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Nos Açores, o regionalismo versus a consciência insular | Imprimir |  E-mail

A Literatura Açoriana é antiga de cinco séculos; criada como uma expressão regionalizada da Literatura Portuguesa, reflete e representa aquilo que poderíamos descrever como consciência insular. Trata-se de uma expressão controversa, porque de início temos de excluir o regionalismo tout court, que é, como se sabe, limitante, conservador e passadista, cingido pela intenção apenas documental. Tratamos, aqui, de uma apreciação crítica da realidade açoriana, quase um olho externo, que vê e que julga mediante desejável distanciamento. É importante observar que o Arquipélago dos Açores - dada sua situação de meio-do-mundo, ponte entre continentes, e considerando sua geografia áspera, onde não são raras as manifestações vulcânicas e os abalos de terra - estimulou a imaginação dos europeus antigos, que deram explicações fantásticas quanto à sua origem, chegando ao ponto de considerá-lo como restos da antiga civilização da Atlântida. Este rico imaginário necessariamente teria suas conseqüências literárias, e observamos que mesmo os escritores insulares do período pós-25 de Abril referem um passado de lenda; assim vemos como em Contrabando original, de José Martins Garcia, o capítulo XXI, intitulado O problema das origens, a narração toma contornos mitológicos: Conta-se que, em meados do século XIX, um veleiro foi tragado em noite de temporal a Sul da ilha. O único sobrevivente - meu bisavô Saul Rafael - foi encontrado aparentemente morto entre o calhau miúdo, na baía onde desembarcara séculos antes, Fernão Álvares Evangelho, um dos supostos descobridores da ilha montanhosa e agreste, várias vezes incendiada por vulcões e penetrada por línguas de lume advindas do oceano. (p.92)

Em Meu mundo não é deste reino (1983), este último de João de Melo, aparece uma lenda, desta vez a explicar a descoberta e povoamento do lugar da Achadinha, na ilha de São Miguel. Seria até desnecessário dizer que o tratamento do mito dá-se, nestes dois autores, com forte carga crítica - e que passa pela ironia e pela sátira.

Mas para além da lenda, e naquilo que já significa o quotidiano insular, há o registro: na trilogia Raiz comovida, que alcança grande notoriedade no panorama das letras portuguesas, Cristóvão de Aguiar recupera, mediante a utilização de um léxico de forte sabor popular - por vezes indecifrável para estrangeiros -, os teres e haveres culturais das pequenas comunidades açorianas, constituindo-se em um lúcido repositório da pequenez da vida de seres obrigados à convivência.

Com o romance A fome (l978), José Martins Garcia preocupa-se em mostrar que a fome, um componente atávico do povo insular, estende-se à vida do protagonista, que carrega esta fome em seu périplo continental. Formando um pendant está o romance O medo (l982), no qual notamos a quase repetição de um esquema formal: alternando cenas da ilha e do Continente, vemos o desdobrar de uma intenção narrativa que objetiva contemplar a visão simultânea dos dois mundos: o primeiro com seu caráter idílico, ingênuo e repetitivo; o segundo com suas más-intenções e seu desencanto. A uni-los apenas as duas marcas: o medo e a fome. A diferença está em que a fome e o medo, nas Ilhas, possuem o caráter de fatalidade, pois derivam desde condições geográficas, meteorológicas e geológicas, até aquelas provenientes de uma antiga submissão à insensibilidade da Capital; já o medo e a fome, no Continente, surgem como criações perversas de um sistema que tanto poderia criá-las, como também gerar a segurança e a saciedade. Em ambos romances já se anuncia a marca que viria a definir o Leitmotiv de José Martins Garcia, que de resto pode ser estendida a inúmeros escritores açorianos, e que nos atrevemos a caracterizar - vá lá a tentativa de teorização - como a estética da permanência. Nas Ilhas "nada acontece", isto é: o que acontece hoje, inclusive o medo, vem de outras eras. Os ritos tratam de sacralizar o costume:

Da memória fendida por inúmeros terramotos brotava a compenetração aguda de gentes em eterna semana santa, Senhor dos Passos em cima do andor (..)in A fome (p. 38)

Mais tarde aparece, no já referido Contrabando original:

O ano novo não era um novo ano; era uma cantoria igual à de todos os anos. Todos os anos se matava o porco, o mesmo porco. Todos os anos nascia o mesmo Menino Jesus depois das mesmas novenas. E todos os anos, sem esperança de escapar ao destino, o Menino nascia, ia ao Templo dar uma lição aos doutores (e os mesmos doutores nunca aprendiam a lição; estavam sempre em estado de ignorância e o menino ensinava-lhes inutilmente a lição de sempre), pregava, aturava o Demónio e suas tentações, era vendido por Judas, negado por Pedro e morria na cruz, entre dois ladrões.(...) Todos os anos se semeava o mesmo milho (...) se rapavam as mesmas vinhas (...) se bailava a mesma chamarrita, se tosquiava a mesma ovelha (...) e tudo sempre em ciclo e círculo até que Deus viesse com o ponto final". (p. 5l).

Em outras palavras: o mesquinho ambiente da Ilha sonega a seus habitantes a possibilidade da mudança. É um mundo sem cores, destinado a sucumbir na ignorância e na repetição daquilo que já os avós repetiam desde todas as eras, todos os tempos; a Ilha assim assume seu papel de cárcere imobilizador.

Lúcia Helena Marques Ribeiro, em A questão das identidade da terra e a idéia de permanência em Contrabando Original ,de José Martins Garcia (1998), verifica:

Os rituais são, então, a representação da vida; o elo que liga todos os elementos da construção da narrativa. Como realidade e como metáfora, são mantidos e se fecham em si e sobre as personagens, tornando-se um peso a ser carregado: o ritual do nascimento e o da morte, os rituais da religião, o ritual familiar e o da violência, o do plantio e da colheita, o ritual dos sismos, o da fome e da emigração (p. 37).

É nos contos de Morrer devagar (l979) que essa visão da permanência atingiu níveis espantosos: trata-se de uma série de pequenas histórias nas quais a perspectiva insular da imutabilidade aparece em toda sua força. Sem qualquer contemplação, José Martins Garcia faz um inventário da mesmice e da falta de horizontes. Até a morte deve seguir seus códigos: quando o Capitão Cavalo está em seus momentos finais e num arroubo de vitalidade quer escrever com o sangue da própria garganta o seu testamento, o que viria a subverter irremediavelmente o código da dignidade, sua quase-viúva recomenda-lhe: "José, morre devagar". Isto significa: deves morrer como morreram todos nesta ilha, por todos os séculos. A brusca originalidade do Capitão Cavalo é punida com a submissão ao ritual da morte, a qual deve ser mansa, pacífica e, em especial, vagarosa.

Burra preta com uma lágrima (1982), de Álamo Oliveira, já possui um tom que o aproxima dos acontecimentos do 25 de Abril. A protagonista, num primeiro instante, parece ser a Burra Preta, que, levada pela fatalidade, peregrina pelas Ilhas e vem encontrar um triste fim, desde logo antevisto por suas "burrices". A metáfora torna-se gradativamente clara: aceitando seu destino, a burra deixa-se atrelar à carroça, cônscia de seu papel coadjuvante, mas imprescindível; alegra-se em ser útil ao meio em que vive, mas sem abdicar da fantasia e da capacidade de rebelar-se quando é preciso; por outro lado, encara com naturalidade o imperioso sair para outras terras; entrega-se depois à morte, sim, mas não como uma capitulação, mas com digna autonomia emocional. Isto é: sabe que não há outro caminho, mas que também ressurgirá em tantas outras burras. Enfim, não morrerá. E ao fim e ao cabo, exsurge a verdadeira protagonista, que é a gente açoriana, desta e de outras eras. E ao fim e ao cabo, exsurge a verdadeira protagonista, que é a gente açoriana, desta e de outras eras.

Como se percebe por essas amostras pontuais, os escritores açorianos pós-Revolução dos Cravos engajam-se numa visão plural de sua terra de origem, escapando ao puro regionalismo pela vertente de uma consciência que os impede de aceitar a representação mimética de uma realidade folclorizada - a qual, em qualquer quadrante do mundo, é sinônimo de equívocos e que, no passado, gerou tantas obras que pouco ou nada colaboraram para o conhecimento mais isento dessa mesma realidade.

Luiz Antonio de Assis Brasil


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