X Jornada CELPCYRO

img banner

Informe CELPCYRO

Cadastre-se e receba nosso INFORME
Nome
E-mail*
Área de Atuação

Redes Sociais

  • Twitter
  • Windows Live
  • Facebook
  • MySpace
  • deli.cio.us
  • Digg
  • Yahoo! Bookmarks



"PARA INÍCIO DE CONVERSA" | Imprimir |  E-mail

Os excertos que seguem apresentam uma mostra dos diálogos entre Cyro Martins e Abrão Slavutzky, e indicam como o trabalho se desenvolveu, para ambos, entre a informalidade de uma conversa e a consciência de um legado.


.............................

Sobre leituras significativas e influências


Abrão Slavutsky-Gostaria que falasses de algumas outras leituras que foram significativas pra ti, tanto as referentes à formação intelectual, como aquelas que foram importantes no sentido afetivo. Como umas e outras marcaram tua produção científica e literária? Como a ligação com idéias e autores europeus se concilia à realidade social, política, econômica e cultural do Rio Grande da primeira metade do século e em que medida isso interferiu em tuas posições como profissional da medicina e como escritor?

Cyro Martins -Naturalmente, à medida que fui navegando pelos oceanos da Ii teratura, descobri outros guias. Aqui, do Rio Grande, Simões Lopes Neto. Do Brasil, Raul Pompéia. Dos platinos, José Enrique Rodó, Sarmiento e José Ingenieros. Sem falar em Hernandez e nos demais poetas do pampa. O número é grande, embora não seja tão grande quanto o deveria ser. Acontece que nunca fui um leitor esfaimado. E quando estudante, na minha nobre e lamentável condição de pobre, eu quase só lia livros emprestados. Quando podia comprar um livro numa liquidação ou num prego por um, dois mil réis, era uma operação de alto risco financeiro, porque esses cobrezinhos podiam fazer falta para a laranja de umbigo, com que eu reforçava a bóia da pensão.

Mas a tua pergunta é bem mais ampla. Vamos ver se chego lá. Talvez  indiretamente. O caso é que, quando descobri os poetas e contistas regionalistas do Rio Grande e do Prata tive uma sensação de reencontro com o conhecido, o que é sempre confortável. Eu sempre achei linda, arriscada e briosa a lida campeira, desde gurizinho. De sorte que, lá pelos quatorze, quinze anos, quando me topei com os gaúchos, os rodeios e as tropeadas, cantados em versos ou relatados em cuentos, isso pra mim foi a glória. Em seguida comecei a rabiscar os meus primeiros contos. E me orgulho de nunca ter sido ufanista, e isto que estávamos na década de vinte, certamente os dez anos mais gauchescos deste século. Isso, sem dúvida, devido ao culto de um grupo de jovens pela obra de Alcides Maya, à revivescência dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul de Simões Lopes Neto, e do Antônio Chimango, do Amaro Juvenal. E mais o Martin Fierro, de Hernandez. Estes dois últimos eu ouvi declamados na campanha. E nunca me esqueci da exclamação emocionada de um chirú velho ao ouvir trechos de Martin Fierro: "Decerto esse foi o gaúcho mais valente que existiu!".

Quero salientar ainda que, junto com tudo isso e algo mais, como a efervescência política e suas revoluções, havia ainda a revolução poética do Modernismo. Talvez, fora de São Paulo, em poucos lugares do Brasil o modernismo alcançou tanta repercussão como na Rua da Praia! O nosso gauchismo andava incrementadíssimo, como já disse, casou muito bem o verde-amarelo dos poetas demolidores da métrica e da rima e também com o espírito continental de Toda a América, de Ronald de Carvalho, pois estávamos bastante influenciados pelo Ariel, de José Enrique Rodó, um ensaísta uruguaio que nos empolgava. Aliás, ele conquistou prosélitos contra o materialismo norte-americano em toda a América Latina. Eu era um deles. Sabia frases suas de cor. E alguns de meus companheiros também, particularmente o Waldemar Ripoll. Um outro livro de Rodó que nos encantava era Motivos de Proteu, cuja primeira frase posso repetir ainda agora, sem vacilar: "Transformar-se es vivir". No Brasil, creio que a sua influência não passou do Rio Grande.

A.S. -Especificamente, como tu e teu grupo conciliavam as idéias de autores europeus com a realidade social, política, econômica e cultural do Rio Grande de então? Estou me repetindo porque achei muito grande a minha pergunta anterior .

C.M.-Seguíamos a tradição da influência das correntes culturais provindas da Europa, principalmente da França, da Itália, da Alemanha, da Inglaterra e, como não? , da península Ibérica, Espanha e Portugal. Descobrir o Eça foi pra mim equivalente a achar As Minas de Salomâo. Uma das enormes satisfações intelectuais que experimentei, ainda muito jovem, foi a descoberta dos cientistas-filósofos evolucionistas alemães, em traduções razoáveis. O Mário Martins costumava dizer, em tom de troça, que, quando me conheceu eu tinha dezessete anos, lia Haeckel e batia no peito jurando que descendia de macaco! Era a contrapartida da religiosidade do internato.

A.S. - Em que medida esse somatório de leituras tão diversificadas te ajudaram ou te prejudicaram?

C.M. -Acho que mais me ajudaram do que me prejudicaram, porque abriram espaços para todos os quadrantes, ou quase. Me dou conta, em tempo, que dizer todos os quadrantes é demasiado pretensioso. O certo é que um adolescente pintando para intelectual, com uma curiosidade mental enorme, lê tudo que encontra ao alcance de sua mão. Mas fazendo um balanço, agora, a uma distância nada desprezfvel, concluo que as minhas leituras de adolescente não foram tão dispersivas como à primeira vista pode parecer. A boa influência é a que deixa o jovem escritor buscar livremente os seus assuntos e o seu estilo. Aliás, assunto e estilo andam juntos, irmanados. Mas, então, em que consiste uma certa filosofia de enfoque da coisa literária, com a qual sintonizamos? Isso ajuda a diferençar influência de pastiche. A primeira, louvável e necessária para estabelecer a continuidade do ideal criativo em literatura, através da sucessão das escolas. O pastiche é puro servilismo.

Éramos um grupo. Tfnhamos ideais comuns. Em polftica, éramos liberais, democratas e, como tais, combatíamos a ditadura do Papa Verde dos pampas, o Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, já no seu último quinqüênio governamental, quando o nosso grupo entrou na política, fazendo discursos e escrevendo artigos antiditatoriais. Acho que foi um período fecundo, aquele. Nos ajudou a tomar consciência da realidade nacional muito mais vivamente do que se fôssemos meros espectadores dos acontecimentos. Daquele nosso grupo, dois tombariam assassinados, por motivos políticos muito cedo, como já te contei: Waldemar Ripoll, em 1934, aos 28 anos, e Aparício Cora de Almeira, mais ou menos com essa mesma idade , em 1935. Esse foi o nosso tributo de sangua ‘a causa pública. Digo-o sem nenhuma jactância, mas para salientar o quanto éramos sinceros  e o quanto nos arriscávamos.

.....................

Cyro Martins e Abrão Slavutsky ,
em Para Início de Conversa. (Memórias). Porto Alegre, Movimento, 1990. p. 97-100.




Sobre Freud e a Psicanálise

.....................................

A.S. -Cyro. a nossa conversa tem sido basicamente sobre as tuas primeiras décadas de vida e sobre a literatura, especialmente os teus romances. Agora, eu gostaria que pudéssemos falar sobre alguns temas psicanalíticos, começando pelo pai da psicanálise. O que foi Sigmund Freud e o que é até hoje na tua vida?

C.M. -Em geral um grande autor transmite a sua filosofia de vida aos seus leitores, muitos dos quais se convertem em seus seguidores e se intitulam seus discípulos, orgulhosamente. através das suas obras. Com Sigmund Freud aconteceu um fenômeno singular. Até nisso ele foi original. A influência de suas idéias alcançou milhões de indivíduos através de seus livros. Mas os que se fizeram seus discípulos e continuadores foi por se haverem submetido à aplicação em si mesmos da técnica de conhecimento da mente humana descoberta por Freud, tornando-se assim aptos a usá-Ia no tratamento das neuroses. Isso não quer dizer que todo indivíduo que se analise se torne, por isso, um discípulo de Freud. É bom que o público saiba que, para chegar a analista, o candidato faz um longo percurso, cheio de dificuldades. E, na boca do túnel, recebe a senha duma profissão difícil. porém altamente nobilitadora. E cada analista tem sua ascendência em Freud.

No meu caso, me analisei com Arnaldo Rascovsky, que se analisou com Angel Garma, que se analisou com Theodoro Reik, que se analisou com Freud. Como se vê, Freud é o começo de todas as análises. Esta vereda nos levaria muito longe. Para sintetizar, te direi que Freud é uma presença constante na minha vida intelectual e afetiva. Não passa um dia que não leia uma página de Freud ou algo sobre algum de seus conceitos. E se às vezes, como pode acontecer nas férias, deixo um pouco de lado os seus escritos e as revistas especializadas, isso não significa que a sua concepção de vida, que ajudou a formar a minha, não esteja presente no meu dia-a-dia. Não sei se satisfiz a tua curiosidade, mas certamente outras perguntas pelo estilo virão. Demais, será bom que fiquem uns vazios para preenchê-Ios com tuas fabulações.

Sobre Ego, Super-ego, Id

A.S. -A propósito de uma das perguntas que te fiz sobre o Drummond, tu respondeste utilizando a palavra Ego. Fiquei pensando numa crítica de Bruno Bettelheim à Standard Edition e às traduções de Freud em geral. Como exemplo ele propõe traduzir Ich, über Ich e Es por I, Above I e It. Para o português poderia ser talvez Eu, Super Eu e Isso. A tese dele visa caracterizar a escrita e o pensamento de Freud como mais perto da experiência cotidiana e não como uma linguagem especial. Como vês este problema?

C.M. -A questão que me propões não é nova pra mim. Já no meu ensaio . “ A criação artística e a psicanálise" faço a propósito uma citação de Charles Rycroft. Salienta esse autor que há na atualidade (convém lembrar aqui, entre parênteses, que o meu trabalho já tem mais de vinte anos e o de Rycroft deve ter no mínimo vinte e cinco) uma tendência a abandonar as descrições topográficas, por serem consideradas estáticas, e dar preferência aos conjuntos dinâmicos e econômicos, focalizados como processos. Dessa forma, evitar-se-ia a coisificação e ter-se-ia sempre presente a essência fictícia, simbólica, de conceitos tais como id, ego e super-ego. E logo Rycroft nos adverte para que tenhamos sempre em mente, nas situações práticas e nas elocubrações conceituais, que os chamados processos primários e secundários são construções teóricas. É  sabido, entretanto, que toda ciência nova ou teoria requer uma terminologia também nova para poder grafar e transmitir suas  concepções originais. A psicanálise não podia fugir a essa regra universal. Para evitar confusões, basta que tenhamos consciência de que estamos lidando com conceitos e não com coisas. Agora, quanto às traduções, se esta é mais fiel ao pensamento de Freud que aquela outra, é preciso lembrar que as línguas para as quais foi traduzida a obra de Freud tiveram de adotar vocábulos que se coadunassem com os que também eram novos no original alemão. E se tratando de metapsicologia as dificuldades crescem muito. Quanto a mim, que não sei alemão, sou grato aos tradutores, embora reconheça que há alguns assassinos. E quanto à crítica de Bruno Bettelheim, não vejo vantagem em adotar a terminologia que ele propõe em lugar da já consagrada e que nos serve muito bem, desde que tenhamos em mira sempre a advertência de Rycroft.

Sobre religião

A.S. -No dia 6/1/1939, Freud escrevia a Lou Andreas Salomé a respeito da religião: "As religiões devem seu poder compulsivo à volta do reprimido. São lembranças redespertadas de episódios muito antigos, esquecidos e altamente emocionais da História Humana". Apesar das verdades que Freud escreveu sobre esse tema, tenho a impressão que o fenômeno religioso é mais profundo, uma necessidade humana, mas quero saber mesmo é a tua opinião, Cyro.

C.M. -Num dos nossos encontros anteriores afirmei que uma das melhores heranças que meu pai, um gaúcho rude, me transmitiu, foi o ateísmo. Ele não acreditava nem em benzeduras. Quando, aos dezessete anos, me encontrei com Haeckel e Darwin, a minha crença-descrença tomou um alce muito grande. Ao descobrir Freud, aos vinte e poucos, a minha irreligiosidade adquiriu foros de cidade. Acredito, como o nosso mestre, que as religiões são concepções de mundo mitológicas, isto é, "psicologia projetada no mundo exterior". Daí a analogia com a paranóia que ele faz. E mais uma vez manda procurar a explicação dessas construções na psicologia do inconsciente. Pra mim, o religioso é uma pessoa que anda sempre com o pé na raia da psicose. Se é um religioso de fato, várias vezes por dia pisa fora da realidade.

Por exemplo, vem um cidadão bem apessoado pela calçada quase sem movimento, num domingo de manhã, lendo o seu jornal, e de repente seus olhos dão com a fachada duma igreja católica. O que acontece? Ele põe o jornal sob o braço esquerdo e com a mão direita faz O sinal da cruz. Que fenômeno ocorreu? Naqueles segundos, o nosso homem se desprendeu da realidade objetiva e o dia-a-dia e entrou na espiral dum mundo supra-sensível, nte fora do alcance do seu controle. Agora. que a religião  é  uma necessidade humana, é incontestável, do contrário não existiria. Essa necessidade provém do fato da criatura humana nascer e ser criada torta. Seu meio-ambiente infantil é em geral um caldo de cultura de superstições. Nos colégios não se costuma confrontar as crendices  com os dados da ciência. Filosofar é considerado uma perda de tempo!

Sobre a morte e a guerra

A S. - Após a Interpretação dos Sonhos, a sua obra mais importante, alguns psicanalistas consideram o Além do Princípio do Prazer como um livro fundamental. Freud introduz o seu famoso conceito  de pulsão de Morte. Cyro, estás convencido de sua importância? te sobre a guerra e creio ser uma de tuas grandes preocupações, não?

C.M. - Se estou de acordo com o conceito de pulsão de morte? Humildemente, digo sim. A minha longa experiência de psicanalista não me deixa pensar diferente. Quanto à guerra, expressão coletiva universal do instinto de morte,  considero-a a própria anti-cultura. N´O Mal-estar na Cultura, que é de 1930, Freud assinalou magno obstáculo com que tropeça a evolução cultural humana é a “tendência constitucional dos homens a agredirem-se mutuamente”.

Sobre as aplicações da psicanálise

A S. -Numa revisão que fiz dos teus escritos psicanalfticos, percebi que escreveste sobre as aplicações da psicanálise: a medicina, a psicoterapia de grupo, a criatividade artfstica, entre outros. Como analisas esse teu percurso?

C.M..-Antes de mais nada, é preciso lembrar que, de acordo Freud, a psicanálise é uma teoria sobre o funcionamento da mente humana e a análise individual uma aplicação das idéias psicanalíticas  ao tratamento das neuroses. A medicina psicossomática e a psicoterapia analítica de grupo são aplicações naturais e lógicas dos princípios  da psicanálise, seguindo uma técnica adaptada a cada um dos casos, mas, na essência, não variando muito do modelo do tratamento psicanalítico, isto é, perseguindo sempre o que se esconde na sombra do manifesto. Por isso penso que, por mais  que se divulguem os conhecimentos teóricos sobre essas ações terapêuticas, se o terapeuta não tem uma boa vivência de uma análise individual, pessoal e em pacientes, dificilmente ele engrenará no tratamento de pacientes com afecções psicossomáticas e, muito menos , no tratamento de grupo. (p.124-129)

...........................................

Cyro Martins e Abrão Slavutsky ,
em Para Início de Conversa. (Memórias). Porto Alegre, Movimento, 1990.