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Entrevista - Cyro Martins - 80 Anos: Ainda estou em obras | Imprimir |  E-mail


No dia 05 de agosto de 1988, Cyro Martins completou 80 anos. Escritor desde os anos 30, quando iniciaram carreira literária Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Graciliano Ramos, entre outros, Cyro está entre os grandes nomes da literatura brasileira. Em seus livros, ele resgata a história do Rio Grande do Sul para narrar a saga de seu povo, através da análise do mundo rural gaúcho, tendo como temática central a trajetória dos peões de estância expulsos do campo. Enfim, é o drama dos sem-terra. Mas, ao lado do escritor, está o Cyro Martins médico psicanalista que trabalha dez horas por dia e é apaixonado pela profissão. Como ele diz, faz a sua literatura no rabo das horas. É assim que já tem 15 livros de ficção publicados, fora os de ensaio, e a Editora Movimento acaba de lançar seu último romance, O professor. Nesta entrevista ao Jornal Universitário, ele fala de seu passado, de literatura, de psicanálise, do homem contemporâneo. E do alto de seus 80 anos diz que se considera ainda um homem em obras.

Jornal Universitário = JU
Ciro Martins =
CM

JU - Como o senhor concilia a vida de escritor e médico psicanalista?

CM - Esta pergunta me tem sido feita muitas vezes. A minha atividade de médico e de psicanalista eu a exerço com a compenetração de um profissional. É sabido que a literatura, no Brasil, não sustenta quase ninguém, de maneira que seria uma pretensão achar que num país de tantos milhões de analfabetos, de semi-analfabetos, eu pudesse me manter escrevendo, a menos que, ao lado da atividade de romancista, eu exercesse também uma atividade jornalística, por exemplo, como faz parte dos escritores brasileiros. Além disso, gosto muito de minha atividade de analista. A psicanálise é aárea da medicina que tem maior contato com a cultura, relaciona-se com os problemas da antropologia, da sociologia, profilaxia mental e do esclarecimento, enfim, da conduta humana. Portanto, é um estudo empolgante e que nos abre horizontes que antes de Freud nós não divisávamos.

O indivíduo que é escritor faz literatura em vez de fazer ciência

JU - A psicanálise influencia na elaboração dos seus romances?

CM - Ajuda no sentido que me poupa de cometer certos erros psicológicos que outros escritores cometem. Mas tenho sempre um cuidado natural, sem estar prestando atenção para isso, de usar nas minhas escritas de ficção a psicologia intuitiva, que é a psicologia de todo o escritor, e de evitar que transpareça no texto uma base científica. Um leitor psicanalista, psicólogo, psiquiatra, e nós somos todos psicanalistas, poderá tirar conclusões destes trechos, dos caracteres de determinados personagens, mas isso se tira de qualquer livro, porque isso é a vida. O importante é que o escritor consiga transfundir nas suas páginas aquilo que palpita como vida.

JU - Então influencia ...

CM - Sim. Mas por outro lado, se o indivíduo é realmente escritor, ele não se deixa dominar por essa influência e faz literatura em vez de fazer ciência.

JU - A idéia inicial da trilogia do gaúcho a pé era de traçar um painel da história do Rio Grande do Sul?

CM - As coisas foram acontecendo ao natural. Campo Fora é um livro de contos escrito por um jovem ao redor dos 20 anos, baseado nas minhas experiências infanto-juvenis de guri de campanha. Isto mostra como eu ainda presenciei a vida do sudoeste do Rio Grande do Sul, e certamente a campanha do Rio Grande do Sul em geral, tal qual ela tinha sido nos fins do século passado e princípios deste. Uma vida bastante alegre em campanha, um trabalho de campo curioso, uma gauchada sadia, festas, bailes, carreiradas. Vivenciei tudo isso como criança e adolescente e no livro Campo Fora reuni todas essas vivências e figuras em forma literária. O primeiro conto do livro se chama Alma Gaudéria e tem um personagem, um gaúcho que adorava as carreiradas; já era o momento de fim das carreiradas que duravam três dias e que foram na venda do meu pai. Isto foi por volta de 1927, já havia muita gente que ia de automóvel nas carreiras, havia também carretas, chinas como nas carreiradas grandes de antigamente. Esse gaúcho estava de pé com seu sobrinho, um menino, olhando aquela despedida e achando triste. De repente, falando sozinho, ele disse: Vai se acabar mesmo. Eram palavras proféticas, e esse gaúcho era meu tio e o guri era eu. Essas palavras eu registrei e estão nesse conto.

O peão tradicional transformou-se num operário rural e o campeiro passou de figura eqüestre a simples pedestre.

JU - Como o senhor viu estas mudanças?

CM - No segundo livro Sem Rumo, a coisa mudou de figura. Ele é baseado nas minhas experiências e vivências de médico na cidade da fronteira sudoeste, em Quaraí, minha terra natal, onde trabalhei três anos, de 1934 a 36, logo depois de formado. Ali vivenciei a miséria do gaúcho deslocado da sua terra. Desde que vim para Porto Alegre estudar, de 1920 até 1933, todas as férias eu ia para a campanha, para a venda do meu pai, num lugar chamado Cerro do Marco, e eu vinha observando que a campanha se esvaziava. Nas férias, eu perguntava: E o seu fulano, onde está?, e me respondiam que tinha se mudado para a cidade, fazer o quê?. Ah, não sei. O meu pai era muito contra isso e dizia: Eu sou da campanha e tenho que viver aqui. Ele achava que aquela gente estava dando uma cabeçada indo para a cidade, mas ao mesmo tempo compreendia que não havia outro remédio porque quem tinha um pequeno campo não podia se sustentar e então vendia para um grande fazendeiro. Os costumes campeiros modificaram-se, não havia mais grandes tropas para o saladeiro, os campos estavam bem subdivididos, com bons aramados, isso contribuía para amansar o gado e facilitar a vida do trabalhador rural. De sorte que as grandes festas, as marcações, as domas, iam se modificando, as técnicas modernizaram-se. Então deixou de ser uma festa e passou a ser um trabalho, e o peão foi deixando de ser um peão tradicional, de estância, e foi se transformando num operário rural. Como operário rural, ele ficou sem as características específicas que fizeram dele uma estampa histórica. Bem, em Sem Rumo, que fixa as minhas vivências nesses três anos, mostrei o drama da nossa gente de campanha que migrava para a cidade e que ia morar nos seus arredores formando as coroas de miséria. Na verdade, acho que fui um dos primeiros, ou o primeiro, a usar essa expressão coroa de miséria. Então, em Sem Rumo, aparece a figura do gaúcho a pé e essa expressão retrata o campeiro riograndense despilchado das suas ... tradicionais, lenços, botas, esporas, chapéu, bombachas largas, arreios e cavalos. Quando se mudou para a cidade, ele levou o cavalo e os arreios porque de nada lhe serviam, e da figura eqüestre passou a ser um simples pedestre. Daí eu ter batizado de gaúcho a pé. Fui o primeiro a usar essa expressão que está circulando, hoje.

JU - Em seus livros aparece a figura do gaúcho deslocado do seu meio. E o senhor sentiu-se também desenraizado ao vir para Porto Alegre?

CM - Claro, eu era uma criança de 11 anos e vinha da campanha. Mas, mesmo assim, eu tinha bastante entusiasmo pelo estudo, contagiado pelo desejo de meu pai que a gente estudasse. Por isso, eu suportei bem esse desenraizamento e nunca tive problemas de adaptação. Ao contrário, adaptei-me de forma muito rápida e produtiva. Estudei bem durante os quatro anos em que estive no internato dos jesuítas e foi uma boa experiência que, aliás, está romanceada no meu livro Um menino vai para o colégio. Além do mais, a gente não tinha outra alternativa. Ou saída de lá ou ficava como empregado de venda, capataz.

JU - A temática analisada na trilogia do gaúcho a pé continua sendo um dos maiores problemas do Rio Grande do Sul e do Brasil, ou seja, a reforma agrária. Qual era o seu objetivo?

CM - Escrevi Sem Rumo em 1935. A minha intenção ingênua era de chamar a atenção das pessoas sobre o problema. Eu já o via grande na época, mas temia que fosse se tornar muito maior, como infelizmente se tornou. Tentei fazer sem um espírito de imitação, sentindo algo que era próprio da minha pessoa. Era parecido com a atitude dos nordestinos como José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos e outros que estavam começando naqueles anos, fazendo um levantamento das suas regiões. Logo captei o sentido da obra deles e o mesmo poderia ser feito aqui; um levantamento sócio-econômico e psicológico e uma denúncia também. Essa foi a intenção.

JU - A sua visão do gaúcho é desmistificadora, diferente do mito que se criou no Rio Grande do Sul. E ... Brandino, personagem central de O Príncipe da vila, é o fim de uma espécie?

CM - Na verdade, o Brandino era um homem da cidade que foi para a campanha quase por descuido, e como ele não era um homem de grandes iniciativas acabou ficando, e cumpriu o seu fadário. Toda a figura do Brandino é curiosíssima, sua paternidade era incerta, tinha seis, sete pais e ninguém sabia qual era o verdadeiro. O fato de ele ter nascido numa casa onde havia apenas mulheres, a mãe e cinco irmãs, era o único homem, portanto, e a história do galo músico com o qual ele se identificava, tudo isto dá ao personagem uma conotação bastante incomum.

Com fatos do cotidiano pode-se fazer uma boa obra mas faltará o sangue da elaboração que não foi fisgado na alma

JU - Na sua opinião, qual a função do escritor na sociedade de hoje?

CM - Não creio que a gente, escrevendo diretamente sobre o que está se passando, vá influir muito. Acho que é através da ficção bem realizada, que se poderá influir mais sobre o pensamento das pessoas. Quando escrevi Sem Rumo, pensava que se escrevesse um ensaio poderiam gostar, mas em pouco tempo desapareceria. No entanto, escrevi-o em 1935, e ainda está circulando. É através da ficção que os escritores podem influir, como sempre influíram, na formação da mentalidade dos povos. Não se nota essa influência, as ramificações , mas acho que são idéias que vão, através do sentimento, se infiltrando na alma e estruturando seu caráter. Por outro lado, acho que é muito arriscado e é difícil que se possa fazer uma boa obra de ficção apanhando fatos da atualidade, por exemplo. Pode-se tirar fatos dos jornais e um dia ter material para fazer um romance. E, se o indivíduo é realmente escritor, se é habilidoso, ele é capaz de fazer até uma obra bem feita. Mas faltará a essa obra o sangue da elaboração que não foi fisgado na alma. A gente se atualiza e escreve coisas que têm influência atual, mas com um certo retardo, com vivências da infância, da adolescência e da vida adulta. É preciso passar por um tempo de elaboração para poder sair um sangue-nervo. Ao mesmo tempo em que estamos elaborando cenas, vivências, figuras, isso em anos e anos, a gente está vivendo o dia de hoje, então consegue adaptar essa intenção de elaboração, de saída, aos dias que correm. Penso que isso é o que traduz ou o que leva as grandes obras e consegue fechar num livro as etapas da vida histórica de seu povo.

Mas o ideal mesmo é a gente poder não se sentir jamais em fim de festa e experimentar o gosto de viver no devir do dia-a-dia, infinito recomeçar da criação.

JU - Como o senhor se sente completando 80 anos?

CM - Completo esses 80 anos de uma maneira muito feliz porque eu os faço por mim e pelo meu pai que morreu cedo, com 56 anos. Era um homem forte e sadio, mas pegou uma febre tifóide aguda, para a qual não havia tratamento na época. Ele desejava chegar aos 80 e manifestava essa sua vontade. Inclusive, essa febre tifóide foi uma devastação na minha família. Eu escapei ali, ali. Mas a maior importância em relação aos 80 anos é que chego a eles em plena atividade como médico psicanalista e como escritor. Continuo trabalhando dez, 11 horas por dia, fazendo minhas conferências, publicando livros, escrevendo artigos. Eu acho que esta é a satisfação maior. E é claro, rodeado pelos familiares e amigos.

JU - Então, a idade não assusta?

CM - Não, estou tranqüilo, olhando para a frente.

JU - O senhor tem medo da morte?

CM - Pois a morte... Eu nunca pensei muito apavoradamente a respeito da morte. Eu acho que as angústias todos têm. Em qualquer idade se pensa na possibilidade de morrer. Claro que quando se tem 80 anos, isso é mais comum porque é natural que os mais velhos vão primeiro, depois os mais moços. Apesar de que às vezes acontecem injustiças tremendas, morrem os mais jovens e ficam alguns mais velhos que às vezes não valem nada, não é?

JU - Como são preenchidas as suas horas de lazer?

CM - Ah, eu gosto de assistir filmes na televisão, ouvir música, gosto muito da Rádio Universidade. Mas, geralmente, nos intervalos eu leio. Agora, me sinto à vontade é quando estou escrevendo ficção. É o momento de maior prazer.

JU - Quais são suas leituras preferidas?

CM - Leio e releio bastante. Machado de Assis, Carlos Drummond, Proust e livros de psicanálise. Tenho sempre um livro na cabeceira que estou relendo. Reli, agora, grande parte do Pedro Nava, que gosto muito, peguei Guimarães Rosa, que quero reler também. Mas tudo isso com muita falta de tempo, pois tenho que estudar muito na minha profissão e me sobram apenas os fins de semana e as férias. Vou sempre para Atlântida e lá me instalo; levo minha máquina portátil e escrevo, muitas vezes levo alguma coisa alinhavada.

O instinto de morte da humanidade deve ser neutralizado pelo instinto de vida

JU - Depois de ter acompanhado tantos acontecimentos neste século, que perspectivas o senhor vê para o homem contemporâneo?

CM - As perspectivas não são lá muito coloridas, não é? Este livro aqui, Guerra e morte, organizado pelo Dr. Gley Costa e com prefácio meu, é uma argumentação cerrada em torno da necessidade urgente de acabar com as armas nucleares. Todos sabemos que isso é um prolongamento do que sempre houve na história da humanidade, esse espírito guerreiro que não é nada mais nada menos que uma demonstração coletiva do instinto de morte. Todos os seres humanos têm. A gente neutraliza esse instinto de morte através do instinto de vida. Então, é preciso estimular este instinto de vida através do amor e do respeito entre as pessoas. Esta é a melhor alternativa.

JU - O senhor revisa muito a sua linguagem?

CM - Não, eu reviso muito pouco. Escrevo direto na máquina. Prefiro assim. Quando bato uma frase, ela já está pronta na minha cabeça.

JU - Dividir o seu tempo entre a psicanálise e a literatura não parece tarefa fácil...

CM - Eu começo a trabalhar às 7h45min, atendendo pacientes até às 20h. Só escrevo nos fins de semana, principalmente sábado à tarde. Sempre, nas férias de verão, quando vou para a praia de Atlântida, escrevo muito.

JU - O que o senhor diria para um jovem que está começando a escrever?

CM - Eu sempre digo que se deve publicar desde cedo porque se deixar na gaveta para depois, possivelmente não saia nada, o mofo da gaveta é fatal. A obra artística é uma lenta construção. Exige muita dedicação, muita renúncia.

JU - Seu último livro que se chama O Professor está sendo lançado agora. E para o futuro, existe outro projeto?

CM - O meu próximo livro vai ser mais ou menos de memórias, uma conversa, eu vou ser entrevistado. [cf.Para início de conversa] Aliás, esse tipo de livro está muito em voga, não é verdade? Vários escritores têm feito isso.

JU - O senhor se considera uma pessoa realizada?

CM - Eu não gosto muito dessa expressão. Penso que a pessoa que se acha acabada e perfeita está liquidada. Então, me considero ainda em obras. Há sempre uma chance de melhorar.

 

- Entrevista concedida a Elisa Henkin e Simone Bobsin,
para o jornal Universitário. Porto Alegre, agosto de 1988.

 


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