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O jovem barbeiro e o menino sonhador, arqueólogos de uma outra fronteira | Imprimir |  E-mail

Liane Chipolllino



A história cultural das comunidades de Santana do Livramento e Rivera entre as décadas de trinta a sessenta pode ser (re)contada através das lembranças de seus contemporâneos. Por meio de pistas, oferecidas pelo barbeiro e homeopata Humberto Bisso e pelo funcionário público e benemérito Hermes Walter, pude vislumbrar essa outra fronteira. Através de suas memórias, ressurgem cenas e lugares perdidos no tempo, que já não existem mais, porém estão guardados em suas lembranças, como em um altar.

Afinal o que é a memória senão “um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” como bem refletiu Ecléa Bosi, em obra sobre a importância da lembrança dos velhos como reconhecimento de uma sociedade. Embora a memória seja coletiva, é o indivíduo que recorda, o memorizador das camadas do passado.

A vida cultural na fronteira conheceu um dinamismo sui-generis entre as décadas de 1920 e 1950. A matriz cultural da fronteira naturalmente estava ligada às capitais do Prata: Montevidéu e Buenos Aires. A influência dessa cultura gerada nos grandes centros do Prata encontrava na fronteira um terreno fértil: cassinos, cafés e todos os tipos de cabarés. Também nesse momento, a fronteira convivia com novos moradores, estrangeiros que ali chegavam com seus hábitos e costumes. Os recém emigrados espanhóis, italianos e libaneses. A fronteira dava início nesse momento a um novo ciclo, repleto de encanto e divergências ideológicas, com a chegada de anarquistas, franquistas e comunistas.

Embora Humberto Bisso e Hermes Walter tenham vivenciado sua juventude e  infância em uma mesma época, seus interesses guiavam-se em caminhos opostos. Enquanto o cotidiano do jovem Bisso, amante da boa música, era direcionado aos Cabarés Cassinos, que ofereciam o teatro de vaudeville, circos e corsos; o do garoto Hermes construía-se no imaginário das salas de cinema, assistindo a filmes mudos e sonhando em um dia construir seu próprio cinema, para os meninos carentes como ele.

As recordações desses narradorores, visionários daquela cidade antiga que só existia para eles, de repente ganha a cumplicidade de uma testemunha, passando então “a ser uma lembrança coletiva, uma realidade social” (BOSI, 2002: 401). Humberto Bisso, que em sua juventude alternava-se entre o ofício de barbeiro e boêmio, recriou em suas lembranças os salões suntuosos do Cassino Cabaré Internacional e a noite glamurosa e em muitas ocasiões truculenta da boemia fronteiriça.  Sua rotina de atendimento a clientes em sua barbearia, não impossibilitava que o jovem, nas horas de lazer, frequentasse as variadas casas noturnas. Figura carismática e muito conhecida de Santana, esse personagem por muitos anos manteve com outros colegas de profissão, alfaiates e pequenos comerciantes, uma orquestra composta por dez músicos, entre uruguaios e brasileiros. Em muitas ocasiões romperam a noite tocando seu repertório eclético, entre valsas, foxtrot, tangos e vaneras, nas ruas, comércios e residências da fronteira. Muitas décadas mais tarde, Humberto Bisso, agora um maduro cidadão honorário de Santana, parecia estar imbuído de uma missão quando rememorava com prazer os episódios de concertos musicais, vivenciados por ele e sua turma de amigos seresteiros naqueles anos:

Eu vou te contar, nós fazia no passado, os rapaz, uma turma grande que eu te falei das serenatas, aí nessa esquina aí. Eu aluguei dez anos essa casa do Seu Júlio Landô, eu e outro rapaz lá, o Francisco, nós tinha barbearia, não? E nós, todas as madrugadas quando vinha de volta das serenatas, às quatro horas, já nós vinha de volta, nós já vinha com a carne, o pão, o vinho, tudo para fazer o assado no pátio. Eu me deitava e fechava a barbearia às nove horas para levantar a meia noite, para sair para a noite, para a festa. (risos) Nós saía de noite para Rivera, né? Arrebentou a revolução de vinte e quatro, então não deixavam andar de noite por aí, entonces nós ia para Rivera, e o chefe de polícia era um Coronel por nome de Ventura Pires, naquelas épocas e ele se agradava das serenatas, nós dava serenata todas as noite pra ele.E ele nos deu carta branca para a rapaziada, que a polícia sempre andava em ordem né? Nós, entonces todos os dias levava uma para ele, (risos) uma serenata, a turma de rapaz que te falei [...]

 

Porém, a missão de Bisso – de perpetuar a Santana efervescente de sua época - estava longe de se cumprir! Havia ainda a necessidade de anunciar o nome dos colegas que alegraram a noite de famílias e anônimos por anos a fio. Então, como um soldado que percorreu muitos lugares e correu por quilômetros, levando consigo uma extraordinária missão a seu comandante, sorrindo, o barbeiro tira do bolso seu maior tesouro. Agora sim, posto em segurança, poderia encerrar sua gloriosa jornada:

[...] eu tenho aqui uma lista, eu estou surdo , enxergo só de uma vista,eu enxergo mal, mas eu tenho aqui o nome deles  dos rapazes: : Ary Gonsalves, era o tocador de violão e cantava, depois Francisco Franco,que era barbeiro, são uma turma grande,  são  dez rapazes [...] tinha muitos barbeiros nessa turma, clarinete tocava o Francisco, Silvio Prates, tocava clarinete e era guarda livros de uma firma aqui, a Bento Maciel, Marciano Silva, que era músico profissional, tocava o bandonion, Alfredo Silva, tocava o violão, Pedro Velasques? Ah! Era Marcelino Velasques, era talabarteiro, tocava flauta, tá mal escrito eu não enxergo bem, Humberto Bisso - tá aqui ele! (risos). Genésio Martins, esse era funcionário do Corrêio, e o Eduardo Carvalho, era alfaiate, tinha uma boa alfaiataria em Rivera e tocava o pistão, mas tudo era músico, era uma orquestra!


A turma tinha lá suas manobras para enfrentar o protocolo da rotina da noite airada. Os instrumentos ficavam na barbearia de Humberto Bisso, que se situava a cerca de uma quadra no Parque Internacional.  Assim, quando se aproximava a noite o horário de iniciar a caminhada musical pelas calles, os companheiros iam chegando. Se Bisso ainda estivesse ocupado com algum cliente, não tinha problemas, o pessoal tirava os instrumentos para fora do estabelecimento, esperando pelo colega, para dar início as serestas pela cidade. Destemidos, os jovens seresteiros batiam à porta de variados comerciantes (da Linha) em busca de um estímulo, geralmente uma ou duas garrafas do vinho tinto português, da marca Adriano Ramos Pinto. Humberto Bisso recorda-se das características físicas e os milagrosos dotes culinários de Don Godoy, o cozinheiro uruguaio. Seu amigo, o responsável pelo requintado serviço do Cabaré Internacional em muitas noites lhe serviu um singelo bife com batatas fritas não importando o adiantado da hora. No Cabaret, não eram apenas as belas artistas que chamavam sua atenção. As apresentações dos números musicais eram de sua predileção, não deixava de admirar nenhum:

[...] Ah, tinha orquestra mui boa, mui boas. Teve um o Mejon Escalada, era espanhol, era o chefe da orquestra, tinha uma orquestra, tocava no cabaré depois foi dono do cabaré também, tá sepultado aí (melancólico). Eu, muitas vezes me sentei na mesa e eu dizia: " Godoy, hagame um bife bien gostoso eh " (risos) e vinha. E os bifes não eram de carne braba, eram de carne boa! E as mulheres tomavam de tudo o que viesse, porque elas eram pagas pra isso, pra fazer gastarem, não? Se sentavam numa mesa com um velho de dinheiro e impeçavam a pedir de tudo né? (risos) tinham que pagar, o trabalho delas era esse né!

 

Orquestra de seresteiros, anos 30. Em pé: Vasco Iturbide, Cel. Ventura Pires e o jovem Humberto Bisso.


O saudoso boêmio recria com entusiamo o ambiente dos cabarets, seu maior

divertimento. Era assíduo do Internacional, porém não sendo de temperamento

radical, também costumava visitar seu concorrente, a Tosca. Situado na Avenida

Tamandaré, a Tosca abrigava uma clientela também elitizada, mas que sabia se

mostrar companheira dos desprovidos, contanto que compartilhassem do mesmo ideário boêmio. Nesses ambientes desinibidos, sofisticados e regados a jogo e belas mulheres, muitas aventuras este boêmio dividiu com outro ilustre e cativo cliente daquela casa, como relembra, fascinado com aqueles tempos:

[...] Ali até o Flores da Cunha, o governador freqüentava, porque ali era casa de jogo, tinha tudo que classe de jogo, tinha roleta, monte, bacará, jaguru, e o Flores jogava muito era roleta. Amanhecia, e quando ele perdia, não podiam fechar o cabaré, tinham que seguir dando bola, tu nunca frequentaste isso? tinham que seguir dando bola pra ver se ele se desquitava, ele não deixava fechar. Agora, se ele não se desquitava, ele vinha na outra noite de novo, amanhecia aí. Muita gente diz: - Ah, o Flores da Cunha, o Flores da Cunha era um índio igual a qualquer um outro, companheiro da noite!

A memória do atento boêmio passa em revista uma Santana que "tinha apenas

duas ruas". Mesmo com a idade avançada, esse personagem manteve um diálogo vigoroso com suas lembranças, que eram minuciosamente revividas enquanto as relatava.

Humberto Bisso, aos 101 anos, fotografado em agosto de 2004.


A cidade no decorrer dos últimos sessenta anos modificou-se, modernizou-se, desfigurando-se da romântica Santana do passado. Humberto Bisso ressente-se, melancólico, da falta que faz aquela outra cidade, impregnada na solidão da fronteira contemporânea: "de todos, só restou eu". O abismo das variedades artísticas do passado aflora: "tinha as cavalhadas, tinha de tudo, naquelas épocas vinham muitas companhias de fora!". Com o passar do tempo, novas práticas e novos costumes foram introduzidas no lazer, as casas noturnas daquela Santana acabaram-se no transcurso para a cidade moderna de hoje.  Muitos lugares de referência boêmia fecharam, acabaram-se, novas atrações substituíram os jogos nos cassinos e naturalmente a freqüência aos espetáculos dos cabarés.

 

Um sonho de infância: O cinema Hermes

Distinta fronteira vivia o jovem Hermes Walter. Se Humberto Bisso e seus rapazes cultuavam o luar, fazendo valer a filosofia boêmia “a noite é uma criança”, Hermes via no raiar do dia sua essência. Descendente de humildes imigrantes suíços e família numerosa, amante da sétima arte, fizera-se assíduo espectador das salas de cinema da fronteira, mas para isso teve que cedo trabalhar. Quando não estava estudando, ou ajudando seu pai nas tarefas de casa, recorria as calles de Rivera em busca de pequenas tarefas que lhe pagassem os bilhetes de cinema. Como Bisso, o garoto Hermes viu a cidade se transformar, crescer e se diluir na Santana moderna. Muitas vezes, a voz pausada e triste que ouço na sala é a do menino saudoso que recorda, um a um, o nome e lugar em que estavam aqueles ”templos do divertimento”. Salas de exibição que não existem mais, apenas naquela cidade que preservou em suas lembranças. O Cinema Duque, o Cinema mudo que tinha em cima do Cabaret Caverna, o Cinema América “e tantos outros que se foram, não?”. Constata laconicamente o nobre mago.

Sua infância foi passada na Santana capital do mundo, como costumava referir-se com propriedade o boêmio jornalista Luis Carlos Vares. Naquela época, a cidade

fervilhava em atrações artísticas, havendo salas com exibição de filmes mudos. O ideólogo do cinema popular emociona-se recordando sua infância de cinéfilo:

Eu era guri pequeno era bem pobre mesmo, sabe? Então eu ajudava pedindo nas casas em Rivera, nas famílias, pedindo para lavar as calçadas, limpar algo, e eles me davam uns trocados, e eu ia ao cinema ver meus filmes, eu tinha uns 10 anos, um dia quando passava um filme do Frankstein, eu fui escondido do meu pai. Eu passava na portaria dos cinemas, porque eu era conhecido dos porteiros, sabe? Quanto jovem sem dinheiro como eu e querendo ver um filme, um dia eu vou fazer um cinema para mim e para eles! E fiz. Esses filmes passei todos lá!

Avesso a vida desregrada da boemia e amante do esporte, em sua juventude Hermes se interessou pelos salões de ringue, onde predominavam os embates de boxe profissional. As lutas e os ídolos desse universo esportivo atraíam sua atenção. Empolgou-se tanto que no início da década de trinta, o jovem desportista deu início a uma breve carreira de lutador amador. Com exercícios físicos e treinamento adequado nas diversas academias que existiam na cidade, Hermes debutou em luta no Cinema Colombo. Dos porões do Cinema Colombo, saíram celebrizados muitos nomes do boxe da fronteira, como os célebres Maturino e Polo Norte que deixaram gravadas no imaginário de seus admiradores muitas histórias das lutas que fizeram pelo Rio Grande do Sul. Havia ainda outro, Sebastião Canabarro, valente lutador de boxe. Desse pugilista pouco ficou, nenhum registro fotográfico. Apenas a lembrança de seu filho José Newton, de quando seu pai costumava enfrentar seus adversários e lutar, podia ser no antigo cinema, ou nos salões do Centenário – que estava localizado, possivelmente na esquina da Travessa Escosteguy, ou ainda “em frente ao Serralheria Gariazzo, onde hoje é o Hotel Júlio”. Não importava o lugar, sempre apreciava os embates pugilísticos estimulando os filhos a lutarem também, “e nós lutava, de brincadeira, claro”.

Os anúncios de embates do Cinema Colombo marcavam o nome dos combatentes e chamavam para o espetáculo. Foi um orgulhoso Hermes que buscou em seu baú de recordações a comprovação desse feito juvenil, exibindo a prova de sua outra paixão:

Olha, eu ainda guardo aqui uma fotografia de quando eu era atleta, mas faz muitos anos que eu foi um lutador! (risos) Sabe, a gente lutava nos porões do Cinema Colombo. Ali teve lutas fantásticas, naquela época tinham muitos lutadores bons, muitos ficaram famosos. Então em 1937 eu fiz o concurso para o Banco do Brasil e fui chamado, sabe? Daí eu não podia continuar, treinando, lutando, não é? , como bancário não podia conciliar, não era correto, e abandonei o ringue.

O jovem Hermes, em foto de 19 de setembro de 1937


Seu Hermes
, como ficou conhecido pelos quatro cantos além-fronteira, desde a sua infância pobre alimentava o desejo da construção de um cinema popular. Hermes, pode-se dizer, foi um visionário. Em sua fantasia juvenil idealizava um lugar que acolhesse os jovens que, como ele, não tinham como pagar o ingresso das matinés.

Em 1954, finalmente Hermes pode concretizar seu almejado projeto juvenil. A inauguração do Cinema Hermes brindava a população carente com filmes de

qualidade.  Desde então, espectadores de Santana do Livramento e Rivera deram início com freqüência cativa ao mítico Cineminha do Seu Hermes, nesse momento construído sob a forma de um rústico galpão e que mantinha a assistência lotada. Seu público infanto-juvenil partilhava do desejo de seu proprietário de ver na cidade uma sala de exibições para crianças e jovens carentes. O Cinema Hermes estava localizado na vila Júlio de Castilhos, lugar popularmente conhecido como Beco dos Maragatos. Com o passar dos anos a sala alternativa foi transformada em um prédio de alvenaria, “ganhando os ares de cinema” e a preferência dos jovens de outros bairros e da classe média. O valor dos ingressos era simbólico: “eu cobrava o que o freguês podia pagar, às vezes trocava por revistinhas de quadrinhos”. Sua programação era imbatível, projetando estréias do bang-bang norte americano e alguns clássicos do cinema mexicano, spaghetti italiano e fitas nacionais.

Nos anos cinqüenta e sessenta, década que o cinema ofereceu sessões de matinés, os espectadores lotavam o seu espaço. A concorrência ao cineminha não era feita somente de jovens e crianças, muitas famílias costumavam visitar a sala. Nesse inusitado centro cultural, havia ainda trocas de gibis entre o público, venda de merenda (gratuíta, conforme o freguês) e claro, de ensinamentos morais, os famosos sermões do Seu Hermes. Muitas vezes o proprietário parava o filme para conversar com seu público: sempre no sentido de mostrar alguma coisa positiva para seus menino(a)s. “Eu queria ensinar algo que fosse servir para o futuro deles, como respeitar o próximo, a mãe e pai, não roubar, estudar para ter no futuro uma boa profissão”, explica o mago, protetor de jovens carentes daquela época. Para ele, os sermões eram fundamentais, pois muitos garotos necessitavam de uma orientação que não tinham em casa.

Os seriados marcaram o imaginário daquele público, se tornando referência na cidade, como o herói das selvas, Tarzan, os mocinhos do faroeste americano,

Buck Jones, Hopalong Cassidy , Billy Hicrok, o herói da floresta, Fantasma, Dom Chicote, o Cavaleiro Negro, Zorro, entre muitos outros filmes de aventura e

suspense exibidos na sala do Cinema Hermes. Aquela gurizada, muitas vezes excluída da sociabilidade dos lugares da região central, sentia-se estimulada pela oportunidade de assistir aos filmes do cineminha, pagando um preço popular. O sucesso do empreendimento de Hermes Walter ficou gravado na memória das gerações de jovens que frequentavam seu cinema entre as décadas de cinquenta e sessenta. Seu Hermes recebe ainda nos dias de hoje, o carinho e a gratidão de seu antigo público das matinés, mesmo quando em visita a outras cidades:

Um dia andando nas ruas de Montevideo, um senhor me pára e alegre

mechama pelo nome- Don Hermes! - fiquei espantado, pois nunca

tinha visto o sujeito. Ele notou e disse: Graças ao senhor eu pude ver

filmes na minha infância. Eu ia de férias para Rivera, na casa da abuelita, e frequentava o seu cinema.

O Cinema Hermes arrebatava um público misturado, entre uruguaios e brasileiros, procedente da periferia e até da zona rural. Observando suas fotografias, cartas, jornais e documentos, a maioria amarelada pelo tempo, verifico que elas contam muito da história do lazer na fronteira e da difícil tarefa de promover um espaço alternativo popular para a comunidade de baixa renda.

O cinema era um divertimento relativamente barato, mas nem por isso deixava de gerar uma lucrativa bilheteria, mesmo sendo a maioria do seu público de baixo poder aquisitivo. No entanto, Seu Hermes mantinha-se idealista cobrando o valor dos ingressos conforme a disposição econômica do freguês. Quando o Cinema Hermes fechou suas portas,  seu idealizador encontrava-se amargurado com o término de um projeto de vida.

Com a impossibilidade de garantir filmes inéditos e em boa qualidade (bitola 35mm), preterido em detrimento dos cinemas maiores, e diante da inação das autoridades competentes, o cinema realiza sua última sessão em meados de 1973, deixando seu concorrido público desolado. Infelizmente, o projeto de Hermes Walter, que mantinha um profundo significado social para a comunidade santanense, acaba-se. O boicote das distribuidoras, reforçado pela ameaça que sua sala promovia aos concorrentes, fez com que a região perdesse esse espaço genuinamente popular, que concentrava jovens de todas as matizes sociais.

Muito embora o projeto audacioso de um cinema popular, idealizado por Hermes Walter não tenha conseguido enraizar-se, a consolidação e efervescência dos

cinemas como centros do lazer na fronteira estende-se até meados dos anos setenta. Nessa década, intensifica-se a emergência de novas linguagens nos

meios de comunicação. A televisão surge como a nova rainha dos lares brasileiros e fronteiriços. Dessa maneira, terminaram os domingos de matinés e de sessões de filmes continuados, os quais levavam o noticiário da semana no Brasil e no mundo para a comunidade da fronteira. Aos poucos, outras formas do lazer foram sendo substituídas pela televisão, segregando com isso muitos aspectos da vida social aos espaços reclusos do lar. O brilhantismo das comédias, das chanchadas brasileiras, dos dramas mexicanos, dos musicais e bang bang americanos cedem seu lugar aos folhetins eletrônicos transmitidos pela televisão. Esses se mostram concorrentes mais baratos e mais modernos do que a temática dos filmes exibidos nas salas de exibição do cinema. A televisão constitui-se então como um tipo de altar doméstico, no centro da sala das famílias, como um dos poderosos ícones contemporâneos das últimas décadas do século passado.

O que importa, no entanto é o fato que Humberto Bisso e Hermes Walter vivenciaram em sua juventude o fervor cultural de décadas significativas para o cinema, a música, o esporte, e todas as formas de cultura surgidas no glamuroso século passado.  Inesquecível e inigualável para esses personagens que, como se investigando as ruínas de uma outra cidade, trouxeram a luz com suas lembranças, as pistas de uma outra Santana e Rivera.

 

Um orgulhoso Hermes Walter mostra as lembranças do célebre cineminha