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O Petiço Tordilho Negro - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Estampas e Perfis

 

 

Este era cria da petiça tordilha, mãe de uma quase tropilha de tordilhos negros. Era mansa de guri aprender a andar a cavalo. Mas pouco se montava nela. Estava quase sempre prenha ou com cria nova, amamentando. E o curioso é que às vezes a gente nem sabia bem de que reprodutor ela agarrava cria, porque coincidia de ter passado um ano ou mais num campo que nem culhudo tinha. No mínimo, passara por baixo duma cruza e fora emprenhar no campo do vizinho. A petiça tordilha de tola e songamonga não tinha nada. Antes, pelo contrário, manhosa, ajeitadeira.

Os seus filhos não saíram lá essas coisas de mansidão e boa montaria. Mas todos herdaram o pêlo da mãe. E todos machos. O primeiro da série tocou para o meu irmão. Animal de trote duro, capaz de desmanchar um cristão por dentro. Mas de estampa e pêlo luzidiu, uma pintura.

O segundo foi o meu. Mais baixo que o outro e de cômodo macio. Começou a ser amanonsiado com meses. Pucha, só quem viveu isso de perto poderá apreciar, contada, a alegria dum guri de campanha, a sua ufania, vendo-se às voltas com um potrilhinho à roda das casas.

Da história desse petiço, lembro-me de dois episódios tremendamente frustrantes para mim. Ambos ocorreram de chegada em casa, nas férias, em fins de dezembro. Meu pai me esperava sempre com o petiço adelgaçado, no piquete. Duma feita, logo de chegada, depois dos abraços a todos, fui logo perguntando pelo petiço tordilho negro, o predileto de então, por ser o mais novo, por ter sido amanonsiado por mim, por ter andado nele ainda bagual de rédea, por ser mais bonito que o douradilho ... Notei que desconversaram.

E dê-lhe perguntas sobre os estudos, sobre os amigos dos quais eu falava pra eles, pela viagem, pelo pouso em Santa Maria, pelos parentes de Alegrete, umas visitas de obrigação que a gente não pode deixar de fazer especialmente para o tio Maneco, tio-avô do meu pai, de noventa anos ou mais, senão ele desconfiava.

Mas, a todas essas, que era feito do meu petiço? E aí o seu Bilo passou a falar na seca. Estava tudo torrando. As pastagens, uma miséria. As aguadas cortadas, com uns pocinhos chocos, de longe em longe, que mais pesteavam que aliviavam a sede dos animais. As criações estavam morrendo de fome, de sede e de peste. A aftosa e o garrotilho se alastravam com uma fúria devastadora de incêndio naquelas campanhas. Aí eu vi tudo: o meu petiço estava com garrotilho ou já tinha morrido!

Não queriam me deixar ir vê-lo de perto, mas fiz questão. E, como para um filho recém chegado dos estudos se faziam todas as vontades, eu fui a pé mesmo lá no fundo do potreiro me penalizar de pertinho do estado se finando quase do tordilho negro. Tive tensão de lhe passar a mão nas crinas, afagá-lo, com intimidade, daquele jeito de quando ele era novinho e eu o amanonsiava, mas se esquivou. Ariscou-se. Num esforço, troteou. Corri para atacá-lo pela frente, mas, guiado pelo sentido campeiro do momento, em seguida desisti, receoso de que o pobre metesse a mão num buraco ou tropeçasse numa pedra e rodasse, trôpego como estava. Ainda mais que logo ali vinha um lançante. Então fiz cara-volta e me retirei, sem me virar. Com facilidade, evoco, agorinha mesmo o quadro triste da sua silhueta recortada contra um fundo baço de céu de seca em dezembro. As cores do ocaso, em vez de atrair, espantavam, pela nenhuma promessa de chuva.

Claro que nesse ano todo ele não sentiu arreio no lombo. Um ano depois, quando regressei novamente, o petiço tordilho negro estava virado num potro. E eu, recém chegado, afoito, meio maturrango, como a gente fica se passa muitos meses sem andar a cavalo, e com saudade de tudo e de todos, não me agüentei.

- Espera que o Amaro vai dar uma repassada nele.

Qual nada, eu estava apressado, não podia esperar que o Amaro chegasse do campo. Encilhei o petiço. Notei que o bicho estava meio cosquilhoso. Mas também, solto na invernada fazia já um tempão e gordo daquele jeito!

Meu pai, atento e com cuidado, me vigiava lá de baixo do seu cinamomo de estimação, sem esconder o receio dalguma trastada do pingo. Ora, dito e feito, foi montar e o bicho velhaqueou. No segundo corcovo me fui paleta abaixo.

Me levantei das moitas desajeitado e com algumas esfoladuras.

Nunca mais o petiço tordilho negro mereceu a minha inteira confiança, embora continuasse a estimá-lo, porém já de um modo diferente, meio pelo orgulho de ter um petiço atrevido e velhaco.

Teria valido a pena mencionar esta pequena historieta, tão singela e tão banal na campanha, entre as demais estampas deste painel pampeano? Na verdade, se cravo o olhar persistentemente no rumo por onde penetra o meu pensamento, além dos meus entes mais queridos da infância, começo a divisar outros parentes, agregados, peães, posteiros, carreteiros, enfim, uma legião de presenças, de camisa de riscado, de bombachas largas, de saias estampadas, com um cheiro inolvidável a terra molhada e um assombro no semblante dizendo-me que uma parte minha recôndita ficou para sempre vagando por lá.

Quem sabe, então, o petiço tordilho negro, evocado neste momento, não com o sentido de outrora, real, palpável, mas com o sentido do que ficou sobrando do seu perfil genuíno, não sintetizará, simbolicamente, mil e um farrapos de outras recordações?

Para dizer a verdade e terminar, porque se nos descuidamos não terminamos nunca ...Então, para dizer a verdade, essa coisa tão difícil, apeando-me nesta volta do meu caminho, tenho ganas de dizer simplesmente: tempos depois ... Mas sinto que o leitor não vai se conformar com uma reticência e ficará me cobrando um indefinido qualquer na encruzilhada desta nossa despedida. Os homens são por natureza expectantes. Daí a necessidade que o escritor tem de ramificar os fatos, Não somente os que nos atraem ao fundão do passado individual e das gerações, mas também os que nos levam a arranhar as incertezas do futuro. Paro e escuto, num intento de composição da vida interior. Ouço mal-e-mal o tropel dessa minha quadrilha a trote e a galope que passa na frente do Cerro do Marco, levantando poeira na estrada real. Ouço mal porque o meu mundo cresceu muito, espraiou-se.

Além de outras coisas vagas que eu poderia dizer, a título de mensagem errante, ocorre-me esta agachada, mas recomendando cuidado, para não fazer esparramo entre o vizindário sisudo: vez que outra é bom ir ao encontro das nossas visões, as dos fantasmas evanescentes que ficaram para trás e as que ainda nos fascinam abrindo clareiras nos esconderijos do porvir. Mas o ideal mesmo é a gente poder não se sentir jamais em fim de festa e experimentar o gosto de viver no devir do dia-a-dia, infinito recomeçar da criação.

 

Cyro Martins.
In: Rodeio. Porto Alegre, Movimento, 1976. P. 46-50

 

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- Seu Bilo e outros pais na ficção de Cyro Martins - Maria Helena Martins