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A noite de seu Abílio* , in Estrada Nova ,de Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ficção

Na saga do gaúcho a pé, Estrada nova é o último romance da trilogia  e  parece indicar um vislumbre de  saída para um deserdado do campo, que se percebe insignificante na cidade. Sinal de esperança de transformação da realidade para Cyro Martins.

No caso de seu Abílio, em noite insone, sob ameaça de nova revolução,  mergulha na vida miserável de 30 anos como guarda-livros, se depara com sua realidade "descarnada", sente "medo" de continuar pensando...  Isso poderia levá-lo a querer uma vida nova. (MHM)  

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Para Abílio, revolução era uma cousa que os outros faziam e com a qual ele nada tinha que ver. Dentes apertados. Os olhos parados. O espírito aturdido. A parede lisa. E um pouco mais além, a revolução! Não, que esperança, aquilo não era para ele, para indivíduos da sua índole. Índole mansa, entregue, dessas que vão se consumindo no dia a dia sem consciência do irremediável. Não. Revolução era para os homens que se apaixonavam, que se agitavam como o coronel Quinca e o coronel Palma, no tempo dos libertadores de 23, que não temiam compromissos nem riscos de vida. Agora, como sempre, ele não tomaria partido. Obrigações, reconhecia duas primordiais: ser pontual no emprego e entregar no fim do mês o dinheirinho intacto a Livinha, para que em casa não faltasse o indispensável. Entretanto, revirava-se nos lençóis. Ia passando a noite em claro, com um mal-estar dos diabos. O pensamento galopeava, estivesse encolhido, espichado, de barriga para cima, de barriga para baixo, o nariz enterrado no travesseiro, ou de lado, para o esquerdo, quase abraçado na Livinha, mas sem chegar a tocá-la porque logo se virava para a direita apesar do ombro doído, e ficava fixo na fresta da janela, fresta grande demais, perigosa, que no dia seguinte de manhã mesmo providenciaria para... arrumar, tapar, fechar, não sabia bem o quê, como se diga, desde que... Idéias esquisitas lhe ocorriam, como escapadas duma represa, aproveitando a oportunidade rara daquela insônia, porque sempre deitava moído de cansaço com as dez ou doze horas de trabalho diário, encurvado sobre a escrivaninha navegando no rio de tinta sardinha da sua escrita, abrindo contas, fechando contas, caprichando nas iniciais, e algarismos, algarismos, somas enormes, de miudezas, porcarias, inutilidades, só para cansar. E quando deitava de noite era um sono só. E no outro dia... Bem, não se tratava verdadeiramente de outro dia, porque era igual ao de ontem, ao de anteontem e assim para trás, tudo fazendo crer que seria assim para a frente, numa fileira imensa de dias que se descompunham no nada, na poeira do tempo, simplesmente. Desacostumado de pensar e evocar, sobretudo de noite, porque já deitava com a preocupação única do amanhecer, estava se estranhando. E as recordações vinham com força, à procura dum lugar na sua memória, algumas arquejantes, outras assustadas, todas tristes, todas com um ar de irremediável. E teve que rememorar a infância. E a adolescência. E... Bem, mocidade propriamente não teve. Como no cinema, aonde raramente ia, viu-se vivo dos nove aos vinte anos varrendo a venda do Seu Sulpício; cevando mate para o patrão e atendendo a freguesia miúda; enrolando em papel de embrulho com relativa perfeição meio quilo, um quilo de açúcar, de arroz, de erva-mate e outros gêneros, em especial o feijão preto. Mais tarde, quando o velho morreu e o negócio passou para as mãos do filho, Cezimbra, foi subindo aos poucos, até atingir a posição de guarda-livros, onde permanecia desenhando nomes de fregueses, de mercadorias e algarismos com sua caligrafia nítida, limpa, empinada, já agora um tanto inclinada para trás, como batida pelo vento, o vento da pouca sorte.

Em meio a essas elucubrações, quase de pesadelo, surgiu-lhe de repente uma dúvida. Estaria no Seu Cezimbra desde... Precisava calcular. Mas não importava, com isso ia enchendo o vazio da noite insone. Como estaria no outro dia? Iria dormir sobre os livros, pela primeira vez em... Em quantos anos mesmo? Não acertava com a data da morte do velho Sulpício, por mais piruetas mentais que fizesse, ele que era um bicho em datas! Saberia mesmo o que estava pensando? Aquilo seria pensar? Que vergonha, se o pegassem dormindo sobre a escrivaninha, a cabeça pra um lado, o mataborrão caído, talvez uma mancha de tinta emporcalhando uma página inteira do Contas-Correntes ou apagando o débito dum freguês suspeito! ... Mas decerto não abririam a casa no dia seguinte. Ora, onde se viu abrir lojas num dia de revolução! Imaginou, num relance, a melancolia da Boa Compra fechada num dia de semana, sem carroças, sem cavalos, sem burros, sem caminhões na frente, sem sacos na calçada. Quem sabe quantos dias seguidos duraria isso? Uma revolução pode durar muito... A de 93 durou três anos. A de 23, nove meses. Apalpava-se, sacudia a cabeça, sim, era ele mesmo, por enquanto... Se os revolucionários tomassem a cidade e arrombassem as portas da casa, carregassem a mercadoria, rapassem o cofre? Tinha vinte e três mil seiscentos e quarenta e cinco cruzeiros e vinte centavos no cofre... Seu Cezimbra estava ganhando muito! O ano corria bem para os comerciantes do Batista, graças ao câmbio favorável para os castelhanos. "Nós estamos vendendo bem, nós fazemos tudo para contentar a freguesia, nós temos, nós estamos em falta, nós isto, nós aquilo..." "Nós" a cada instante, para uso externo, nunca para os lucros! Todos achavam que Seu Cezimbra ganhava uma barbaridade. E ele, o contador, o que dizia? Ah, não se animava, não se animava a ... Livinha seria a única pessoa capaz de entendê-lo? A Boa Compra era a casa mais forte de São João Batista. O que seria do Seu Cezimbra, se os revolucionários entrassem na cidade? Não haveria de ser como em 23, 24, quando governistas e rebeldes se sucediam nas entradas e saídas atropeladas do Batista. Isso ainda foi no tempo do Seu Suplício, que era maragato declarado. Ele contava que em 24 esteve na loja, comandando um piquete rebelde, o tenente Cordeiro, que depois foi até general e outros cargos mais: todos mui por cima. Pois Seu Suplício contava e ria que esse tenente - que demorou como uma hora na loja, comprando, tomando café - a cada instante passava a mão na cara e pedia desculpas porque não tinha feito a barba no dia. Seu Suplício ria, pícaro. Mas o que seria do Seu Cezimbra se os revolucionários entrassem na cidade? Porque esses tais de comunistas não levam ninguém pra compadre... É o que corre. Talvez o prendessem por algumas horas, só para averiguações. Pra comunista, pelo que dizem, todo rico é inimigo. Portanto, o Seu Cezimbra sendo um homem rico... Não, não o prenderiam. Só se ele reagisse. Bem, aí, o matariam. Tomara que o patrão não caísse nessa asneira! Mas o Seu Cezimbra não era nenhum coió, emigraria para o Uruguai. E dele, Abílio, o que seria, sem o escritório, sem os livros - o Razão, o Diário, o Borrador?... Sem o trabalho meticuloso e esmerado, que era a sinopse do Diário, feito concentradamente e no maior silêncio, depois que fechavam a casa, os caixeiros saíam, o patrão também e ele ficava ouvindo com um prazer quase sensual o raspar leve do bico da pena na folha larga... O que seria dele? Não o prenderiam também? Antes o prendessem! Mas os comunistas não prendiam pobre. Desde quando levava aquela escrita? Desde quando alinhava, nos livros da Boa Compra, as colunas perfeitas do débito e do crédito da freguesia? Desde... Aí a memória emperrava.

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- Trinta anos! - exclamou Abílio em voz alta.

Aquele "trinta anos" ficou ressoando no seu pensamento, como dentro duma furna. Trinta anos, e ganhando apenas setecentos cruzeiros mensais! E isto que as suas funções não se limitavam somente às de guarda-livros. Sem dúvida, Cezimbra enriquecera com sua ajuda e ele, pobretão, sofrendo privações (essa era a palavra!), vendo os filhos crescerem sem poder educá-los convenientemente. Os rapazes já iam no mesmo caminho insignificante que ele seguira: caixeirinhos de balcão. Eram humildes, eram bons, entregavam à mãe os ordenadinhos todos os fins de mês para auxiliar na despesa da casa e pareciam não se importar muito com os sapatos furados e as calças remendadas. As filhas, menos mal se casassem, se não caíssem nas garras dos gaviões. Bonitinhas, Se andassem bem arrumadas, fariam figura na sociedade. No entanto, um dos filhos do Seu Cezimbra formava-se em Direito naquele ano. O outro não dera para nada, estrabulega incurável, sua profissão era gastar dinheiro. E ele, Abílio, suando anos a fio, desunhando-se em cima daqueles livros, gastando sua vida, sacrificando sua família, para que aquele sujeitinho esbanjasse com mulheres à-toa, no jogo, nas bebedeiras, nas noitadas... Não, não estava certo. Não podia estar. Engraçado, pela primeira vez via que aquilo não era direito. Algo que se havia desprendido dele, que pairava fora e acima dele, e que ao mesmo tempo lhe martelava a cabeça por dentro, lhe dava a noção exata de tudo. Esse "tudo" era a sua realidade. Descarnada. Terrível. Uma injustiça feita a um pobre cristão! Irreparável! Irreparável? Sentiu medo de continuar pensando, medo de enlouquecer. Medo de matar. Sentiu terror de continuar pensando, pensando e vendo. Antes ficar com o pensamento nebuloso, não enxergar um palmo adiante do nariz! Fechou os olhos com força, virou-se para o lado da mulher, em busca de proteção. Puxa, mulher abnegada! O cérebro, porém, teimava em não dormir, trazendo-lhe à consciência um sentimento de revolta oculta, longamente abafada, tão abafada, que nunca a percebera. E se de uma hora para outra o mundo virasse e Cezimbra fosse obrigado a dividir os lucros com os empregados? Os lucros da sua "firma sólida"! Tesouro amontoado com o suor dos Abílios. Ah, não queria pensar naquilo, mas não podia sujeitar as idéias, que disparavam, disparavam, xucras. Virou-se para a parede, à espera do amanhecer, como um condenado. Com que cara se apresentaria na manhã seguinte diante do patrão? Não levaria estampados na cara os pensamentos da noite? Na hora de tomarem chimarrão juntos, às sete em ponto, trocando opiniões sobre ocorrências da loja, planejando negócios, comentando fatos e figuras da cidade, os acontecimentos relativos à revolução sobretudo, ele suportaria o olhar do patrão? Ele, Abílio, o fiel, o desesperado, o sustentáculo da Boa Compra, que se consumia sem rosnar junto com o seu bando familiar, jamais apunhalaria ninguém pelas costas! Começaram-lhe as fontes a latejar. Era de não dormir, raciocinou. De novo, encolheu-se, espichou-se, coçou-se, desabotoou a calça do pijama e a ceroula por achar que estavam apertando. Precisava dum sono reparador, duma hora que fosse, se não no outro dia, no outro dia que era aquele mesmo, o que já principiava a clarear... Agora, sim, ia pegar no sono. Bocejou vezes seguidas. As pálpebras fecharam-se espontaneamente. Madrugada. Primeiras barras do dia. Um galo cantou com uma certa pacholice de madrugador por esporte. Cachorros latiam nos quintais. Um uivava, justamente o cachorro velho da Dona Benta, vaticinando desgraças próximas. Desgraças? Sangue? Se o mundo virasse! Ah, se o mundo virasse!... De novo os olhos acesos e o mesmo pensamento extravagante, devorador, intempestivo, a martelar a parede lisa do crânio. A mesma revolta, agora mais nítida, sabendo melhor o que pretendia, com tendência a ser admitida. Esquisito, muito esquisito. Aquele absurdo não podia ser. Aquelas familiaridades com o crime! Antes a penúria, a obscuridade até à morte. Seu Cezimbra era um patrão muito bom. Pagava pouco, porque todos pagavam pouco. Explorava, porque todos exploravam. Cezimbra nascera rico. Tudo muito simples, muito claro. Quanta cousa louca lhe estava fervendo na cabeça! Se tivesse força, acharia graça. E isso que nunca lera os tais de folhetins que diziam que os comunistas distribuíam, falando horrores dos ricos, das injustiças sociais e, mais, dos revides que os pobres deveriam tomar! Não se recordava duma insônia assim em toda a vida. O dia clareava. Seus temores de enfrentar o patrão no dia imediato cresciam. E, mescladas, cresciam também, expandiam-se, como tentações do demônio, suas reflexões acerca das dificuldades da vida. Tudo pela hora da morte! Aliás, desde que se conhecia por gente, pra ele pelo menos, as cousas andaram sempre pela hora da morte. O último terninho que comprara, confecção da pior, fazia dois anos. As filhas não freqüentavam sociedade por falta de vestido. A mulher estava com duas panelas enormes na boca e outras menores. Compor os dentes custava um dinheirão! Seria por causa das cáries que a coitada da Livinha andava com um mau hálito horrível? Mas Seu Cezimbra era um patrão muito bom. Nem parecia patrão. Quando chovia e o movimento espaçava conversavam horas a fio na maior intimidade. Cezimbra derramava-se em confidências, contava-lhe, com orgulho e satisfação, os luxos da mulher, os dengues das filhas, os enfeites comprados para a casa, os presentes para o filho acadêmico e até mesmo, sorrindo envaidecido, os esbanjos do filho boêmio. E ele ouvindo, concordando, fascinado, com cara de besta, sem nem sequer uma sombra de reprovação, achando que a vida era assim esmo, boa pra uns, ruim pra outros, que tudo estava muito certo, faceiro daquela confiança. Nunca Cezimbra, ao termo dessas conversas que prolongava por desfastio, tirando-lhe horas de trabalho que iria depois compensar com outras tantas de serão, de amor em graça, lhe indagou da sua situação e muito menos lhe prometeu cousa alguma. Que barbaridade, que idéias! Não, no dia seguinte não iria à loja. Mesmo que a casa abrisse, apesar da revolução, se houvesse, mandaria dizer que não iria trabalhar porque se achava adoentado. Esse aviso certamente causaria alarme. Julgariam logo, e com razão, porque nunca adoecia nem faltava ao serviço, que se tratava de moléstia grave. Viriam visitas. O próprio Seu Cezimbra, que era um patrão muito bom, viria em seguida, assim que soubesse a notícia. E então falhariam seus planos de se esconder. O que ele não queria era defrontar-se com Cezimbra, assim tão pronto, apenas horas depois daqueles pensamentos. Mas, se o mundo virasse... Não tinha a menor noção do que poderia acontecer se houvesse de fato uma reviravolta no mundo velho. Muito menos agora, de cabeça cansada, aturdida, os olhos ardidos de insônia. Duma cousa sabia, porém. Era que, assim como estava o mundo, ele era um homem sem esperança!

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* Excerto do último romance da  trilogia do gaúcho a pé, de Cyro Martins: Estrada nova. Porto Alegre, Movimento, 1975 ( 2a. ed). pp. 152-157. 1a. ed.1954.

 

Leia sobre esse romance:

- O Ciclo do Gaucho a Pé: Estrada Nova -  Cícero Galeno Lopes

- Personagens e personalidades - fazendo história- José Onofre