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Um mundo de moscas  E-mail
Escritores Gaúchos

Gustavo Melo Czekster

 

Influenciado pelos estudos de Pascal e Newton, Montanelli afirmou, no princípio do século XVIII, que os homens não passavam de um delírio das moscas. Essa declaração incendiou o mundo civilizado, encontrando entre seus defensores Fleming, Jones e Desnèuve. Contudo, foi no século XX, com Anton López, de Madri, que ela mais se desenvolveu, reforçando inclusive a teoria da evolução chamada de abiogênese, ou seja, a vida como proveniente da não-vida.

Anton López expandiu a sabedoria de Montanelli e disse que os homens não só eram delírios, como também foram criados pelas moscas. Isso explicaria o fato de elas ajuntarem-se sobre cadáveres, de onde retirariam pedaços para construir outra pessoa. López admitia a hipótese das moscas memorizarem os mortos para posterior reconstrução delirial, linha de raciocínio seguida pelos admiradores de Montanelli, circunstância que o absolveu diante dos seus iguais. A declaração que equiparava Deus às moscas, feita no seio de um país católico, despertou compreensível furor, forçando López a buscar refúgio em outro local.

A América era o lugar ideal para desenvolver seus estudos: as moscas e chuvas abundantes, o calor onipresente. Além disso, foi de especial razão para a escolha do local a obra de temática indígena escrita pelo padre Caetano Moraes, pois algumas lendas tratavam do mesmo assunto pesquisado pelo espanhol. Um desses mitos mencionava o Curupak-in-Otre, ou Homem-Mosca, ser que, mesmo tendo forma humana, pensava como mosca; chamava atenção a impossibilidade de tal criatura banhar-se, temendo a fragmentação.

Utilizando parâmetros matemáticos definidos por Descartes e Pitágoras (com uma leve influência nunca admitida do indiano Bakhti), López definiu que, para cada pessoa no mundo, existe um número de moscas correspondente ao seu número de células. Esta conclusão pode ser sintetizada no seguinte postulado: Ncel = m, "p, onde p é uma pessoa qualquer, Ncel é o volume das células deste marco referencial e m é o número de moscas correspondente a essa pessoa.

Na época em que a fórmula foi idealizada, não se sabia com precisão o número de células de uma pessoa, que é de natureza variável. Grandes matemáticos (entre os quais Gillan, McPherson e Oppenheimer) concentraram nesse ponto as suas críticas, pois Ncel seria um termo impossível de ser calculado em grupos, somente de forma individual, apresentando grande variação, o que retiraria o mérito da descoberta.

Sem saber das polêmicas que viria a despertar, López produziu o único trabalho científico da sua vida, divulgado na edição de maio de 1949 do American Journal of Philosophy. Com o título de “Um Mundo de Moscas”, López suscitou conhecimentos cabalísticos, teorias físicas e biológicas, excertos católicos, fatos da História, movimentos topogeográficos e delírios sonhadores, condensando em exíguas cinco páginas sua idéia a respeito do fim do mundo. Ao aplicar a equação criada, expandindo ao máximo o seu alcance, ele atribuiu um valor médio arbitrário para Ncel (quatro milhões) e concluiu que, se para cada pessoa existem quatro milhões de células, logicamente o mesmo número de moscas faz-se presente, na proporção de um para um.

Cada mosca mede cerca de um centímetro, e pesa em torno de 0,1 miligrama. Quatro milhões de moscas equivalem a quatro milhões de centímetros e quatrocentos mil miligramas, o que implica em dizer que cada pessoa da Terra é igual a quarenta quilômetros e 0,4 quilo de moscas. Tomando por base a população média da Terra na época, ele chegou a um total de moscas capaz de cobrir toda a superfície do planeta em cinco camadas sobrepostas, além de possuir um peso descomunal.

Com base nesses sólidos cálculos, López afirmou que o maior perigo para a sobrevivência humana seria o fenômeno chamado de Diáspora, a separação das moscas que tornam as pessoas coesas. Defendeu, ainda, a idéia de um rígido controle das moscas que trafegam impunes pelo mundo. Esse estudo foi recebido com estardalhaço nos meios científicos, e há evidências de que grandes indústrias de armamentos investiram em pesquisas sobre venenos contra moscas.

Após publicar o estudo, Anton López refugiou-se em uma floresta. As poucas pessoas que conseguiram encontrá-lo deparavam-se com um homem nu, de barba comprida e olhos insanos, dedicado à compreensão das moscas. Elas enchiam todos os recantos do lugar com seu zumbido insistente, e os visitantes ocasionais encantavam-se ao ver o domínio que o recluso exercia sobre as pequenas criaturas.

Certo dia, López desapareceu: restaram somente os seus desenhos de homens formados por moscas, obras que, pela simetria e noção do corpo humano, assemelhavam-se aos esboços de Leonardo da Vinci e aos quadros de Archimboldo. A última pessoa que viu Anton López foi o homem que levava a comida uma vez por semana no sítio e, de acordo com a sua versão, “o senhor López estava vestido, o que não era normal, e as moscas estavam dentro da sua roupa, mexendo de um lado para o outro. Às vezes, uma saía da boca, outra do nariz, outra da orelha. Ele não parava de andar, e não dizia coisa com coisa”. A veracidade do depoimento nunca foi averiguada. Dias depois encontraram essa testemunha dentro de um valo, coberta de moscas.

Há relatos de que Anton López deixou um diário intitulado Compendius muscarum, boato também carecendo de confirmação. As moscas que infestavam a sua casa desapareceram. Uma frase rabiscada no chão, última herança do pensador espanhol, até hoje é fruto de controvérsia: “os homens são delírios das moscas, que não passam de uma ilusão dos homens.”

 

 

Sobre o autor

                                    Daniela Langer *

Com a argúcia e o talento de quem trata de maneira igual as pequenas e as grandes tragédias, Gustavo Melo Czekster estreou no mundo literário com O homem despedaçado. São vinte e três narrativas que conduzem o leitor ao inusitado, aimersões filosóficas e cruezas da vida - uma jornada para ser feita passo a passo, a observar o trajeto, suas curvas e penhascos. 

Embora todos os contos tenham autonomia, o livro funciona como um conjunto. O próprio autor sugere a chave de leitura, no final do volume: “Todos os contos apresentam formas de despedaçamento e não surpreende que, em alguns pedaços, eles se encontrem assim como, às vezes, lembrem outras histórias”. As narrativas terminam por refletir e, por consequência, multiplicar umas as outras. O mosaico permite ao leitor participar de um jogo inquieto, de imagens que se alternam e recriam significados. Se por um lado, o resultado ilude o leitor desatento, bonifica quem não se contenta com a leitura simplificada.

Teorias filosóficas (Nietzsche e Schopenhauer estão presentes em vários momentos), combinadas com teses delirantes e figuras contemporâneas servem de combustível para personagens ávidos de significado racional para suas vidas. Em A gênese do paradoxo branco, um grupo de pensadores descobre a parte mínima que individualiza o homem ou, ainda, aquilo que faria "Deus" enxergar a matriz de cada indivíduo. Tal descoberta lhes é insuportável e o grupo teme o próprio ato de pensar. Como nas grandes tragédias, a epígrafe do texto anuncia a fatalidade: “Pensar demais me deixa assustada”, diz Pamela Anderson. 

Gustavo escreve sobre o absurdo e instaura, através da linguagem, a possibilidade do extraordinário. As narrativas se aproximam da vertente borgeana e constroem labirintos, sugerem paradoxos e multiplicam-se em mundos inventados.

Um mundo de moscas retrata o tom inquietante do livro. Nele, o protagonista afirma que há um número “x” desses insetos para cada ser humano, um valor inimaginável que não cabe na própria Terra. Czekster faz impecável uso do estilo enciclopédico para narrar a história de Anton Lopez e sua incursão pelas florestas da América do Sul a fim de desenvolver seus estudos que garantem: "os homens não passavam de um delírio das moscas". Embrenhado na selva, o cientista vive da obsessão de comprovar sua tese. Termina consumido por fórmulas e teorias, em um final que respira os ares do realismo mágico de Carpentier.

Em um mundo despedaçado não há redenção através do amor ou espaço para esperança e fé das personagens. Sem receio de mergulhar nesse cenário, os textos de Czekster falam da fragmentação do homem, da necessidade de se distanciar dele mesmo na tentativa de se entender. Exercício de autoconhecimento tão solitário e indispensável quanto o exercício da leitura.

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* Daniela Langer é autora de No inferno é sempre assim e outras histórias longe do céu (Ed. Dublinense, 2011) e organizadora da Vereda Literária – encontros de literatura que acontece anualmente em Porto Alegre.