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A psicanálise do Rio Grande do Sul começou em Buenos Aires | Imprimir |  E-mail

Nós, psicanalistas porto-alegrenses, temos sobradas razões para manifestar a Angel Garma a nossa gratidão. A Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre deve-lhe o impulso de partida, de conseqüências inestimáveis. Como é sabido, Mário Martins foi o fundador da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. E não é pouco ser o fundador de uma sociedade psicanalítica! Naturalmente, não colocou sozinho os alicerces, nem levantou sozinho as paredes da construção. Teve companheiros, como Garma, na Argentina, os teve. Mas ele foi o líder do grupo que o cercava.

As revisões históricas são indispensáveis, porque é através delas que valorizamos as obras dos pioneiros, quase sempre figuras exemplares, que servem de pontos referenciais para as gerações que se sucedem. Mário tomou conhecimento, junto comigo, da possibilidade de fazer a formação em Buenos Aires através do primeiro número da Revista de Psicoanálisis, que nos chegou às mãos, inesperadamente, numa tarde sombria do inverno de 1943. Mário, homem de boa fé, acreditou no que leu. Num artigo de Arnaldo Rascovsky estavam explanadas as condições básicas que o flamante grupo argentino apresentava aos psiquiatras da América Latina desejosos de seguir a carreira psicanalítica mediante uma formação adequada. Até então essa possibilidade só existia em Londres, Berlim, na Berlim anterior à guerra, ou Viena, Paris, Nova York. Mas essas capitais ainda distavam muito e eram excessivamente dispendiosas para uma formação tão demorada como o é a psicanalítica. Além dessas dificuldades, havia a dos idiomas, talvez a mais relevante. Ademais, naqueles anos, a Segunda Guerra Mundial levantava uma barreira intransponível. Ora, Buenos Aires ficava logo ali, bastava atravessar o Rio da Prata. E o espanhol, para nós, gaúchos, é a nossa segunda língua. Por isso, Mário Martins, sopesando todas essas circunstâncias e insatisfeito com a psiquiatria que praticava, não vacilou em escrever em seguida a Garma e já no ano seguinte embarcava para Buenos Aires, não obstante as dificuldades burocráticas inerentes à condição do Brasil como país beligerante.

Posteriormente, assim como Enrique Pichón-Rivière e Arnaldo Rascovsky, para nomear apenas os da velha guarda, Garma viria repetidas vezes a Porto Alegre, a convite dos poucos analistas com que já contava a nossa cidade e da Sociedade de Psiquiatria. Conhecendo-o pessoalmente, ao mesmo tempo em que nos enriquecemos com suas lições, ficamos seus amigos. Assim, pois, o autor da obra monumental - e o é porque abrange a totalidade do saber psicanalítico, intitulada A Psicanálise - teoria, clínica e técnica - não somente é conhecido pelos psicanalistas, psiquiatras e psicólogos gaúchos através de seus trabalhos, mas também porque o tivemos aqui, proferindo conferências e conversando com todos com a afabilidade e sabedoria que lhe são peculiares.

Embora nascido na Espanha, Angel Garma reside e trabalha em Buenos Aires há mais de meio século. Durante sua permanência em Berlim, publicou um artigo sobre "Como se estuda psicanálise", e outro a respeito da "Transferência em psicanálise", e sobretudo o trabalho "A realidade e a id na esquizofrenia", cuja originalidade lhe valeu o título de membro associado da Associação Psicanalítica Alemã. Esse fato é importante para a biografia de Garma e a história da psicanálise na América Latina, tendo ocorrido em outubro de 1931. Garma contava, então, 27 anos. O mais de sua extensa obra foi elaborado, escrito e publicado na capital argentina.

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Com Angel Garma, o vocabulário psicanalítico passa a circular na ensaística latino-americana com mais precisão, fundamentalmente porque, aos poucos, o sentido exato da terminologia da nova ciência principiou a servir de bússola para os jovens psiquiatras atraídos pela nova ciência. Até então tínhamos informações vagas, que mais confundiam do que orientavam e que freqüentemente levavam ao pernosticismo, com os inevitáveis prejuízos do saber. Alguns, por falta de informações adequadas e tomados do desejo de inovar, se improvisavam analistas, instalavam um divã no consultório e ordenavam ao paciente que fosse falando, falando, que dissesse o que lhe viesse à cabeça, sem se aperceberem que estavam praticando um ingênuo bovarismo de província. Esse era o charlatanismo dos honestos, porque havia também os graduados da charlatanice, como os há até hoje e decerto continuará havendo.

Os psiquiatras da minha geração, empenhados no exercício honesto da especialidade, contavam com a sistematização de Kraepelin para o diagnóstico dos grandes quadros bem definidos da patologia mental. Mas, e depois? Por isso, quando veio a convulsoterapia e a insulinoterapia, nos atiramos a elas, como náufragos em busca de uma tábua de salvação, com o louvável propósito de curar. E com isso só aumentávamos o tormento dos nossos insanos. No desespero, fazíamos às vezes combinações com o coma insulínico. E os doentes sobreviviam! Essa barbaridade não acontecia na Idade Média. Foi há sessenta anos. Sei que a história da psiquiatria tem outros horrores. Mas aqueles antigos pelo menos não se davam ares de terapêutica científica, fundiam-se ao natural com a feitiçaria.

Por isso, aquela mensagem do número 1 da Revista de Psicoanálisis teve o sortilégio de nos alertar para um novo rumo de entendimento da psicopatologia. E assim, de cada país do Continente, de Montevidéu ao México, com exceção de alguns retardatários, foram se dirigindo a Buenos Aires uns poucos corajosos jovens psiquiatras, atraídos pelas luzes científicas que raiavam lá para as bandas do sul. Chegávamos lá com a emoção e o estonteamento de quem aporta à terra prometida.

Transcorridos alguns anos, começou o retorno. E aconteceram os nossos centros de estudo e as nossas sociedades. Aproveitando o interesse da população pela psicanálise, temos sabido estender os conhecimentos do pensamento freudiano a outros ramos da medicina, em especial à psiquiatria, à pediatria e à medicina em geral, na medida em que fomos encarando com coragem e profundidade o psicossomatismo e relação médico-paciente. E vieram as aplicações da psicanálise à maternidade, ao ensino primário, à grupoterapia, etc.

Todas essas possibilidades e outras começaram a abrir-se para a América Latina naquele histórico 24 de junho de 1938, quando atracou no porto de Buenos Aires o navio que trazia Angel Garma. Como vemos, nem sempre os maus ventos geram somente desgraças. Se não fosse o nazifascismo que abalou o mundo, como um terremoto universal, Garma certamente teria ficado na Espanha. É evidente que não permaneceríamos órfãos da ciência freudiana. A nossa inquietude nos levaria a encontrar meios de trazê-la até aqui. Mas Buenos Aires estava madura para receber o pioneiro. Lá havia um Arnaldo Rascovsky e um Enrique Pichón-Rivière já organizando grupos de estudos psicanalíticos.

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Cyro Martins.
"Um rei condecora um sábio". In: Caminhos - ensaios psicanalíticos.
Porto Alegre, Movimento, 1993, p.111-120.


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- Depois de uma tarde sombria