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O Legado Cultural de Alcides Maya - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ensaios

 

 

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Graças à generosidade de Augusto Meyer, estive inúmeras vezes com Alcides Maya e guardo a mais viva lembrança da sua presença fascinante. Não era um homem de acesso difícil. Pelo contrário, tenho a impressão de que ele apreciava as visitas, principalmente aquelas que lhe podiam servir de auditório diante das quais, conforme as circunstâncias e o momento, tanto enquadrava um fato na perspectiva histórica do Rio Grande ou reanimava o seu lendário, como abordava temas da literatura universal ou esmiuçava problemas do seu tempo. Mas não nos adiantemos. Prefiro imprimir uma certa ordem cronológica a este depoimento.

O meu primeiro contato com a obra de Alcides Maya aconteceu em janeiro de 1924, na minha terra natal, Quaraí. Fazia dois meses apenas que fora firmado o Pacto de Pedras Altas, dando por encerradas as atividades revolucionárias que, durante nove meses, revivendo velhas façanhas guerrilheiras, alvoroçaram as coxilhas do Rio Grande do Sul. Meu pai que, à semelhança de centenas de moradores da campanha, se instalara com a família na cidade, à guisa de maior segurança, ainda não se decidira a voltar para os pagos.

Os escassos trinta anos decorridos da sangrenta guerra maragata não haviam sido suficientes para apagar da memória os episódios de ódio e vingança daquele fratricídio. Estudante em férias, se por um lado gostava dos passeios à tardinha ao redor da praça, da velha praça de Quaraí, arrodeada de avenidas de eucaliptos gigantescos, namorando as gurias de minha idade, por outro, acompanhava com exaltação o desenrolar dos acontecimentos políticos e vibrava com a chegada dos heróis revolucionários retomando gloriosos das coxilhas, palavra que simbolizava a guerrilha gaúcha.

E além disso, lia e começava a ensaiar os primeiros escritos. Estava, portanto, de ânimo predisposto para receber, como recebi, certo dia, das mãos de um tio paterno, que estimo muito, um livro de contos gauchescos intitulado Alma Bárbara, da autoria de Alcides Maya, aparecido um ano e pouco antes em 1922. Nunca mais eu largaria de mão esse livro, embora às vezes ele fique, como sói acontecer mesmo com os livros mais amados, imobilizado na estante, curtindo o seu destino de livro. Revejo-me, com os meus quinze anos, sentado numa cadeirinha baixa no pátio lajeado da casa de aluguel que ocupávamos, à sombra dum umbu do quintal do vizinho, folheando aquelas páginas largas, cuja finura literária eu iria descobrindo aos poucos, à medida que amadurecia e voltava a elas. E ainda agora, quando as releio, descubro novidades na abordagem dos temas crioulos, sugestões fecundas, volteios de estilo, e sobretudo ouço os ecos das campereadas, me afundo no silêncio das noites do pampa e vibro de novo com a poesia dispersa do ermo. Férias bem aproveitadas foram aquelas!

E tanto mais que, dias depois, o recém-conhecido Waldemar Ripoll, jovem talento impregnado duma filosofia heróica de vida e tragicamente destinado ao sacrifício precoce, quando lhe falei de Alma Bárbara, com aquele entusiasmo que estonteia os quinze anos, me veio logo com a Tapera, já obra antiga de Alcides Maya, surgida em 1910. Estava todo sublinhado o seu exemplar, como aliás quase todos os jovens o fazem, quando tocados pela admiração. Já então era obra esgotada. E até hoje só conheceu uma segunda edição, quarenta e dois anos depois de seu lançamento, e isso mesmo graças ao empenho amigo de Augusto Meyer. Mas deixem-me folhear ainda por instantes, na saudade, junto com Waldemar Ripoll, aquelas páginas mordidas de riscos e exclamações nervosas.

Mais velho que eu, mais lido e mais experiente, Waldemar me ajudou a penetrar no mundo gauchesco da ficção alcidiana. E me emprestou o seu precioso exemplar com muitas recomendações, entre as quais esta: não perdesse de vista que se tratava de obra esgotada! A expressão obra esgotada ficou ressoando na minha fantasia e me acompanhou, enquanto eu caminhava vagarosamente em direção a minha casa, com o volume bem seguro na mão. Ia devagar porque, àquela hora, ao declinar da tardinha, não me adiantaria mais sentar no pátio para ler e a luz da cidade ainda tardaria uma hora para vir. Entretanto, mesmo no lusco- fusco, não resisti à tentação e parei mais de uma vez para dar uma espiada no prefácio de Coelho Netto. Recordo ainda hoje que me impressionaram, talvez definitivamente, duas passagens do prefaciante, que procurei agora e felizmente encontrei.

“A nossa literatura -escreveu Coelho Netto -em vez de iluminar, encobre: é nuvem, quando deveria ser luz. Feita com as densas fumaradas que nos trazem os ventos de longe, abruma-nos.” Essa chamada incisiva do famoso escritor para a necessidade dos intelectuais da época olharem com interesse criativo para os motivos nacionais, a nossa natureza e a nossa gente, me ficou gravada. Não era matutice literária, pois escrever sobre como se vivia na campanha não representava pobreza de imaginação, nem juntar os gravetos da nossa humilde experiência e tentar construir uma estória, Animado, olhei para dentro de mim e, inspirado nas vivências de infância na campanha: escrevi o meu primeiro conto, pelo menos a minha primeira página que eu n atrevia a batizar assim.

Para quem possui um lastro de imagens campeiras na sua bagagem de experiências existenciais é fácil sentir no ritmo do estilo de Alcides Maya a autenticidade da sua produção como ficcionista, em que pese o vocabulário por vezes rebuscado, impróprio mesmo à natureza dos seus temas.

Esta é a restrição mais grave de alguns setores da crítica à obra alcidiana. Realmente, não se pode ocultar que existe essa defasagem, enfeando a estrutura da sua frase, em muitos trechos, em especial na primeira parte de Ruínas Vivas. É difícil de conceber que um escritor do nível de Alcides Maya, senhor do amplo universo da cultura, freqüentador assíduo, desde mui jovem, dos mais significativos autores da filosofia, do ensaio e da ficção do século XIX, escrevendo em português depois de Eça de Queirós e Machado Assis, caísse na armadilha coelhonetana de atulhar certas páginas de seus textos de termos arrevesados, já em desuso na época, a ponto da leitura desses textos ser apenas possível com o dicionário na mão.

Não se trata duma complexida estilística excedendo os limites do regionalismo, à maneira de Guimarães Rosa, que choca também, mas o impacto que produz é pela novidade da invenção, pelo inédito da palavra recém-criada, ainda úmida das águas da fonte original, num esforço agoniado para expressar o primitivismo anímico de suas criaturas. Alcides não. Foi buscar nos arcanos da língua palavras anacrônicas, palavras que, talvez, correspondessem ao sentido expressivo das suas emoções, mas que, aos leitores, soam como maneirismos autistas, destoantes da realidade humana circunjacente. Sinto muito ter que me incorporar aos que o criticam por esses deslizes de escrita.

Não obstante, seus três livros de ficçao -Ruínas Vivas, Tapera e Alma Bárbara - se impuseram à crítica e aos leitores. É que há na ficção gauchesca de Alcides Maya uma comovente identificação com os seus motivos, identificação, essa, que ele transfunde ao leitor, envolvendo-o, tornando-o íntimo, pelo sentimento de cenas e costumes da vida pampiana que descreve, embora às vezes sobrevenham arrancadas um tanto artificiais, frutos de uma forçada de mão para caracterizar maneiras de viver idealizadas. Como explicarmos essas falhas? Pelo temperamento romântico não se explicam.

Talvez pelo detalhismo naturalista, como nas primeiras páginas de Ruínls Vivas. O fato é, porém, que a ficção alcidiana possui um sentido gauchesco tão pleno, abrange aspectos tão extensos da vida da nossa campanha na transição do século passado para este, abre sobre o Rio Grande uma ramagem tão dourada ao sol do seu talento, que vem sobrepondo-se aos tropeços de estilo e às conseqiientes ventanias da crítica. Crítica bem intencionada e respeitosa, acentuemos. Mas, sem dúvida , soprepujam largamente as qualidades de linguagem sobre os senões.

Quero ainda ressaltar sua rara capacidade estética de não só retratar a paisagem da campanha rio-grandense , principalmente os descampados da fronteira, como também captar-lhe o que as suas nuances de cor e linha insinuam na alma da gente, tais como a imponência monótona e tristonha das vastas planuras, os ocasos apoteóticos, as manhãs cintilando no triunfo da luz, as invernias brabas e ventosas.

Ele é, pois, sobretudo, um paisagista, embora não se possa dizer que não traçou perfis caracterológicos notáveis, como o do Miguelito, Neco alves, Jango Souza, Tio Moysés, Anilho, Aires, Ritoca e outros. E há ainda a ressaltar o ppensamento-guia, profundo e pungente, voltado para o destino das glebas miseráveis do interior do país. Esse pensamento foi a base ideológica sobre a qual se estruturou o enredo de Ruínas Vivas , a ponto de Augusto Mayer considerá-lo o primeiro romance social do Brasil.

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Excerto do ensaio “O legado cultural de Alcides Maya”.
In: MARTINS, Cyro. Escritores Gaúchos. Porto Alegre, Movimento, 1981, p. 20-23.