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O discurso do outro | Imprimir |  E-mail

Flávio Wolf de Aguiar


Eu e meu eu, isto é, aquela parte de mim que é o eu profundo, entramos em desavença. Meu eu me comunicou que estava cansado de ser eu. Eu já não estava mais com nada. Agora todo mundo só queria saber do outro: o olhar do outro, o silêncio do outro, o território do outro, o discurso do outro. Se for da outra, então nem se fala! Eu, esse, simplesmente já era.

Tentei argumentar, mas não adiantou. Veja, disse-me ele, isto é, eu: antes eu, um eu, era tudo. Eu era o sujeito. Agora não: eu passou a ser só um fragmento, e não muito importante. Antes eu era uma viagem. Agora eu era um naufrágio. Antes eu batia na mesa e impunha a ordem, o ponto de vista. Agora o que importava de fato era o ponto de vista do outro. O não eu. O contra eu. Eu que fosse se lascar.

Antes eu ia à festa e soltava a franga. Agora quem vai e se solta na festa é ela, a franga. Eu que fique com meus botões. E sorria amarelo, mas não interfira, se ela quiser dar tudo, mas tudo mesmo, para quem? Para o outro! Agora, se você, isto é, eu, quiser a franga do outro, ah, haverá uma discurseira: colonialista! Machista! Eurocêntrico! Egocêntrico! Traidor! Etcétera! Já o outro não. O outro é pós-colonial, ele está no não-lugar, isto é, em toda parte. Mas o que esse outro gosta mesmo é de estar no entre-lugar, que você, isto é, eu, sabe muito bem o que é e onde fica.

Bom, haverá um atenuante se você - veja bem, sou eu - tentar a mulher do próximo. Porque aí poderemos - você, eu e meu eu - alegar que estamos rompendo com a moral judaico-cristã. Isto é bem visto. Em caso de dúvida, dê, isto é, demos, você, eu e mais eu, um pau na moral judaico-cristã. Mas sem muito assanhamento. Porque logo eles, isto é, os outros, as outras, sobretudo, a franga, viram-na contra você, isto é, eu e mais eu, o pobre de mim.

Enquanto isso, o outro deita e rola. Nas faculdades, só dá a presença do outro. Na geografia, só se fala da margem entre eu e o outro. Na história, somos culpados, eu, você, meu eu, seu você, todos nós, pela derrota do outro. E por isso temos que ouvir a voz dele, mesmo que seja de uma chatice sem fim. Nas letras, só dá o outro, mais os outros, as outras, eles e elas invadiram todos os livros, todos os romances, todos os poemas. Todos querem a palavra outra. No teatro, você, eu, tu, nós, vós, só temos que cuidar para que não se usurpe a mimese do outro: só quem pode imitar o outro é o outro, nunca mais nenhum de nós, que temos de nos contentar conosco mesmo e com a filosofia da nossa, sua, tua, sobretudo a minha miséria. Na filosofia, só importa a ética do outro, a metafísica do outro. Só o outro pode aspirar a ser, já que o ser do ente sempre lhe foi negado, mas é pela negação que ele chega lá. Mas ai de você, isto é, ai de mim, se negarmos alguma coisa. Eu e você só temos que aceitar. Eu até já desconfio que você, na verdade, é um outro.

Tentei de tudo. Tentei arranjar um outro eu. Comecei a me tornar carioca, a falar com agás aspirados ao invés de erres rascantes. A falar fino ao invés de grosso. Assim: “É só você chegahh lá em casa, vamox fazehh uma féxtifudi”. Fui mais longe: comecei a fazehh muquéca em vex de chuhhaxcu. Troquei o mátchi pelo açaí. Passei a achahh tudo legáu e não maix legall. Comprei umas, dixculpi, umax hheproduçõx de Chagáu. Meu amigo Jâime virou Jááimi. Dei di aprendehh capuêra, fix um plano di ixtudahh tupí na Uxp, puhhque na Uérjch não tem. Virei flamenguixta, vaxcaíno, comecei a pensahh que em Sampa eu pudia sehh curintcha até morrê. O velho Inter de guerra era coisa do passado, coisa do meu eu soterrado.

Não deu certo. Um dia levei uma mina no apê, aliáx, no flétchi, pra comehh xuxí. Vai daí que ela falou: “Máx que calohh!”. E eu: “Mâs bá, tchê!”. Pronto. Meu outro eu desmoronou. Naquela noite houve uma broxada homérica. Deve ter sido meu outro eu. Eu é que não fui! Não, não, na verdade foi o fiadaputa do meu eu profundo que veio à tona, o desgraçado. No fundo, ele é que quer ser um outro, e não tolerou me ver traindo ele com um outro eu que eu encontrara para mim, isto é, para ele também, mas ele não compreende essas coisas, quer tudo só pra ele, isto é, para mim, ou nós, sei lá.

O que você acha? Ei, estou falando com você mesmo, seu outro de merda, aí parado, vendo meu desespero e pensando só em si mesmo. Não! NÃO! Por favor não me abandone. Eu só me excedi um pouco. Eu já sei o meu lugar. Não se vá, não feche o livro. Esse eu profundo, eu domo ele, o animal. Pode deixar. Vai ter lanho de espora nesse meu eu que não gosta de mim, seu eu. Mas jamais voltaremos a querer o lugar de outrem. No fundo, somos felizes, eu e eu, e não sabemos. Por isso é que ficamos cortando o discurso do outro.

Buenas, estamos neste impasse, eu e eu. Como na música do Tomzé: “Nós dois numa demanda/Nem ele ganha nem eu”. Mas já sei o que fazer. Eu vou surpreendê-lo, meu eu profundo. Mas para isso conto com sua ajuda. Imploro sua ajuda. Eu errei, querendo ser outro assim por mim mesmo. O importante não é a gente querer fazer algo, mas saber pedir ajuda. De quem? De um outro eu. Ele será a solução, que unirá a todos nós, e me devolverá a palavra, o olhar, o silêncio, a poesia, a vida, o desejo, o êxtase, tudo. Por isso, por favor, se você souber de um eu que precise de um outro, me avise: esse outro sou eu.