-162.
(24) BORGES, Jorge Luis. Poesia gauchesca: Hidalgo, poemas; Ascasubi, Paulino Lucero y Santos Vega; Estanislau de Campo, Fausto. México: Fondo de Cultura Económica, 1955. 2 v. (Primera reimpresión, 1984).
(25) BORGES, Jorge Luis. El escritor argentino y la tradición. In: Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1993, p.267-274.
(26) Não será suficiente aproximar os regionalismos platinos e os brasileiros, sobretudo os gaúchos, dominantes nos séculos XIX e XX. Trata-se de comparar o que foi escrito de ambos os lados da fronteira, com vistas a identificar o regional que se desloca da área rural e ocupa um “entre lugar” temático e ideológico, alojado nas periferias das cidades.
(27) Pseudônimo do escritor Ramiro Barcelos, autor do poema satírico Antonio Chimango (1915).
(28) RAMA, Angel. Transculturación narrativa em América Latina. México: Siglo Veintiuno, 1985.
(29) Publicado em: REVISTA CASA DE LAS AMERICAS, Habana. N. 224, jul.- sept. 2001, p.3-24. O autor é Mestre em Filosofia pela Universidade da Costa Rica e Doutor em Línguas e Literaturas Romanas pela Universidade de Harvard.
(30) Id, ibidem, p.3.
(31) Em vários momentos, Herrera alude à possibilidade de substituir o critério temático pelo estudo das ideologias veiculadas pelo regionalismo, pela valorização que dele fazem as teorias marxistas: La influencia directa o indirecta del marxismo favorecia, en cambio, una aproximación crítica a los procesos de marginación experimentados por las zonas y los grupos humanos rurales, y um nuevo interés en aspectos econômicos como las actividades productivas y las condiciones de vida del mundo rural. Id. Ibidem,p.10.
(32) Id, ibidem, p.4.
(33) Leia-se, a propósito: A Geração de 30 no Rio Grande do Sul: literatura e artes plásticas. (Organização de Léa Masina e Myrna Appel). Porto Alegre:Editora da Universidade/PPGLetras, 2000.
(34) O interesse pela Revolução Mexicana ressurgiu nos anos sessenta, em decorrência da Revolução Cubana, (1959). Ainda hoje é referenciada pela proposta política de um governo nacional não totalitário, diferenciado dos modelos de governo dominantes na América Latina ao longo do século XX.
(35) A noção dominante era a do progresso, inscrita, inclusive, no frontispício da bandeira do Brasil. E mesmo textos, como o Martín Fierro, em que o gaúcho é o centro dos acontecimentos narrados, más que reivindicar el valor de los particularismos culturales de tales grupos, solían denunciar la marginación social a la que son sometidos (Herrera, p.7), o que dificultava sua domesticação e absorção pela cultura oficial.
(36) HERRERA, p.15.
(37) DURHAM, Eunice.Ribeiro. A dinâmica cultural na sociedade moderna. (1977) . Apud. OLIVEN, 1991-1992, p.37.
(38) Conforme Rama, o escritor Marcelino Menéndez y Pelayo, autor de História de la Poesia Hispanoameericana, recebera acirradas críticas dos hispano-americanistas por ter reunido as literaturas nacionais, fracionadas, nesse único volume, escrito a partir dos prólogos redigidos para sua Antologia de Poetas Hispano-americanos (1893-1895). RAMA, 1974, p.38.
(39) Os críticos arrolados por Rama são, dentre outros, Luis Alberto Sanchez, Arturo Torres Rioseco, Julio A Leguizamón e Enrique Anderson Imbert.
(40) RAMA, 1974, p.40.
(41) Id. Ibidem, p.42.
(42) RAMA, 1989, p.94-5.
(43) Esse novo regionalismo tem lugar quando el conflicto modernizador instaura el movimiento sobre la permanência, pero aún más que los objetos o valores que transporta desde fuera, es sobre aquellos macerados interiormente que ejerce su impulso. Pone em movimiento a la cultura estática y tradicionalista de la región enquistada, desafía sua potencialidades secretas reclamándoles respuesta, conmueve los patrones rígidos extrayéndoles otros significados no codificados con los cuales estructurar un mensaje válido para la nueva circunstancia. RAMA, In: CANDIDO, 1989, p.96.
(44) Id. Ibidem.
(45) O estudo das culturas fronteiriças, sobretudo no Cone Sul, vem sendo bastante desenvolvido, e com bons resultados, nos países platinos e também no Brasil e na Alemanha, com as pesquisas realizadas pelo Programa PROBRAL-CAPES-DAAD, sob coordenação de Ligia Chiappini e Sandra Nitrini, e com as atividades do Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins, orientadas por Maria Helena Martins. Resultado desses trabalhos encontram-se nos livros : MARTINS, Maria Helena (Org.). Fronteiras Culturais: Brasil, Uruguai, Argentina (2002) e CHIAPPINI, L. MARTINS, M.H. e PESAVENTO, Sandra (Orgs.). Pampa e Cultura: de Fierro a Netto (2004).
(46) ARMANDO, Maria Luiza de Carvalho. O regionalismo como fenômeno global. REVISTA TRAVESSIA, UFSC, Florianópolis, 1 semestre 1986,N.12, p.89-11.
(47) Exemplar desse conflito é a Revolta dos Muckers, que Luiz Antonio de Assis Brasil ficcionaliza no romance Videiras de Cristal, quando os colonos alemães se defrontam com a organização administrativa e política do Estado brasileiro, com seus preconceitos e inépcias.
(48) Id. Ibidem, p.107.
(49) O autor, natural de Taquara, é médico reumatologista e autor dos livros de contos: Olhos de Guia e À sombra das tílias.
(50) Destaca-se a pesquisa da pianista Olinda Alessandrini, sobre a música erudita nos pampas, que ela mesma executa e disponibiliza no CD Pampiano (2004), lançado também em São Paulo e Berlin.
(51) LEITMAN, Spencer Lewis. Raízes sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos. Graal, 1979. CHASTEEN, John. Born in blood and fire. A concise history of Latin America. New York: W.W.Norton, 2001.
(52) CHIAPPINNI, Ligia. Martín Fierro e a cultura gaúcha do Brasil. In: Lóis, Elida e Núñez, Ángel. (Coordinadores – Edición Crítica). José Hernández – MartínFierro . Madrid; Barcelona; La Habana; Lisboa; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Lima; Guatemala; San José; Caracas: ALLCAXX, 2001. (Colección Archivos, 51). p..691-730.



* Léa Masina – Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul , Doutora em Literatura Comparada, Crítica literária.