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Nevoeiro Denso - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - histórias vividas e andadas

 

 

Fui alcançado por um rapaz que declarou andar à minha procura desde cedo.

- O senhor pode ir ver o meu pai, que chegou de fora hoje de tarde, muito mal?

- Posso. Fica longe?

- Regular. Lá embaixo, na aldeia, perto do rio.

- Bueno, vamos.

- Quer uma condução?

- Mas chega condução lá?

- Até meio por perto dá. Depois...

- Não. A noite está boa. A pé mesmo.

O rapaz adiantava-se, apressado, querendo me puxar. Eu, entretanto, estava gostando da caminhada e preferia ir devagar, como vinha andando antes. À medida que avançava, fui me embaciando, cedendo terreno às cogitações sombrias que já me haviam assaltado no começo da noite. As cismas dessas horas acudiam, chamadas ou não, com um toque de aflição que tinha o seu sentido. Permanecer no Batista, no ramerrão daquela clinicazinha menos que barata, miserável, seria sepultar-me. Sair? Buscar outra praça? De que jeito? Nesses momentos, momentos de realidade, por mais que me concentrasse, apelando para as reservas de energia que julgava possuir, só encontrava dentro de mim o fundo monótono e fatigante das próprias desesperanças, reflexo do ambiente que me cercava, principalmente a melancolia de minha mãe, que ainda não conseguira elaborar a perda de meu pai, nem o conseguiria nunca. Ele morrera três meses após a minha formatura.

O casamento me levaria à estabilidade? E depois? Deixar-me-ia abatumar na mornidão da rotina sãojoanina por toda a existência? E os planos de estudo, de cursos de especialização no Rio ou Buenos Aires, ou mesmo, numa hipótese mais ousada, em Paris? Não custava nada bazofiar numa roda de esquina que se pretendia isto ou aquilo. Mas que correntes pesadas me prendiam os pés àquele chão! Por enquanto, e por muito tempo talvez, os projetos de alçar vôo iriam sendo relegados para um "quando desse", impreciso e escorregadio. Em breve chegaria ao termo do terceiro ano de vida profissional, e os resultados, afora as experiências humanas polpudas, em dinheiro eram uma mixaria. A minha clínica era predominantemente a do médico novo, nas cidades do interior, naqueles idos da década de 30, pois essa tradição não se alterara ainda. Era a clínica dos três pês: parentes, pobres e putas.

Por certo, a dedicação frutificava. Ia aprendendo gradualmente a desembaraçar-me ante os casos os mais estranhos, com que me defrontava cada dia. Porém ao lado desse treino, de aparentes vantagens enganadoras, sofria prejuízos tremendos, que só eu notava. Naquela clínica empírica, fora de qualquer controle científico, os escassos conhecimentos que levara da Faculdade se evaporavam depressa ou se ocultavam, por falta de uso, nos desvãos da memória. Por outro lado, matutava, tímido, que num centro grande, talvez nunca conquistasse renome, porque me faltava paciência para a pesquisa e os demorados estudos minuciosos. Logo me lembrava de microscópio e dosagens. Naquele entonces, eu identificava ciência com laboratório. E isto me dava arrepios.

Numa cidade mediana, como era a Porto Alegre de há quase meio século, também não adquiriria nomeada. Faltava-me aquele arrojo, tão necessário, para a ostentação da meia-ciência. E numa cidadezinha, como São João, também provavelmente jamais atingisse o grau de eficiência e prosperidade que faz a glória de tantos médicos. Chegara já à conclusão de que o médico das cidades pequenas, para triunfar, precisa possuir o talismã dos curandeiros. Não atinava bem no que consistia esse dom. Também não via nisso nada de pejorativo aos colegas triunfantes. Esse curandeirismo (não achava então outra palavra que exprimisse melhor o meu pensamento) talvez se resumisse num certo ar jeitoso, que os outros tinham e eu não, ao enrolar uma atadura num braço quebrado, ao valorizar, quase inconscientemente, o próprio trabalho, ou talvez naquela maneira fácil de ceder às superstições do povo, concordando com o uso de todas as suas ervas e os seus chás, porém permanecendo sempre um degrau acima. Era um modo de capitular, tirando vantagens. Entretanto, agradavam-me certos aspectos da clínica no interior. Ali, o médico exercia o papel de guarda da tranqüilidade pública. Todos repousavam nele. Se um menino caía duma árvore e destroncava uma perna, imediatamente os pais corriam para o doutor mais à mão, na certeza de encontrar amparo e solução para o apuro. Nas cidades grandes a medicina auxilia em tais circunstâncias sob a forma impessoal do Pronto Socorro e, na maioria incontável dos casos, a família não fica sabendo o nome do médico que a atendeu no instante do susto. Essa assistência, assim prestada, é sem dúvida mais racional, mais de acordo com a nossa época tumultuária, nada humilhante para quem a recebe, de maior abrangência social; porém, sob o conceito clássico da medicina, de auxílio ao semelhante enfermo, dispensando num ritual que tinha algo de ofício sagrado, despiu-se de toda a significação tradicional, automatizando-se na aplicação de meia dúzia de esquemas, elaborados secamente, adaptáveis aos casos de urgência mais freqüentes.

Atingi o fim da rua. Detive-me ante o panorama noturno da aldeia, lá embaixo, que numa noite daquelas parecia ainda mais lá embaixo. Subia um nevoeiro tênue, envolvendo os ranchos semeados à toa. Os distanciados focos de iluminação apareciam emponchados num pala cinza.

Após uns momentos, que o vaqueano entendeu que fossem de hesitação, deixei que me guiasse. O rapaz tomou a dianteira. Seguindo-o, eu descia a estradinha estreita como caminho de ovelha e cheia de voltas, pedregosa, aberta entre unhas-de-gato. Tive receio e pensei que era mesmo uma arriscada andar por ali. Pedras soltas escorregavam e iam rolando longe, lançante abaixo. Os pretumes mais densos de sombra formados pelos arbustos rasteiros eram refúgios de almas do outro mundo, sem dúvida. Eu pressentia, em cada um, um frêmito de assombração. A noite escurecia mais à medida que a descida se espichava. A limpa da vereda fora só por baixo. Acima da minha cabeça os ramos dos arbustos entrelaçavam-se. Por vezes me roçavam no chapéu.

- Por aqui, por aqui, mais pra esquerda, mais pra direita, cuidado com os espinhos nas vistas.

Já era uma aventura! Eu não iria me sumindo na furna do Jarau? Em que ponto começariam as provas do meu valor?

Equilibrava-me agora num plano irreal, se possível. Atraente, sedutora, aquela interminável submersão no abismo, acordando memórias. Imaginava que a qualquer instante a cara do rapazinho que me guiava poderia transfigurar-se no rosto tristonho do santão da Salamanca. Manteria o ânimo alevantado até o fim? E quando chegasse a vez dos anõezinhos com suas piruetas gaiatas? Cadê alento para tamanha porfia? E a Teiniaguá não me decepcionaria? Que longos cabelos verdes, de folhas, raízes e caules! e que olhos de eternidade!

- É aqui, doutor. Entre.

No interior, naqueles tempos, as coisas diferiam muito. Quando havia perigo de vida, o médico socorria com a tensão que exige um ato dramático, pondo no gesto e na atitude mais do que a habilidade profissional, pondo a própria compaixão. Compartilhava das aflições dos que o rodeavam. Bem sucedido ou não, voltava sempre enobrecido. E quando ia devagar, ia devagar mesmo, de casebre em casebre, decorando a história de cada família, como se o tempo não contasse. Não consistia nisso a essência milagrosa que operava tantas curas de explicação impossível? Talvez - rematei com a resignação própria da desesperança - eu vá ficando por aqui mesmo, como tantos outros, antes de mim, depois de mim, patriarquizando-me insensivelmente ao longo dos anos.

Tomei fôlego, como se a idéia final me houvesse custado um esforço físico. Ergui os olhos e fitei as estrelas, campeando as Três Marias, obediente ao costume campeiro. Lembrei-me do meu pai, o seu Bilo, tal como o vira nas noites quentes do último verão antes da sua morte inesperada em abril. De vez em quando ele interrompia a charla, puxava mais para cima as mangas arregaçadas e assoprava nos braços cabeludos. E antes de reencetar o causo, num parênteses, atirava uma das suas frases mais freqüentes: "não chove, as estrelas estão dizendo" ou então: "pode ser que chova, a noite está forrada". Todos torciam a cabeça pra o céu, mas logo eram chamados à terra pela sua voz forte e timbrada: "como ia dizendo..." Tropecei numa pedra. Doeu a ponta do pé. Toda a minha armação fantasista se desfez num súbito, esborrachando-se na superfície áspera da realidade. Bocejei, como se me espreguiçasse na solidão. A rua, o que se poderia chamar de rua, ia se acabando. As casas distanciadas umas das outras tinham o ar recolhido da hora. Entre elas, muros compridos tapavam sítios incultos. Mais adiante, os terrenos baldios eram inteiramente abertos e inçados de ervaçal. Dali costumavam sair os fantasmas de capa preta que por vezes infestavam a cidade.

Sobressaltei-me. Não, não era a boca da furna - aquela boca negra, de cantos rasgados e tramada de teias de aranhas, por onde fugira um dia (um dia longínquo da minha infância), a Mãe do Ouro, que sofrera séculos encarcerada no bojo do único cerro mítico dos meus pagos - o Cerro do Jarau.

- Entre, doutor! - insistiu o rapazinho.

Me agachei para passar na porta acanhada do rancho, inconformado com aquele alto! ao meu devaneio, ordenado pelo meu comandante, meu guia-piá, voz-intérprete da situação presente, irremediavelmente humana e vulgar!

No casebre de um lance apenas, via-se um único catre, e em cima dele, espichado numa imobilidade que impressionava à primeira vista, um homem idoso, de bochechas chupadas, olhos baços e ossos salientes, esperava a minha ajuda. A minha ou a do primeiro que chegasse. À luz do candeeiro, a peça ficava numa meia claridade, insuficiente para mais do que um exame superficialíssimo. Tomei o pulso, a temperatura, auscultei os pulmões e o coração, palpei o ventre escavado. Pra que demorar naquele exame, se o caso estava visto de entrada nomais? Simplesmente por isto: sentia-me vigiado, em cada gesto, pelos vizinhos que se comprimiam na peça miserável. Muitos deles ou todos estavam ali, fazia horas, à espera daquele momento. Queriam assistir à chegada do doutor, vê-lo sentar-se perto do catre de guascas trançadas, fazer o exame, isto é, botar a mão no moribundo, e depois sacudir a cabeça desanimado, numa sentença. Seria uma judiaria decepcionar aquela gente. Representaria, portanto, ao menos parte da cena, a que me fosse menos comprometedora. Fazia parte da encenação dizer alguma cousa. Mas os meus lábios empacaram no silêncio. Foi com esforço que os movi.

- Há quantos dias não come?

- Faz três dias que não engole mais.

Infelizmente os meus dedos não me enganaram.

- Vai ficar bom, seu João.

A fisionomia endurecida esboçou (ou foi ilusão minha, favorecida pela penumbra da peça?) uma expressão de agradecimento. Fiz uma injeção, receitei, recomendei qualquer coisa e me despedi, prometendo voltar no dia seguinte. Dispensei a companhia do rapaz. O mesmo percurso, só que agora costa acima. Madrugada alta. Nevoeiro denso. Os galos cantavam o seu primeiro canto. Os cachorros latiam. Estavam sempre latindo os cachorros da aldeia, pra qualquer lado que a gente fosse. Logo aos primeiros passos senti a subida. O solitário poste de iluminação da boca da rua erma, que morria bem onde começava a descida a pique para o perau, embuçado na cerração, tinha um olhar de lástima para o descalabro da aldeia.

 

Cyro Martins.
A dama do Saladeiro (histórias vividas e andadas).
Porto Alegre, Movimento, 1980.

 

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- A relação médico - paciente