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A Década de 30 - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ensaios

 

 

Eu tinha vinte e dois anos incompletos e estava de visita no quarto do meu amigo Aureliano de Figueiro Pinto, grande poeta nativista e autor do romance póstumo Memórias do Coronel Falcão, que preencheu um vazio nas prateleiras da literatura rio-grandense. A pensão do Aureliano ficava na rua Riachuelo, na calçada da direita, mais ou menos no meio da quadra, entre a Av. Borges de Medeiros e a Ladeira. Assistíamos da janela, enquanto proseávamos, ao desfile vagaroso da procissão de Corpus Christi, com suas variantes coloridas e sombrias para se ver e ouvir, conforme fossem cânticos alegres de colegiais ou rezas graves de senhores congregados ou dos sacerdotes ou dos seminaristas contritos, ecoando entre as fachadas das casas como o cantochão que enche as naves nas missas das dez, aos domingos. E maior efeito litúrgico não alcançavam porque, então, naquele trecho da Riachuelo, ainda havia umas quantas casinhas baixas, de porta e janela, habitadas pelas remanescentes da leva imigratória feminina que se dirigira da França, como todavia se costumava dizer literariamente, rumo ao Novo Mundo, incerto e prometedor. Naquela tarde suas janelinhas estavam fechadas e assim permaneceriam até que sua Eminência Reverendíssima, o Senhor Arcebispo proferisse, da escadaria da catedral, a oração de clausura do grande préstito. Naquele tempo a procissão ainda partia da rua Mostardeiro, em frente ao Palácio Episcopal, e seguia Independência afora, a passo tardo, como convinha na maior homenagem anual ao bom Jesus, os olhos dos crentes se deliciando na contemplação das mais belas cores dos tapetes persas e portugueses e dos panos de seda que adornavam os peitoris das janelas ricas, enquanto os lábios oravam. Por certo, o percurso era longo e cansativo. As pernas já iam frouxas e o fervor dos peitos só reacendia, ali, naquela quadra, porque estavam perto da Praça da Matriz e os sinos começavam a repicar animadoramente.

Aureliano e eu, provavelmente mais algum amigo, assistíamos ao espetáculo multitudinário com um sentimento poético, sem deixar de evocar aquele jogo de massas multicores que se deslocam na Salambô, de Flaubert, o bom gigante.

Quando começávamos a nos desinteressar do espetáculo, voltando para o chimarrão e a charla sobre poetas, de repente o Aureliano exclama, com aquele seu ar sutil de quem sabe fisgar o humor do instante que passa: "Olha lá o nosso candidato!". Era Getúlio Vargas que vinha devagar, entre os últimos da retaguarda do préstito, sem chapéu, como convinha, mas de bengala. Ele não vinha pelo meio da rua, e sim pela calçada, a oposta à nossa. Vimo-lo passar a dez ou doze metros, aparentemente sem capangas e na fisionomia um ar de imperturbabilidade impressionante. Todos sabem que Getúlio era um homem de estatura baixa e gordo, sem ser obeso. Seu passo era firme. Contava, então, quarenta e oito anos. O que faria ali? Não andaria, por certo, à cata de eleitores. As eleições presidenciais já eram folha virada. Dera-se mais uma vez o crônico esbulho dos pleitos nacionais, que não haviam melhorado com a república. O que faria, então, o presidente do Estado e ex-candidato da Aliança Liberal à presidência da República, naquele fim de tarde outonal, na retaguarda da Procissão de Corpus Christi? Certamente conspirava.

Segundo João Neves da Fontoura, seu amigo-inimigo-amigo, correligionário, adversário, correligionário outra vez, seu ministro, seu embaixador, Getúlio Vargas foi o maior conspirador que ele conheceu. Conspirar era o grande exercício da sua imaginação. Estava sempre tramando contra alguém, fosse adversário político, colaborador ou, na falta, contra ele mesmo. Mas agindo sempre conforme manda a melhor cartilha dos conspiradores. Aparentemente não movia uma palha para a conquista de mais um degrau na escalada da carreira política. Os outros o levavam, parecendo sempre ir a contragosto, e se saía esplendidamente. Foi assim desde os tempos das irriquietas atividades acadêmicas. Irriquietos eram os outros, bem entendido, que apelavam para ele nos momentos problemáticos da ala jovem do Partido Republicano Rio-Grandense. Sua palavra firme, oportuna e elegante punha ordem no burburinho. Até para a posição de candidato à presidência da república foi levado meio de a cabresto, aparentemente.

Pois bem, quem ia ali, em frente à janela duma pensão de estudantes, que poderiam um dia contar a história daqueles tempos agitados, era o homem em torno do qual se dera o milagre da Frente Única Rio-grandense. Respirava-se no Rio Grande uma atmosfera de democracia.

Mais ou menos três meses depois daquela tarde, os acontecimentos políticos nacionais se precipitariam em conseqüência do assassinato do vice de Vargas, o presidente João Pessoa, da Paraíba. As multidões saíram as ruas para cobrar, com a veemência tumultuária das massas, o cumprimento das promessas dos políticos oposicionistas. E assim a revolução foi se armando, paralelamente, nos conchavos a portas fechadas e nas agitações de rua, alimentadas e ao mesmo tempo contidas a discursos. Nesse período, certas figuras do cenário político gaúcho, que já vinham sobressaindo, projetaram-se enormemente no âmbito nacional. Lembrarei os principais nomes: João Neves da Fontoura, Flores da Cunha, Osvaldo Aranha, Lindolfo Collor e Batista Luzardo. Isso sem falar nos caciques: Assis Brasil e Borges de Medeiros. Por sua vez, os nomes dos líderes de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de São Paulo, participantes da corrente oposicionista e revolucionária, eram lembrados e louvados a cada instante, na eloqüência rueira dos comícios. Sentia-se que o Governo Federal estava isolado, completamente divorciado do povo. Os acontecimentos demonstrariam que esse sentimento coletivo correspondia à verdade.

Mas o grande ator do palco político brasileiro era Getúlio Vargas. Conta João Neves da Fontoura, no segundo volume de suas Memórias: no dia do assassinato de João Pessoa, quando, lá pelas onze, um grupo dos cabeças republicanos e libertadores foi a Palácio, expressar sua solidariedade ao Presidente do Estado e candidato a presidente da República esbulhado, o encontraram extremamente fechado, como não era raro acontecer. Fizeram de tudo para ver se ele se abria, se condenava o fato, se traçava uma diretriz, mas todas as suas tentativas foram infrutíferas. Por isso ganha relevo a tirada gauchesca do velho general Portinho, revolucionário, veterano de 93 e de 23. Ao se despedirem, Portinho disse a Getúlio: "Dr. Getúlio, aproveite o meu ultimo engorde!". Para quem conhece a alma crioula, essa frase e duma dimensão extraordinária. E também revela que eles todos estavam sentindo a relutância de Getúlio em aceder ao ímpeto de rebelião que incendiava a alma popular e com a qual os políticos gaúchos estavam comprometidos. Seu futuro de homens públicos dependia da sustentação da palavra empenhada.

Estranha maneira de conspirar, a de Getúlio Vargas! Naquela noite ele conspirou neutralizando o ardor revolucionário dos seus líderes de maior destaque por julgá-lo talvez excessivo e inoportuno para o sucesso da Revolução.

Há um episódio pouco conhecido, o de 24 de outubro, ocorrido nos arredores de São Paulo, a Revolução já vitoriosa. As tropas revolucionárias preparavam-se para entrar na metrópole. Dois dos principais chefes pleiteavam a glória de pontear o desfile que deveria ser memorável. Batista Luzardo e Miguel Costa. Para desempate, foram ao chefe da Revolução. Getúlio os ouviu e sem titubear respondeu: "Isto não é uma questão política, é uma questão militar. Procurem o Goés Monteiro". E lá se foram os dois, não sei se tendo captado ou não a intenção habilidosa daquelas palavras.

Por julgar que Getúlio Vargas foi a figura em torno da qual giraram os acontecimentos da tumultuada década de 30 no Brasil, é que me demorei no traçado do seu perfil moral e do seu estilo de gerir a política. Mas a década que nos ocupa tem naturalmente outras implicações relevantes, que demandam considerações de várias ordens, especialmente no campo literário. Com efeito, o Modernismo, que irrompeu com a célebre semana de 1922, em São Paulo, e que repercutiu tão fecundamente nos principais centros culturais do país, provocando polêmica e servindo de estímulo à produção poética, iria adquirir na década seguinte uma outra feição cultural, embora dentro da literatura. Surgiria, nesses anos, o que se viria a chamar, posteriormente, O Romance de 30, não obstante a sua penetração nas décadas seguintes, principalmente nas de 40 e 50. Incontestavelmente o Brasil entrara em trem de renovação. A Revolução de 30, defeituosa como todos os abalos sociais que periodicamente agitam os povos, sacudiu as paredes carcomidas da República Velha, embora algumas tenham ficado de pé, como para testemunhar as origens da nossa gente e os velhos vícios da politicagem e da administração. Não obstante, soprava um vento de renovação, atingindo pelo menos a fachada das instituições públicas. Para os jovens entusiastas que acorreram sem vacilar ao primeiro chamamento às armas e que até se desiludiram porque o castelo de Washington Luís e Júlio Prestes esboroou antes que houvesse mais do que simples tiroteios, tanto que a batalha de Itararé passou à história como um tropo de anedota. Para aqueles jovens a palavra "causa" virou um termo sem sentido. Na hora eufórica da arrancada, tanto os moços como os políticos maduros pareciam ansiar por uma real modificação da estrutura da sociedade brasileira, de molde a varrer as injustiças que circundavam as cidades e a condição de escravos dos sertanejos e do campesinato.

Os próprios chefes vitoriosos foram os primeiros a sentir o peso de quatro séculos de erros acumulados, para os quais muitos deles também tinham contribuído. No fragor do combate oratório para levantar o ânimo das massas a fim de que pudessem enfrentar uma inédita experiência política de amplitude nacional, os líderes acabaram identificando-se com as próprias palavras e a 3 de outubro marcharam sobre os quartéis com arroubos de aventura. Porém ante a dificuldade da prática, aplicaram outra teoria. O melhor mesmo era acoitar-se nas velhas posições comodistas e pedir aos jovens arrebatados que recolhessem as bandeiras de suas utopias revolucionárias e lhes dessem um crédito moral provisório de espera.

Paralelamente, enquanto o povo esperava que o Governo Provisório ultrapassasse a fase de crisálida política para a de autoridade legitimada pelo voto, a geração de intelectuais despertados pela sacudida da Semana de Arte Moderna de 22 amadurecia. Os nomes que apareceram na década de 20 afirmaram-se nos anos 30, aqui, no Rio Grande, em São Paulo, no Rio, na Bahia, em Recife e noutras capitais do Nordeste. Assim como surgiram novos, com muita garra. Entre estes, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Mário Quintana, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Amando Fontes e outros. Na década anterior predominaram os poetas e a revolução do verso, agora os prosadores passaram a galvanizar o interesse do público. Era o romance de 30 que surgia.

Em 32 morre Coelho Neto, escritor cheio de tropos em desuso, distante da realidade nacional. Cito Coelho Neto porque foi destaque entre os escritores de língua portuguesa que não compreenderam a mensagem de Eça de Queirós e Machado de Assis, embora não lhes faltasse talento. Mas o que nos importa agora é a gente que se fez nos anos 30. Logo ali, em 1932, dois nomes apareceram, no Rio Grande do Sul. Eram J. O. Nogueira Leiria e Érico Veríssimo, que vinham juntar-se aos já meio consagrados e conhecidos nos dois grandes centros culturais do país. Eram Augusto Meyer, Darcy Azambuja, Moysés Vellinho, Mário Quintana, Reynaldo Moura, Athos Damasceno Ferreira. Dyonélio Machado, mais velho que todos esses, iria se impor a partir do Grande Prêmio de Romance "Machado de Assis", conquistado com Os Ratos, em 1934.

J. O. Nogueira Leiria era "o poeta". Quando, entre os companheiros, alguém falava no "poeta” já todos sabíamos que a referência dizia respeito a ele, ao Nogueira Leiria. Aliás, na opinião de Carlos Reverbel, nosso melhor poeta regionalista. Acompanhei a feitura de Campos de Areia, verso a verso, chimarrão a chimarrão, nos nossos quartos pobretes de pensão de estudante, lá pelos idos de 1927 a 1932. Em seguida à Revolução de 30 já as coisas não ficaram no mesmo teor, em Porto Alegre e no Rio Grande em geral. E por isso, como minha formatura em Medicina se avizinhava, a gente principiava a recolher as velas da despreocupação e a encarar com alguma apreensão o chamado dia de amanhã. Campos de Areia, poemas gaúchos, foi lançado em 1932, pela Livraria do Globo. São muitos os motivos para eu querer bem esses Campos de Areia, de sangas secas, capim limão e touceiras de butiá, onde "a mágoa campereia". Lembro esse livro, aqui, porque o considero representativo da poesia regionalista da época. João Octávio Nogueira Leiria iniciou-se na eflorescência do Modernismo, que coincidiu com a rebentação gauchesca que começou em 1922 com a campanha da sucessão estadual, cresceu com a revolução assisista de 23, incrementou-se com as guerrilhas de 24 e 25, tomou novo alce com as façanhas da coluna Prestes e finalmente transbordou na enchente de 30. Todos esses motes de exaltação se refletem em "Escaramuças", primeira parte do livro de J. O. Nogueira Leiria. Seus versos sintonizavam com a alma "monarca das coxilhas" de então. Faço estes respingos a propósito da obra do poeta amigo também por julgá-la representativa das últimas lufadas do regionalismo ufanista.

Quanto a Érico Veríssimo, sempre fomos amigos meio chegados, meio distantes. Ele estreou em 1932, com Fantoches, uma série de contos elaborados com uma técnica muito estranha ao nosso meio. O virtuosismo de suas proezas de desenhos animados transplantadas para a literatura não chegou a tocar o nosso leitor comum. Mas no ano seguinte veio Clarissa. A beleza simples da personagem comove e consola. E além do mais, nessa novela, Érico fixou admiravelmente a arrastada melancolia das velhas pensões. Era o começo duma carreira literária excepcional. Mais adiante voltarei a ele.

Convém que dediquemos, ainda que seja um pequeno espaço, à trapalhada de Porto Alegre em 30. João Neves era o vice de Getúlio no governo do Estado. Mas na hora do presidente passar as rédeas do poder e embarcar para o "front", nao chamou o seu substituto legal. Entregou o governo para Osvaldo Aranha, secretário do Interior. João Neves não gostou, naturalmente. Sua experiência como administrador era muito superior à de Aranha. E sua projeção nacional também tinha outro alcance, principalmente pela sua atuação como tribuno da Aliança Liberal no Congresso e como conspirador junto ao presidente Antônio Carlos, de Minas Gerais. Mas para o momento, Osvaldo se prestava melhor para a função. Getúlio queria alguém para administrar a revolução daqui, do Palácio do Governo. Não se tratava, portanto, de alguém para gerir a rotina administrativa. E sim de um homem dinâmico, inteligente e ousado para os lances daquela hora histórica. Osvaldo tinha de sobra essas qualidades, embora contando apenas 36 anos. Isso não significa que João Neves não pudesse se desempenhar bem naquela emergência. Não obstante, penso que, nessa "conspiração" Getúlio agiu acertadamente: Osvaldo, incontestavelmente, possuía outra desenvoltura em se tratando de assuntos de "guerra". Tanto isto é verdade que, quando a junta militar depôs Washington Luís, ele não vacilou em tomar um avião e ir ao Rio negociar a entrega do governo a Getúlio Vargas. E obteve o êxito que todos sabemos, os que nos interessamos pela história do Brasil. Em conseqüência da atitude de Getúlio, João Neves, que acompanhou as tropas gaúchas, junto com Flores da Cunha e Batista Luzardo, recusou todas as propostas de ministérios que lhe fez Getúlio, uma vez à testa do Governo Provisório. Luzardo ficou Chefe de Polícia do Distrito Federal. E Flores da Cunha voltou para o Rio Grande como interventor. Sua chegada a Porto Alegre foi bonita. Ainda imperava a confraternização da frente única, graças à qual a vitória da arrancada de 3 de outubro fora fulminante. No discurso de agradecimento aos manifestantes que o ovacionavam, proferido da sacada do Grande Hotel, como era de praxe, Flores teve uma frase muito feliz, quando se referiu simbolicamente à união dos dois partidos, ao dizer que as sombras dos cavalos republicanos e libertadores se fundiram...

Dois anos depois, porém, os acontecimentos políticos assumiram outros aspectos, no Estado e no País. São Paulo não digerira a derrota de 30, caracterizada pela derrubada, com uma única rajada, de dois presidentes paulistas, Washington Luís, presidente em exercício, e Júlio Prestes, presidente eleito, agitando a bandeira constitucionalista, sob a forte argumentação de que o governo provisório se transformara em ditadura. Conspirou e foi à luta. A campanha ganhou adeptos também noutros Estados, principalmente no Rio Grande do Sul. Não tardou muito para que dos panfletos e discursos os descontentes, pelos mais variados motivos, passassem à conspiração. Assim, a 9 de julho de 1932, irrompeu em São Paulo o movimento armado que passaria à história com a denominação de Revolução Constitucionalista. Os revolucionários exigiam a convocação imediata de uma Constituinte para a elaboração de uma nova Carta Magna para a Nação.

Flores da Cunha, que constou haver estado comprometido com os conspiradores, viria a ser o sustentáculo de Getúlio Vargas. Mas alguns próceres gaúchos aderiram à revolução, entre eles João Neves da Fontoura, Raul Pilla, Batista Luzardo e, pasmem os leitores, o Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros que, aos 69 anos de idade, não vacilou em montar a cavalo e ir para as coxilhas, à velha maneira de guerrear dos gaúchos. Que desgostos pessoais com Getúlio e com Flores o teriam arrastado a essa atitude? Manifestamente sempre apareceram as motivações de ordem política. Mas causa espécie que o velho chefe tenha se desgostado tanto com seus outrora fieis e valorosos companheiros de Partido, esteios do seu longo governo estadual. Getúlio foi líder situacionista durante alguns anos, em torno de 1920, na Assembléia Legislativa do Estado e quando estourou a revolução de 23 correu logo para o seu baluarte, São Borja, de lá saindo em seguida com um contingente de combatentes para enfrentar os rebeldes, indo até São Luís. Porém Borges de Medeiros o chamou dentro de alguns dias porque precisava dele noutro "front", muito mais amplo e importante, na liderança da Partida Republicana Rio-Grandense na Câmara do Congresso Nacional. Depois, quando chegou a hora de deixar definitivamente a governo do Estado, escolheu Getúlio para seu sucessor. Quanta a Flores da Cunha, foi a mais valoroso e eficaz chefe militar da situação em 23, como comandante da Brigada do Oeste. Mas agora, em 32, a velha amizade acabara. Despeito pela perda do mando? O caso é que o paladino da ordem e da legalidade foi para a coxilha, aos 69 anos de idade. Já ia violenta e cerrada a guerra em São Paulo, Flores estava enviando tropas para lá e agindo com uma presteza espetacular, a ponto de Getúlio, num de seus raros arroubos, compará-lo ao cavaleiro d' Artagnan, que estava sempre em toda parte.

Borges de Medeiros, sabidamente favorável à Revolução Constitucionalista, que principiou a 9 de julho de 32, viera da estância, Irapuazinho, em Cachoeira do Sul, para Porto Alegre. Flores não o prendeu, mas seus passos eram vigiados. Todas as tardes o velho político, acompanhado da senhora, do genro e de um neto de 12 anos, seu preferido, saía a passear de automóvel, dirigido pelo seu antigo motorista. O itinerário era sempre o mesmo. Saíam da rua Duque e rumavam para o morro de Santa Teresa, onde seu genro tinha uma chácara. Por lá se demoravam aproximadamente uma hora. A todas essas, os policiais, à distância, o vigiavam. Quando o sol se inclinava para o ocaso, retornavam para a cidade, fazendo uma parada, porém, sistemática, no cais do porto, nas imediações da Voluntários da Pátria, onde havia sobretudo depósitos de madeireiras. Desembarcavam e iam até perto da margem do Guaíba contemplar os reflexos do pôr-de-sol nas águas do rio. Esse ritual se repetiu durante uns quinze dias, até que, duma feita, pararam num outra ponto da Voluntários, rua da beira da rio, na época. Borges de Medeiros se despediu da mulher, desembarcou do auto e apenas acenou para os demais acompanhantes para não dar na vista. De sobretudo e chapéu, como nos outros dias, porque era agosto, as botas por dentro das calças, caminhou a passo firme, sem pressa. A poucas metros já a sua silhueta mal se distinguia no lusco-fusco do anoitecer. Ninguém notou quando ele desapareceu num grande depósito de madeira que ia dar na calçada do cais, bem onde uma pequena embarcação o esperava. Quem estaria dentro do barco, aguardando-o? Batista Luzardo! O mesmo Luzardo que o combatera com bravura em 23, ao lado de Honório Lemes. O mesmo também que, em 29, quando Getúlio foi ao Rio de janeiro, meio de arrasto, ler a sua plataforma de governo, duma sacada da Av. Rio Branco, começou seu discurso assim: "Quem vem lá? Quem vem lá? É Getúlio Vargas". O barco já iria pela metade do rio, o seu motorzinho mal assustando os peixes, quando os policiais, de longe e distraídos, avistaram um vulto de sobretudo e chapéu, magro e de estatura baixa, que se aproximou do automóvel do qual desembarcara o ilustre vigiado. Os policiais, para não serem notados, foram embora imediatamente, como o faziam todos as dias. Nem de longe supuseram que o último vulto era o do sósia, um sobrinho de Borges de Medeiros, muito parecido com ele, que o esperara escondido no depósito de madeira.

O levante em peso do Rio Grande republicano e libertador, numa frente única como em 30, não se deu, numa demonstração clara de que a história não se repete, como irrefletidamente se diz, pelo muito desejar, às vezes.

A luta em São Paulo ia braba. Lá, sim, fizera-se a frente única do PD (Partido Democrático) e do PRP (Partido Republicano Paulista). Era guerra civil mesmo. Sua bandeira era a reconstitucionalização da República, para acabar com a ditadura de que acusavam Getúlio Vargas. Em três meses o movimento armado paulista foi derrotado. Seguiu-se o esparramo dos exilados, forçados ou voluntários. Muitos dos cabeças provaram antes a prisão. Na ilha do Rijo, na baía da Guanabara, encontraram-se Artur Bernardes, Pedro de Toledo e Borges de Medeiros. Os dois primeiros tiveram como opção o exílio. Escolheram Portugal como país de desterro. Tinham fortuna, podiam ir para onde quisessem. Já não era esse o caso do chefe republicano rio-grandense, que só depois que saiu do governo é que foi cuidar da estância do Irapuazinho, herança de dona Clarinda. No período de 1908 a 1913, quando foi substituído na presidência do Estado por Carlos Barbosa, andou tão mal de finanças que sua esposa teve que costurar para fora. Por que, então, ele não abrira uma banca de advocacia? "Como eu iria fazer isso, se quase todos as juízes do Rio Grande do Sul foram nomeados por mim?". De fato, o seu primeiro tempo de governo já fora bastante longo, dois períodos de cinco anos, o suficiente para muitas nomeações, apesar de que ele nunca foi governante de atulhar as repartições de funcionários. Foi um ditador honestíssimo. Agora, os seus coronéis! Mas este reparo foge da década de 30.

Getúlio Vargas talvez tenha pensado que deixar seu velho chefe, amigo e mestre nas artimanhas políticas, prisioneiro na Ilha do Rijo, seria manter uma proximidade incômoda. O seu interventor pernambucano o tirou do apuro, oferecendo-se para guardião do ilustre político, tanto mais que Borges de Medeiros era meio pernambucano, pois seu pai era filho do Leão do Norte e ele, Borges, estudara lá. Getúlio, se fosse homem de vibrações fáceis, teria certamente exultado com a proposta, pois, com muita sensatez, já concluíra que o chefe gaúcho estava com muita idade e pouco dinheiro para luzir um exílio na Europa. Não sei, mas suspeito que Borges de Medeiros recebeu muito bem essa solução para o seu caso de preso político. Deram-lhe uma boa residência em Recife e as fronteiras de Pernambuco por menagem. De lá voltaria para assumir a sua cadeira na Constituinte, o grande saldo positivo da revolta de 32, tendo antes vindo até Porto Alegre para receber homenagens, duma exaltação e espontaneidade como jamais lhe acontecera nos seus longos anos de poder .

Em 30, o mundo já estava demasiado entrosado para que se possa escrever sobre essa década sem referir o que ia ocorrendo lá fora. Assim, o "craque" da bolsa de Nova York em 29 refletira-se na economia mundial. Logicamente, também na brasileira e rio-grandense. Mas outras calamidades estavam acontecendo no palco político internacional. Vindos dos primeiros anos 20, Salazar, em Portugal, e Mussolini, na Itália, invadiram ovantes os de 30. E como se não bastassem essas desgraças, a peste nazista se apoderara da Alemanha, em janeiro de 1933.

Mas voltemos ao Brasil, tão tumultuado. Às instâncias de Lindolfo Collor, Getúlio decreta as primeiras leis trabalhistas da história do país, sob a forma de estatuto, com grande repercussão na classe trabalhadora. Isso lhe valeria quinze anos de governo. A Constituinte instituiu o voto secreto e o voto feminino, vitórias, respectivamente, de Assis Brasil e Batista Luzardo. E mais, instituiu o voto indireto para a eleição do presidente da República e dos governadores pelo Congresso e pelas Assembléias Estaduais. Essa era a carta escondida que Getúlio tinha, quando, aparentemente sob a pressão da Revolução Constitucionalista, acelerou o processo de reconstitucionalização. Sabia que lhe seria fácil obter uma maioria no Congresso que lhe adivinhasse as vontades, tanto mais que quase todos os seus interventores estaduais queriam ser governadores, a começar por Flores da Cunha, o mais forte de todos eles e, por isso mesmo, o que se desentenderia com Getúlio.

No ano de 1932 teria lugar um singular acontecimento no âmbito da cultura, de alcance internacional. A Liga das Nações Unidas e seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em Paris, propôs a Alberto Einstein que convidasse alguém, seu par, para um intercâmbio de pontos de vista sobre um problema que fosse de relevância transcendental para o destino da humanidade. Einstein não teve dúvidas em se dirigir a Sigmund Freud. O problema era este: "Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?". A resposta de Freud é bem mais extensa que a carta do seu famoso correspondente. Nas últimas linhas há uma frase que sintetiza o seu pensamento, longamente fundamentado: "... tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra".

Essa correspondência voou sobre os gabinetes francês e inglês, sobre as vociferações de Hitler, as palhaçadas de Mussolini, a sombria ditadura de Stalin e a conivência ingênua das populações, alguns núcleos até deslumbrados com os primeiros relâmpagos do apocalipse. Isso dá maior relevo a correspondência histórica e me faz lembrar as linhas finais do inesquecível Ariel, de José Enrique Rodó, que o meu grupo de amigos dos tempos estudantis declamava: "Mientras la muchedumbre pasa, yo observo que, aunque ella no mira al cielo, el cielo la mira. Sobre su masa indiferente y obscura, como tierra de surco, algo desciende de lo alto. La vibración de las estrellas se parece al movimiento de unas manos de sembrador".

O ano de 1934 não foi só o da eleição de Vargas pelo Congresso. Em julho desse ano, a Companhia Editora Nacional criou o "Grande Prêmio Machado de Assis" de Romance. A comissão julgadora compunha-se de nomes que inspiravam irrestrita confiança no critério de seleção: Agrippino Grieco, Gastão Cruls, Gilberto Amado, Herbert Moses, Moacyr de Abreu e Monteiro Lobato. Não houve um vencedor, foram premiados quatro livros: Música ao longe, de Érico Veríssimo; Os Ratos, de Dyonélio Machado; Marafa, de Marques Rebello, e Totonho Pacheco, de João Alphonsus. Érico, além das obras que já assinalei acima, publicaria quase simultaneamente Música ao longe e Caminhos cruzados. Música ao longe tem um conteúdo suave como o titulo, nos ambientes e no trato das personagens. Em Caminhos cruzados dá uma lambada pra valer na burguesia porto-alegrense em lua-de-mel com a "dolce vita", no ano festivo do centenário farroupilha. E ainda na década de 30, deixaria sua presença assinalada com Olhai os lírios do campo e O resto é silêncio. No primeiro, mostra uma maneira atualizada de levantar personagens de corte universal, porém conservando o montante de angústias condicionadas pelos limites acanhados do chão que seus pés pisam. Contém uma mensagem triste de resignação. Em O resto é silêncio, além da técnica moderna, da atualidade dos temas e da forma literária escorreita, como é, aliás, característico em toda a obra de Érico, há de permeio com os retratos psicológicos uns bons rebencaços no ranço das sacristias que ainda tentavam impor-se, ardilosamente, sob a aparência enganadora de padrões morais, sociais e filosóficos do neocatolicismo então em voga. Mais tarde viria a trilogia intitulada O Tempo e o Vento, sua obra máxima. E por último, Incidente em Antares, magnífico.

O outro livro de gaúcho premiado, Os ratos, de Dyonélio Machado, deu renome nacional ao seu autor, em pouco tempo. À medida que vamos entrando no mundo miudinho desse romance, descobrimos inúmeros flagrantes do cotidiano das ruas e das almas pequenas. Impressiona desde logo o grupo que formam Naziazeno, Duque, Alcides e Mondina. O vínculo que os une é a deformação masoquista do caráter. À primeira vista, esses "Iutadores" parecem astuciosos armadores de ardis para sair de apertos, mas na realidade são uns pobres-diabos, movendo-se num clima emocional de constrangimentos, de restrições. E ao mesmo tempo de procura do sofrimento e do castigo. Esse livro evidencia mais uma vez o quanto os poetas se adiantam às vezes aos cientistas da mente humana, em especial quando se trata dos "fundos ignorados" do espírito.

Concomitantemente ao sucesso do Grande Prêmio de Romance "Machado de Assis", ocorria no nordeste um surto fecundo na área novelística e nomes como Jorge Amado, José Lins do Rego, Amando Fontes, Graciliano Ramos e outros principiavam a despontar nos rodapés da crítica literária. Em síntese, o Romance de 30 revela o trato dos temas da região do escritor, num estilo singelo, largado, enfeitiçado pela terra, mas sem ufanismo. É o modernismo da poetisa transposto para a prosa.

Também no ensaio e na crítica os anos 30 foram um período de muita afirmação. Só daqui do Rio Grande da Sul lembrarei três nomes de primeira linha: Augusto Meyer, que lançou em 35 seus magníficos estudos sobre Machado de Assis; Moysés Vellinho, que também escreveu sobre o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicando em 39 Machado de Assis, aspectos de sua vida e de sua obra; Vianna Moog, ensaísta envolvente, de pensamento claro, que nesses anos publicou Heróis da decadência, O ciclo do ouro negro e Eça de Queiroz e o século XIX. Gilberto Freyre publica Casa Grande e Senzala! E vários outros, pelo Brasil afora.

No referente ao Continente Sul-Americano, ocorreu no decênio em foco um acontecimento cultural da maior relevância. Em 1938 chega a Buenos Aires o psicanalista espanhol Angel Garma, em pleno vigor de sua mocidade e de sua capacidade criadora. Encontra boa receptividade de parte de alguns médicos argentinos, especialmente Arnaldo Rascovsky, pediatra, e Enrique Pichon-Rivière, psiquiatra. Organiza o primeiro grupo de estudos psicanalíticos de acordo com as regras da Associação Psicanalítica Internacional. Desse núcleo se irradiaria o ensino da psicanálise na América Latina, tendo como conseqüência a pujante expansão psicanalítica de hoje no continente inteiro.

Dois acontecimentos marcantes ficariam registrados nos anais de 1935. Um, festivo. O outro, sangrento. O primeiro diz respeito ao centenário da Revolução Farroupilha, que o governo do Rio Grande, à cuja testa estava Flores da Cunha, já como governador eleito pela Assembléia Legislativa, onde o seu Partido recém fundado, Partido Liberal, contava com ampla maioria. Essa agremiação partidária tirara seu contingente mais numeroso do tradicional Partido Republicano Rio-Grandense, cujo chefe sempre fora Borges de Medeiros, desde a morte de Júlio de Castilhos, em 1903. Esse foi mais um duro golpe de Flores da Cunha no seu velho chefe, tanto mais que o novo Partido foi fundado quando Borges de Medeiros se encontrava ainda em Pernambuco, como detido político, com muitas regalias, é verdade, porém ainda impedido de ultrapassar os limites do Estado. Mas Flores da Cunha foi mais longe ao transformar A Federação, jornal que nasceu com o Partido Republicano e foi seu porta-voz durante quarenta anos e que era propriedade do Partido, em órgão oficial do novo partido governista.

Flores da Cunha, um bacharel-caudilho que recebeu os galões de general pelos serviços prestados à "causa da legalidade" em 1923 e 1924, cônscio das tradições guerreiras da terra gaúcha, era o governador adequado para a comemoração daquele centenário. Para isso construiu um enorme e deslumbrante parque de diversões no Campo da Redenção, situado no coração de Porto Alegre. Esse parque permaneceu de pé durante mais de dois anos. De pé e funcionando, com o seu cassino, os seus restaurantes e churrascarias e a sua feérica fonte luminosa. O dia 20 de setembro, data da proclamação da república de Piratini, foi festejado com um desfile memorável, composto da Brigada Militar e de contingentes de cavalarianos vindos de todos os recantos do Estado, vestidos a caráter e os pingos gordos, delgados e bem apertados.

Aqui, no Rio Grande, esse festão. No centro do país, a agitação revolucionária. A conspiração comunista já datava de algum tempo, mas a presença de Luís Carlos Prestes no país, embora clandestina, acelerou a marcha dos acontecimentos. E quando se pensa sobre a agitação que havia, promovida pela Aliança Nacional Libertadora que era a face legal do Partido Comunista, e este infiltrando-se disfarçadamente em todas as organizações onde encontrava uma brecha, é da gente se perguntar: como foi esmagada tão rapidamente a violenta rebelião? Supõe-se até que somente os membros ativos do PC estavam decididos a matar ou morrer. Os outros, as da Aliança, vinham levando a revolução extremista meio no festivo, enquanto o governo, quando se apercebeu do que se tramava, encarou muito seriamente a situação, começando por botar na ilegalidade a Aliança Nacional Libertadora e prendendo muitos de seus cabeças estaduais. Assim, ao mesmo tempo que assustou os revolucionários, desbaratou suas ligações. Os mais convictos partidários do PC atiraram-se à ação, meio no desespero. Resultado: mortes violentas de parte a parte e inúmeras prisões. E então entra em cena, para valer, a figura sinistra de Filinto Müller, chefe de polícia do Distrito Federal. Depois de prender um estrangeiro famoso entre os comunistas, técnico em revoluções, começou a caçada, difícil e ardilosa, de Luís Carlos Prestes e sua mulher, Olga Benário, lutadora internacional, figura fascinante. Como se sabe, Filinto venceu, conseguindo prender o seu chefe do tempo da coluna.

Os demais presos, dos quais a polícia queria arrancar confissões, sofreram torturas. Mas em Prestes ninguém tocou com um dedo. O halo mítico de Cavaleiro da Esperança o defendeu. E note-se: ele foi duríssimo com os que o interrogavam. A sua tortura foi sobretudo moral, pois a conduta da polícia de Filinto Müler em relação à sua mulher, Olga Benário, grávida, adquiriu proporções inomináveis. Basta lembrar que a entregou à Gestapo, ela, judia e comunista!

Também não se pode obscurecer que Getúlio Vargas foi insensível aos mais veementes apelos para que Olga ficasse no Brasil, embora amargando a cadeia. Certamente as tremendas catilinárias de Prestes contra ele e seu governo, antes da "Intentona", cognome aviltante com que passaria à história aquela rebelião, teriam agravado o seu rancor .

Enquanto isso, nuvens cor de chumbo carregavam os céus da Europa. Em 1936, a flamante República Espanhola se defrontaria, em duríssimas refregas, com o exército de Franco, de língua passada com Hitler e Mussolini. A agonia da República durou três anos.

O mandato de Getúlio Vargas, de acordo com a constituição em vigor, terminaria em 38. Dois candidatos disputariam as preferências do eleitorado: José Américo, que aparecia como candidato oficial, do governo, e Armando Salles de Oliveira, de São Paulo. O mais ativo era o paulista. Estava sabendo valer-se muito bem do radio, o Brasil inteiro o ouvia. Os intelectuais apoiaram a candidatura de José Américo, autor de A Bagaceira, livro lançado em 1927, considerado precursor do romance de 30.

Enquanto se desdobrava a campanha sucessória, Getúlio continuava no exercício da presidência como se ainda lhe faltassem outros quatro anos para o término do seu mandato. As grandes concentrações populares, em São Januário, pelas quais vinha progressivamente tomando mais gosto, empolgavam-se cada vez mais com a melhoria da sua fala: "Trabalhadores do Brasil!".

Na realidade, ele conspirava contra o regime. Ao mineiro Francisco Campos fora encomendada uma constituição adequada a um Estado totalitário. Ao capitão Olympio Mourão Filho, oficial do exército nacional, coube a tarefa de elaborar o documento que ficaria conhecido como Plano Cohen, de acordo com o qual achava-se em articulação uma nova subversão comunista. O Plano veio a publico no dia 30 de setembro de 1937. Mais ou menos nessa data, Getúlio completou a manobra de limpeza no Sul, derrubando Flores da Cunha, única possível resistência organizada à instituição formal da ditadura, em moldes fascistóides. Flores começara a opor-se às entrevistas intenções de Getúlio desde que viu frustradas suas próprias intenções de sucedê-Io na presidência da República.

Aparentemente, em conseqüência das revelações alarmantes do Plano Cohen, no dia 1° de outubro Getúlio decretou "estado de guerra", e daí a quarenta dias, a 10 de novembro, seria instalado o Estado Novo. Dessa forma, o Brasil seria o primeiro país americano a emparelhar-se constitucionalmente aos regimes ditatoriais de Salazar, em Portugal; de Franco, na Espanha; de Mussolini, na Itália, e de Hitler, na Alemanha.

A década ainda prometia outras e piores. Assim, a 1° de novembro de 1939, a Alemanha invadiria a Polônia, e eis que se desencadearia a mais terrível guerra de todos os tempos, desde que os fatos mundiais principiaram a ser registrados como história.

Três semanas após o início da hecatombe, Sigmund Freud, o gênio criador da psicanálise, o maior revolucionário da concepção da personalidade humana que a cultura universal já conheceu, morria em Londres, exilado de sua pátria, a Áustria, e de onde pôde sair, às pressas, porém com o consentimento da Gestapo, graças à intervenção de Franklin Delano Roosevelt.


 

[1] Texto original publicado em Sombras e luzes; um olhar sobre o século. Porto Alegre: L&PM/MPM Propaganda, 1989.