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A desconfiança entre filosofia e política segundo Hannah Arendt E-mail

Suzana Albornoz

 

Começaremos nosso ensaio por uma consideração sobre a resistência que ainda hoje parece existir para reconhecer na política algo de honroso, digno e essencial para a humanidade, encarando a hipótese de essa resistência ter a ver com a própria posição da filosofia e dos filósofos ante as coisas práticas da cidadania.


        Um conhecido helenista, ao comentar um trabalho de seus igualmente respeitáveis colegas historiadores da Grécia antiga[1], afirmava haver uma ambigüidade fundamental no conceito que os gregos tiveram de politéia, e que esta ambiguidade marcaria todo o seu pensamento político, pelo fato de não separarem Estado e sociedade, plano político e plano social. A principal oposição se situava entre o privado e o público, e o que não pertencesse ao domínio privado estaria ligado à esfera política. A sociedade aparecia composta de partes diferenciadas por suas funções, porém, ao mesmo tempo, para formar uma pólis, era preciso afirmar-se como comunidade una e homogênea.[2] Segundo a perspectiva em que fosse situada, essa politéia se apresentaria ora como múltipla e heterogênea, ora como una e homogênea. Pergunto-me se ainda hoje essa ambigüidade possa ter dado origem, ainda que remotamente, à desconfiança que muitos parecem manter em relação à atividade política, própria do debate em torno das decisões que se referem ao âmbito comum e que atingem a todos.


Na opinião privada como na discussão que configura a opinião pública, nas veias de nossas convicções espontâneas, urdem preconceitos dos quais nem sempre temos consciência. Alguns deles podem ser atribuídos a processos longos, menos ligados às situações presentes, mais antigos que os problemas sobre os quais são projetados. São preconceitos ligados a nossas vivências cotidianas e aos nossos interesses mais concretos, mas podem ter raiz em crenças das tradições culturais e religiosas ou, mesmo, nas da filosofia. Em busca dessa última aparência do preconceito, uma versão muito curiosa da relação entre filosofia e política, parte dessa lente de estranhamento que pode ainda hoje tingir nosso modo de perceber os acontecimentos públicos, nos é apontada pela original interpretação de Hannah Arendt (1906-1975). [3]


Essa interpretação aparece de diversas maneiras em vários textos da autora, explicitando-se muito claramente nos ensaios publicados postumamente[4]. Segundo tal interpretação, nossos preconceitos ante a política podem encontrar sua origem na herança mais perene do pensamento ocidental, já na forma de ver a relação entre o filósofo e a polis, entre filosofia e política, contida na produção de ideias da Escola de Atenas. Por uma maneira muito sui generis de leitura do texto clássico da alegoria da caverna, de Platão – aliás, sui generis como a maioria das intuições da autora que não se encaixava bem em nenhuma categoria de escola ou doutrina –, naquele famoso relato comumente chamado de mito que se encontra na Politéia, traduzida para nossos idiomas modernos como República, é possível perceber o como e o quanto a filosofia hesita diante da política e da ação, ao mesmo tempo em que se distancia do terreno da doxa, ou seja, da opinião.


Longe de mim a pretensão de sequer afetar conhecimento de especialista sobre as teses de Platão naquele livro que é um marco inaugural na construção da cultura filosófica. Com certeza - e hoje isto seria fácil de concretizar em poucos minutos de consulta a um sítio de busca na Internet - devem ser milhares os textos sérios sobre Platão que se ocupam da República, e outros tantos, em especial, da alegoria da Caverna. Cada uma das interpretações lhe acrescentará uma luz especial, uma nova nuance, e isso é o que faz a riqueza dos textos clássicos, no rio de reflexão que corre sobre eles que não cessam de serem de novo reinterpretados. Especialmente, nesse caso, é bem sabido o quanto são expostos a compreensões diversas os textos de Platão, compostos em forma dramática de diálogos onde diferentes opiniões se contradizem, e onde se confrontam os mais sábios com outros menos experientes que encenam o papel de discípulos. E pelo menos nos últimos dois séculos, desde Schleiermacher[5], os estudiosos têm consciência dessas nuances da interpretação em relação ao texto do autor e, também, que o próprio Platão recomenda manter-se a consciência da possibilidade das diversas interpretações.[6] Isso além de as questões em jogo não se esgotarem nos textos conhecidos, simplesmente porque, nessa concepção mesma, elas não se encontram inteiras nos escritos, parecendo estabelecida a convicção platônica da superioridade da linguagem oral para a filosofia.[7]


Este nosso ensaio não nasce tampouco da pretensão de expressar conhecimento de especialista sobre a obra e o pensamento de Hannah Arendt, motivação e fascinação por trás destas páginas iniciais. Apenas gostaria de destacar de início essa interpretação, dessa grande autora que viveu tão intensamente as vicissitudes do século  XX e esteve inserida no centro de seus principais conflitos ideológicos e culturais, porque me parece lúcida e relevante para entender nossos preconceitos e nossa atitude ante a política no mundo atual.


Mas para compreender melhor a interpretação dada por Arendt que desejamos destacar, tenhamos a paciência de reler mais uma vez o famoso trecho da famosa alegoria, iniciado no 514a da República [8], que aqui passo a transcrever quase integralmente, fazendo economia das marcas do gênero literário e das respostas atribuídas a Gláucon na ficção do diálogo com Sócrates, e, nas entrelinhas, para criar pausas reflexivas, farei apenas alguns comentários, entre uma e outra parte da citação. Espero que essa transcrição tenha o sentido de, para o leitor jovem sem uma longa formação filosófica, dar a conhecimento a famosa alegoria no próprio tom do relato original e na voz do autor; por outro lado, para os leitores mais experientes que já a conhecem, a reapresentação obriga a relembrá-la nas próprias frases e perguntas de Platão. Acompanhemos atentamente, pois, aquele “mito” [9]:

“- (...) Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima do longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro(...).


Não é difícil imaginar um espaço como o indicado, num local escuro e de difícil acesso, como um porão de casa antiga ou como numa dessas soluções improvisadas que se formam em nossas cidades onde se constroem prédios nas encostas, sendo corriqueiro ver o chão rente à porta dar origem a uma rampa interna ou a uma verdadeira ladeira. Além disso, o autor nos pede para imaginar que se tenha erguido um pequeno muro, bem em frente da abertura que garante a iluminação da peça onde se encontram acorrentados os prisioneiros, o que, se é fantasioso, também não parece impossível nem extraordinário e pode-se bem conceber na imaginação.


- Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados. (...)


Imaginemos que nos encontramos nas proximidades de um mercado ou uma feira de artesanato e não estamos bem situados para ver exatamente o que se passa na cena lá fora, sendo que, de dentro do recinto em que nos refugiamos, ou do café onde viemos nos alimentar, vemos pela metade as figuras, e muitos dos vultos que vislumbramos são já perfis das obras dos artesãos, que eles carregam sobre seus ombros. É algo como esse engano de percepção que Sócrates / Platão atribui aos prisioneiros atados por correntes à caverna, de costas para a luz.


 - (...) Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?(...)

Apenas decorrência da situação descrita, a pergunta nos estimula ainda mais imaginar o que vivenciam os prisioneiros.


 - Então, se fossem capazes de conversar, uns com os outros, não te parece que julgariam estar a nomear objetos reais, quando designavam o que viam?(...) Acentua-se a perda do senso de realidade e a confusão do existente com o que é pura aparência. Algo muito atual, similar ao que se pode imaginar aconteça neste nosso tempo de produção intensa nas artes visuais, televisuais, ou mesmo, virtuais, e entregues ao julgamento das crianças com escassez de experiência do mundo real concreto.

 - E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando alguns dos transeuntes falassem, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?(...) De qualquer modo, (...) pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objetos.


 O apelo ao sentido da audição parece trabalhar na mesma direção, de afirmar o engano dos que estão presos e fixos, com a limitação da visão a um mundo interior destorcido, causa de erro.

 - (...) o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Que (...) diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não (...) suporia que os objetos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?(...)


O filósofo nos incita a imaginar a situação em que os prisioneiros fossem libertados. Incita-nos a supor a hesitação, a resistência em ver o real tal como ele é, depois de o haver percebido de modo desviado.

- E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir a caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?(...)


O esforço para abrir os olhos para a realidade e deixar-se iluminar pela verdadeira luz, isso tudo parece sensato supor que seria muito difícil, dada a situação descrita no começo do relato.

- Precisava de se habituar, (...) se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e, por último, para os próprios objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia. (...)


Bom, o filósofo não nos tira a esperança de que o prisioneiro libertado consiga corrigir sua visão. É uma questão de tempo, de hábito e de graduação; primeiro, perceberá os reflexos na água, depois, os próprios objetos à luz exterior.

 - Finalmente, (...) seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.(...)


Com o progresso do hábito à luz exterior, o olho do homem que se libertou começa a poder enxergar; e começa a entender de onde vem a luz, de onde vem sua percepção dos objetos, de onde os objetos.

– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível,  e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.(...) E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros? (...)


Ali começa o drama de que o filósofo é protagonista, quando o homem que abriu seus olhos para o mundo verdadeiro e a luz verdadeira começa a lamentar a sorte dos outros que estão na sombra, dos que não vêem o mundo da luz como ele, dos que ainda não foram iniciados.

- E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prêmios para o que distinguisse com mais agudeza os objetos que passavam, e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo “servir junto de um homem pobre, como servo da gleba” [10], e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo? (...)


Logo, e de modo bem coerente e indiscutível, para o que se iniciou na luz, as honras que se podem receber no mundo da sombra da caverna, onde tudo se baseia no engano das falsas imagens, aparecem também como falsas e enganosas, portanto, sem valor. Mas o drama não termina aí, pois também será dramático e enganoso o retorno, e enganosa a busca do recomeço.


 –(...). Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol? (...) – E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam? (...)


Está estabelecido assim o desencontro entre o que saiu lá fora e retorna com uma outra visão dos objetos e os que nunca saíram do ambiente sombrio e só possuem as impressões das imagens projetadas no fundo da caverna.

(...) este quadro (...) deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a idéia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública. (...)[11]

Deixemos a finalização sublime da alegoria aberta à interpretação do leitor. A leitura da alegoria da caverna é sempre provocadora da reflexão de quem tenta decifrá-la.


Hannah Arendt julga que essa alegoria não somente procura mostrar a visão platônica da relação do filósofo com a verdade, mas expressa também o olhar do filósofo sobre o mundo do comum dos mortais, ou seja, o mundo da pluralidade que caracteriza a condição humana – o plano do convívio, da cidade, da política. Esse me parece ser um caminho interessante para compreender melhor por que, ainda hoje, pessoas cultas podem facilmente desprezar a política, como que desdenhar esse aspecto substancial da condição humana, ou o caráter antropológico da vida em comum, quando certo menosprezo já transparece do olhar da filosofia sobre a política.


 A interpretação é peculiar e, parece-me, pouco divulgada, talvez porque fuja à análise mais estabelecida, do conteúdo mais acentuado na leitura do texto da alegoria, que se refere à questão do conhecimento e do encontro da verdade. Em toda a sua obra, mas de modo muito especial em seus ensaios póstumos [12], Arendt apresenta, na linha de herança do pensamento grego, uma compreensão própria do ser humano e do ser próprio dos humanos, integrada a uma visão positiva da política. Isso dá uma conotação muito particular à sua concepção das relações que têm existido entre a filosofia, ou os filósofos, e a política, visão que, tal como afirma, encontra expressão marcante na famosa alegoria da caverna.


No seu ensaio que trata das relações entre filosofia e política [13], a autora desenvolve, de forma erudita e convincente, a tese de que a história da filosofia ocidental deve a Platão e seus seguidores uma redução, um olhar preconceituoso sobre o caráter político do ser humano. O filósofo, que no referido mito é identificado com o homem que consegue livrar-se dos grilhões que o prendem dentro da caverna e o obrigam a ver sombras em lugar de seres reais, é aquele que depois vai poder contemplar, à luz do sol, o mundo real. É também ele que, em seu retorno, enquanto, ao mesmo tempo, se sentirá superior, por ter visto a verdadeira luz do sol e os seres reais, encontrará dificuldades para ser compreendido por seus companheiros de morada.

Em geral, considera-se que Sócrates, na versão de Platão, lança mão daquele relato alegórico para fazer pensar sobre a missão do filósofo e da filosofia, da sabedoria ou do saber em geral, levando a refletir sobre questões fundamentais como as relações entre as aparências e os fatos, o engano e a verdade. Embora reconhecendo a amplitude e complexidade das questões ali representadas, e a genialidade do recurso literário àquele relato, Arendt traz uma outra luz à sua compreensão, que se faz de um ponto de vista exterior à própria filosofia, de um ponto que talvez se pudesse dizer hoje, depois de alguns séculos de ciências humanas modernas, como do plano da história, ou da sociologia do conhecimento e da ação.


Hannah Arendt dá a entender que a visão platônico-socrática, imortalizada em toda a história da filosofia desde Platão, porta o germe de um preconceito, ligado a um sentimento de superioridade ou de distanciamento, do homem esclarecido, do “sábio”, ante o restante dos seus companheiros de destino; uma afirmação da pretensão à suficiência do filósofo ou do intelectual ante seus concidadãos. O mito da caverna teria agido como um convite ao esquecimento do caráter dos homens como seres essencialmente políticos; ao esquecimento de que aquilo que nos define é a pluralidade, o fato de nascermos e vivermos inseridos numa comunidade. Essa interpretação, da alegoria da caverna e da relação da filosofia com a política desde sua origem, encontra-se do mesmo modo no ensaio de Arendt sobre Sócrates, publicado em A promessa da política. [14]


A filósofa política, famosa por suas análises dos totalitarismos no século XX, insiste nessa interpretação peculiar, tanto que me parece oportuno reapresentá-la aqui devagar, de modo a que mostre todo o seu sentido. Sigamos de perto o ensaio póstumo intitulado “Filosofia e política”[15]. Já na abertura do escrito afirma que o abismo existente entre filosofia e política foi aberto historicamente com o julgamento e a condenação de Sócrates. Este constituiria o momento decisivo da história do pensamento político, assim como o julgamento e a condenação de Jesus constitui o momento decisivo na história da religião.


Nossa tradição de pensamento político teria início quando a morte de Sócrates fez Platão desencantar-se com a vida da polis e, ao mesmo tempo, duvidar de certos princípios fundamentais dos ensinamentos socráticos. O fato de que Sócrates não tivesse sido capaz de persuadir os juízes de sua inocência e de seu valor, tão óbvios para os melhores e mais jovens cidadãos de Atenas, fez com que Platão duvidasse da própria validade da persuasão, essencial no método socrático de busca da verdade.

Arendt alerta ser difícil entender exatamente essa dúvida platônica, porque “persuasão” é uma tradução insuficiente para a palavra grega que lhe dá origem.[16] Persuadir, nesse sentido, era a forma especificamente política de falar. Como se orgulhavam de conduzir seus assuntos políticos pela fala, pelo discurso, quer dizer, sem recurso à violência - nisso se distinguindo dos bárbaros, os atenienses acreditavam que a mais alta arte verdadeiramente política era a retórica, a arte da persuasão. O discurso de Sócrates na Apologia é um dos grandes exemplos dessa arte contra a qual Platão se voltaria, ante a evidência do seu fracasso.


Intimamente ligada à dúvida de Platão quanto à validade da persuasão está a sua enérgica condenação da doxa - da opinião, dúvida que atravessou suas obras políticas deixando uma marca inegável e também se tornaria uma das pedras angulares do seu conceito de verdade. A verdade platônica seria entendida como o oposto da opinião. Essa relação entre verdade e opinião nos acompanha até hoje, pela imensa influência do platonismo exercida ao longo dos séculos, embutido no aristotelismo e no tomismo. sempre de novo retomados, em novas formas, até o nosso tempo.


Fracassando em seu intento de convencer, de persuadir Atenas, Sócrates mostrara que a cidade não é um lugar seguro para o filósofo, e que sua vida não está garantida em virtude da verdade que possui ou pensa possuir. Através do julgamento e da condenação do mestre, mostrou-se um grande desencontro entre os filósofos e a polis. Ou melhor, já havia talvez antes um mal-entendido entre a cidade e a filosofia, um preconceito da polis em relação aos filósofos, sobre o qual se deu a acusação, o julgamento e a condenação de Sócrates.[17] A polis não compreendeu que ele não se dizia um sophos, um sábio. Dos preconceitos que a polis tinha em relação aos sophoi [18] - como que em retorno e em busca da correção - estaria ancorada a estranha ideia de Platão, que aparece no momento utópico da República, de que um filósofo deveria ser o governante da cidade ideal.


A autora reapresenta o mal-entendido entre a filosofia e a cidade, que lhe parece expresso na alegoria da caverna[19]. Platão descreve a relação entre a filosofia e a política em termos da atitude do filósofo para com a polis, e essa descrição ocorre muito especialmente naquela parábola, no centro de sua filosofia política e da República. Naquela passagem literária, o primeiro discípulo de Sócrates pretende dar uma espécie de biografia condensada do filósofo em geral. Pois a alegoria se desdobra em três estágios, designando cada um deles um momento decisivo, uma reviravolta, e formando, os três juntos, aquela reviravolta completa do ser humano que, para Platão, é, justamente, a formação do filósofo. [20]

A primeira virada acontece ainda dentro da caverna: o futuro filósofo liberta-se dos grilhões que acorrentam as pernas e os pescoços dos habitantes da caverna, de modo que só podem ver à sua frente, os olhos fixos em uma superfície onde aparecem as sombras e as imagens das coisas. Quando se vira pela primeira vez, o sujeito que se libertou vê atrás de si um fogo artificial que ilumina as coisas da caverna como elas realmente são. Arendt julga que essa primeira periagôgé é a do cientista, este que, insatisfeito com o que as pessoas dizem sobre as coisas, “vira-se” para descobrir como as coisas são em si mesmas, sem levar em conta as opiniões sustentadas pela multidão.


Para Platão, as imagens na superfície eram as distorções da doxa, e ele pôde usar metáforas tiradas exclusivamente do campo da visão e da percepção visual porque a palavra doxa, ao contrário da nossa palavra das línguas modernas, opinião, tem a forte conotação de “o que é visível”. [21] As imagens na superfície que os habitantes da caverna fitam são suas doxai, as coisas que aparecem para eles e como elas aparecem. Se desejarem ver as coisas como realmente são, precisam virar-se, mudar de posição, pois toda doxa depende do ponto de vista e corresponde à posição de cada um no mundo.


Um ponto mais difícil na trajetória do filósofo vai ocorrer quando esse aventureiro solitário não se satisfaz com o fogo na caverna, e com as coisas que agora aparecem como são, mas quer descobrir de onde vem esse fogo e quais são as causas das coisas. Mais uma vez ele se vira e, então, descobre uma saída da caverna, uma escada que o leva ao céu aberto, uma paisagem sem coisas ou homens. Neste momento aparecem as ideias, as essências eternas das coisas perecíveis e dos homens mortais, iluminadas pelo sol – a ideia das ideias -, que possibilita ao observador ver e às idéias continuarem a brilhar. Na apresentação de Platão, esse é o clímax na vida do filósofo, e é aí, segundo Arendt, que tem início a sua tragédia: Sendo ainda um homem mortal, o filósofo não pertence a esse lugar, e nele não pode permanecer; precisa retornar à caverna, sua morada terrena, ainda que na caverna não possa mais sentir-se em casa.


Cada uma dessas reviravoltas se acompanha de uma perda de sentido e de orientação. Os olhos, acostumados às aparências sombreadas no anteparo, ficam cegos pelo fogo no fundo da caverna. Os olhos, então habituados à luz difusa do fogo artificial, ficam cegos diante da luz do sol. Mas o pior é a perda de orientação que acomete aqueles cujos olhos um dia se acostumaram à luz brilhante, sob o céu das idéias, e que agora precisam guiar-se na escuridão da caverna. [22]

Nessa metáfora se insinua que depois de sua iniciação no mundo da luz do sol os filósofos não conseguem mais ver na escuridão da caverna; perderam o sentido de orientação, perderam o que se poderia chamar de senso comum. Quando retornam e tentam contar aos habitantes da caverna o que viram do lado de fora, o que dizem não faz sentido: o que quer que digam é, para os habitantes da caverna, como se o mundo estivesse “virado de cabeça para baixo”. [23] O filósofo que retorna está em perigo, porque perdeu o senso comum necessário para orientar-se em um mundo comum a todos, e, além disso, porque o que acolhe em seu pensamento contradiz o senso comum do mundo.


O fato de Platão descrever os habitantes da caverna como estáticos, acorrentados, diante de uma superfície, sem possibilidade alguma de fazer qualquer coisa ou de comunicar-se entre si, está, para nossa autora, entre os aspectos mais intrigantes da alegoria da caverna. Ela mostra que as duas palavras politicamente mais significativas para designar a atividade humana (lexis e práxis), estão ausentes em toda essa história. A única ocupação dos habitantes da caverna é olhar para a superfície; obviamente, eles gostam de ver pelo prazer de ver, independentemente de todas as necessidades práticas. Em outras palavras, os habitantes da caverna são descritos como homens comuns mas também como possuidores daquela qualidade compartilhada com os filósofos: Platão representa-os como filósofos potenciais, ocupados, na escuridão e ignorância, com a única coisa com que o filósofo se preocupa: a claridade, a clareza, o saber integral. A alegoria da caverna destina-se, assim, a mostrar não tanto o modo como a filosofia vê, do ponto de vista da política, mas como a política, o domínio dos assuntos humanos, é visto do ponto de vista da filosofia. [24]


Platão não estaria contando o que distingue o filósofo dos outros que também gostam de ver pelo prazer de ver, ou o que faz o filósofo dar início à sua aventura solitária e quebrar os grilhões que o acorrentam à superfície da ilusão [25]; não diz por que o filósofo se move para sair da caverna onde estão presos seus companheiros de destino. Por outro lado, no final da história, menciona os perigos que o aguardam em seu retorno, concluindo, por isso, que o filósofo – embora não estando interessado nos assuntos humanos, deve assumir o governo da cidade, quanto mais não seja, por medo de ser governado pelo ignorante. Platão não explica porque não consegue persuadir os cidadãos, que aparentemente estariam prontos a seguir seu exemplo e a escolher o caminho de saída da caverna.


Para entender as lacunas da apresentação da alegoria, Arendt remete a outros textos platônicos, sobretudo, a duas afirmações principais que ali estariam pressupostas e constituem esclarecimentos. O primeiro trecho é do Teeteto – diálogo sobre a diferença entre epistémé (conhecimento, ciência) e doxa (opinião), onde Platão define que o thaumadzein (espanto) é a origem da filosofia. A segunda afirmação ocorre na Sétima carta, quando Platão fala sobre as coisas que para ele são as mais sérias, onde se lê que é impossível dizer o mais essencial, ou seja, é impossível falar sobre isso, sobre tais coisas essenciais, como se fala sobre as outras coisas que aprendemos; sendo assim, pois, o tópico eterno, ou o fim da filosofia [26], as “coisas sérias” que importam ao filósofo, tudo isso é indizível. Segundo Arendt, nessas duas afirmações está expressa a concepção platônica do início e do fim da vida do filósofo, aquilo que fora omitido na estória da caverna.


De um lado, está a afirmação de que o espanto é o início da filosofia, afirmação que se tornou um axioma, tanto em Platão como em Aristóteles e para todos os que se lhe seguiram, nesses mais de dois milênios de história do pensamento ocidental, e que foi acentuada por toda introdução geral à filosofia que nos chega até o dia de hoje, sendo a afirmação às vezes traduzida como a admiração é o começo do filosofar. De outro lado, e ao fim do caminho de iniciação, o saber atingido pelo filósofo é algo que não se consegue dizer. Thaumadzein, o espanto, é um pathos, algo que se sofre, e, como tal, é muito diverso de doxadzein, a formação de uma opinião sobre alguma coisa. Arendt atribui essa crença no espanto como origem da filosofia à experiência muito particular do pequeno grupo da Escola de Atenas, dos discípulos de Sócrates, que devem ter assistido muitas vezes aos estados traumáticos em que o mestre parecia arrebatado por um êxtase, espécie de experiência mística da verdade, em que ele de súbito caía na imobilidade, apenas olhando fixamente, sem nada ver nem ouvir. E o fim da filosofia, de modo coerente com o início do filosofar pelo espanto, é compreendido como chegar à proximidade daquelas coisas últimas essenciais indizíveis que acarretam a consciência de nada saber. A verdade última está além das palavras. “Agora sei o que significa nada saber, agora sei que nada sei”.


E é da experiência real do nada-saber, onde se revela um dos aspectos básicos da condição humana na Terra, que surgem as perguntas últimas. Ao fazer as perguntas últimas, irrespondíveis, o homem se estabelece como um ser que faz perguntas. Esta é a razão pela qual a ciência, que faz perguntas respondíveis, deve sua origem à filosofia. Se o homem viesse um dia a perder a faculdade de fazer perguntas últimas, perderia também sua faculdade de fazer perguntas respondíveis. Não seria mais um ser que faz perguntas, o que significaria o fim da filosofia, mas também o fim da ciência. Quanto à filosofia, se é verdade que ela começa com thaumadzein e termina com mudez, então ela termina exatamente onde começou. [27] 


O choque filosófico de que fala Platão permeia todas as grandes filosofias e separa o filósofo que o experimenta daqueles com quem vive. A diferença entre o homem especial que experimenta o espanto, e a multidão, não é que esta seja incapaz do espanto (thaumadzein), mas que se recuse a experimentá-lo, e essa recusa se expressa pela opinião (doxadzein). Daí a oposição estabelecida – talvez devêssemos dizer, o mal-entendido, ou melhor, a desconfiança - entre o filósofo e o restante dos mortais. Apresenta-se como oposição entre a admiração, que é o começo da filosofia, e a opinião, assumindo-se a doxa como o contrário da verdade, porque doxadzein é o oposto de thaumadzein.[28] 


Perito em espantar-se, o filósofo, cuja experiência última é a da mudez diante da verdade que não se pode expressar em palavras, entra num duplo conflito com a pólis. Vai colocar-se à margem do domínio político, no qual a mais alta faculdade do homem é o falar, sendo o discurso o que faz do homem um ser político. Como o filósofo assume o espanto e os outros comuns mortais o recusam, contentando-se com opiniões, que o filósofo não consegue tolerar; e como nessa concepção socrática, ou platônica[29], o filósofo é por definição aquele que não sabe, portanto, então, o filósofo também será o único sem opinião distinta e claramente definida para competir com as outras opiniões, sobre cuja verdade ou inverdade o senso comum quer decidir.


Quando tenta falar no mundo do senso comum, o filósofo tenta falar em termos de não-senso, ou seja, tende a virar o senso comum de cabeça para baixo - diz Arendt, aludindo a Hegel.[30] O filósofo como que se estabelece em sua singularidade, acometido pelo pathos de thaumadzein – a paixão do espanto -, destruindo dentro de si a pluralidade da condição humana, [31] ou a consciência da pluralidade.


Assim, desde o começo do pensamento político ocidental, a política não pôde ajustar-se aos padrões filosóficos. Identificou-se política e governo, e ambos foram vistos como um reflexo da perversidade da natureza humana, assim como o registro dos atos e sofrimentos dos homens foi tomado como reflexo do caráter pecaminoso da humanidade. [32] Filosofia e política foram presas na armadilha desse mal-entendido milenar. Enquanto a cidade, o mundo da política, nunca realizou bem sua compreensão da filosofia e dos filósofos, por sua vez, a tradição filosófica manteve o seu problema, o seu desencontro, se não desentendimento, com a pluralidade como dado essencial da condição humana.


Tal interpretação das teses de Platão que apontam a separação e o conflito entre a filosofia e a política, entre o filósofo e a pólis - que Arendt interpreta como oriundas da experiência histórica traumática do julgamento e da condenação de Sócrates -, possui um outro lado, um lado avesso brilhante, de uma concepção positiva da política.[33]


A pluralidade é o traço essencial da condição humana. Essa ideia da pluralidade humana é uma das mais bem fundadas no pensamento político de Hannah Arendt.[34]  São inúmeros os textos onde nele se afirma e tece a teia dessa concepção.[35]  Por outro lado, outro traço da condição humana, o da natalidade, corrobora para criar uma visão positiva da política e da história política. Em nossa condição de humanos ressalta o fato de que sempre novos recém-chegados – recém-nascidos - venham a inserir-se na comunidade e possam renová-la, constituindo oportunidade de sempre ocorrer um novo começo e a possibilidade de inovação na história humana. [36]  E também quando Arendt distingue os conceitos de autoridade, força, violência e poder, desenha a sua concepção positiva de política. O poder ali é dito como, em síntese, a capacidade de atingir metas em comum. É o oposto da violência, esta que emerge, justamente, quando o poder se enfraquece. O poder é aquela capacidade do grupo de abrir um novo começo, de “fazer acontecer”. [37] 


Em A condição humana, o discurso é apresentado como o veículo próprio da ação, da participação na pólis, o meio principal da política. Assim como o labor é a atividade do corpo do homem no esforço pela sobrevivência, dele e da espécie; assim como o trabalho é a obra da mão do indivíduo que cria objetos, de utilidade ou de beleza, que permanecem além da vida do artista; assim, a ação que não deixa objetos em testemunho nem é útil para a sobrevivência vital é, no entanto, aquele âmbito da vita activa em que os homens aparecem como são, com a sua voz, a sua identidade, sua vontade, sua decisão, diante da comunidade, nas decisões em comum. É pelo discurso, órgão da ação e da política, que se veicula a opinião, a doxa, reconceituada e reavaliada por Arendt.


Pela atividade da voz humana no âmbito do discurso, podem-se fazer ouvir as opiniões confrontadas no diálogo e, eventualmente, transformarem-se pela persuasão. Nesse plano do discurso e da opinião realiza-se a política. É também na expressão oral do pensamento que a mais tradicional filosofia encontra sua realização, contudo, pretendendo alçar-se a um degrau superior, ao plano do lógos, onde não é mais a opinião, mas a verdade que se deseja demonstrar. Entre logos e doxa pareceria abrir-se um fosso incontornável, mas a filósofa da política e da antropologia da pluralidade nos faz pensar que não seja assim. A verdade está imiscuída na opinião. Na opinião há uma dimensão de verdade. A verdade da opinião participa da dignidade da política, da realidade constituída pelo movimento das opiniões.

 

 

Referências

ARENDT, H.A.: A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

__________ Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000.

 __________ O que é política? Org. Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. __________ A promessa da política. Org. Jerome Kohn. Rio de Janeiro: Difel, 2010. ___________Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973.

___________Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979.

__________ Sobre a violência.  Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

 __________ A condição humana. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense/USP, 1981. __________ Revista Les Cahiers du Grif. Paris: Tierce, primavera 1986.

PLATÃO: República. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 8ª ed., Porto, 1996. SZLEZÁK, T.A. Ler Platão. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

VERNANT, J.-P.:Mito e pensamento entre os gregos, 1990, 285 e ss.



[1] Trata-se de Jean-Pierre Vernant, no texto “Espaço e organização política na Grécia antiga”, in Mito e pensamento entre os gregos, 1990, 285 e ss, onde comenta a publicação de Pierre Lévêque e Pierre Vidal-Nacquet, Clisthène l’Athénien, de 1964.

[2] Vernant, 1990, 303.

[3] Hannah Arendt (1906-1975), filósofa e cientista política nascida judia e alemã que se tornou norte-americana, publicou os memoráveis estudos As origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958), e o célebre ensaio Sobre a violência (1969), entre outros, e suscitou grande polêmica com seu relatório Eichmann em Jerusalém _ a banalidade do mal (1963), tendo também deixado inéditas outras obras importantes, como A vida do espírito (1975).

[4] Essa interpretação de Hannah Arendt pode ser relacionada com os textos dedicados à ação, em sua grande obra publicada em 1958, A condição humana; também com o último capítulo, acrescentado a partir da segunda edição, de Origens do totalitarismo, sobre a relação entre ideologia e terror; bem como com os ensaios memoráveis sobre a autoridade e sobre a liberdade, em Entre o passado e o futuro; e também são próximas das distinções entre poder, força, violência e poder, no famoso texto Sobre a violência, de que já tive ocasião de tratar, no meu livro Violência ou não violência (2000). Essa interpretação aparece, no entanto, de modo mais claro, em textos esparsos publicados postumamente, originados de conferências, artigos em revistas ou, simplesmente, apontamentos para seus projetos de livros deixados inacabados, como entre os fragmentos de O que é política?, este, livro originalmente publicado em alemão, que consiste numa seleção organizada e comentada por Ursula Ludz (1993). Encontra-se do mesmo modo expressa em Sócrates, primeiro texto da coletânea A promessa da política, publicada em inglês sob a responsabilidade de Jerome Kohn (2005). Nossa abordagem aqui se prende mais diretamente ao texto publicado em A dignidade da política, seleção de ensaios e conferências organizado por Antonio Abranches (1993); especificamente, “Filosofia e política”, que constitui a terceira e última parte de uma conferência pronunciada por Hannah Arendt em 1954 na Notre Dame University. Filosofia e política é o título que lhe foi conferido pelo editor da revista Social Research, onde o escrito foi publicado pela primeira vez (v.57, n.1, primavera 1990), sendo que parte dele já havia aparecido na revista belga Cahiers du Grif, em 1986.

[5] Ver Szlezák, 2005, por ex., capítulo X e seguintes.

[6]  Idem, Szlezák, 2005, p.66.

[7] Idem, Szlezák, 2005, p.68 e ss.

[8] Platão, República. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 8ª ed., impressa no Porto, 1996: p.317 e ss.

[9] Em nossa língua e em nosso tempo, certamente, o sentido da palavra “mito” não corresponde ao de relato alegórico como o é a estória da Caverna no livro de Platão; contudo, em grego, a palavra “mito” tinha sim esse sentido de relato ou conto, estória, alegoria, nesse caso utilizado como recurso para fazer pensar e ensinar.

[10]Nota do livro República, ed.cit.,p.320:Odisséia XI, 489-490. Nota do tradutor: esses versos, já citados no princípio do Livro III(386c), pertencem ao lamento proferido pela sombra de Aquiles, quando Ulisses o felicita por continuar a ser rei no Hades.

[11] É claro, sabem os que o estudam, este é o coração do relato do “mito” da caverna, mas não é tudo o que é dito a respeito na República. Preparado por tudo o que o antecede, o que lhe sucede também a ele se refere.

[12] Cf. nota 4, vamos nos referir especialmente a “Filosofia e política”, texto publicado em A dignidade da política, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993.

[13] “Filosofia e política”, 1993, 91-115.

[14] Na realidade, há o mesmo conteúdo em “Filosofia e política”, publicado in A dignidade da política (1993), e em “Sócrates”, publicado in A promessa da política (2005/2010), sendo que parte do texto, como dissemos, se encontra também no número de Les Cahiers du Grif dedicado a Hannah Arendt, em 1986.

[15] Repetimos: A dignidade da política, ensaios e conferências, Relume-Dumará, 1993, p.91-115.

[16] Peithein, a que se liga a deusa da persuasão, Peithô, que tinha um templo em Atenas.

[17]Arendt, 1993, 94.

[18]Arendt, 1993, 93.

[19]Arendt, 1993, 108 e ss.

[20]Arendt, 1993, 108.

[21] Esta observação autoriza a associar doxa com fenômeno, associação que sugere uma linha de reflexão fecunda para a filosofia política.

[22] Arendt, 1993, 109.

[23] No texto de Arendt, faz-se referência a Hegel.

[24] Arendt, 1993, 110.

[25] Ao texto sobre a alegoria da Caverna se segue um comentário intitulado Espanto: Arendt, 1993, 110 e ss.

[26] Ou o “propriamente filosófico”.

[27] Arendt,1993,112.

[28]  Idem.

[29] Segundo H.Arendt, na opinião socrática estava a verdade; as opiniões carregam sua verdade, seu caráter de opiniões verdadeiras; há um sentido de verdade na opinião; a separação entre opinião e verdade teria sido obra de Platão.

[30] Arendt, 1993,113.

[31] Arendt, 1993,114.

[32] Arendt, 1993, 114.

[33] Positivo no plano do valor - oposto a negativo.

[34] Concordo com Margaret Canovan, citada na capa da edição brasileira da Difel: “A Promessa da política testemunha a preocupação central de Arendt com as implicações da pluralidade humana, talvez a sua idéia política mais fundamental”. 

[35] Como já dissemos na nota 4, isso se dá principalmente em Dignidade da política e noutros escritos póstumos de A promessa da política e O que é política?, mas também aparece em A condição humana, e em trechos de Sobre a violência, Entre o passado e o futuro, Sobre a revolução, ou seja, um pouco por toda parte na obra arendtiana.

[36] Ver em A condição humana, por exemplo, o Cap.I, “A Vita Activa e a condição humana”, p.17.

[37] Ver Sobre a violência, 1994. Resumo esses conceitos num trecho de Violência ou não violência, 2000, na primeira parte.