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conto sem título, in Monstros fora do Armário  E-mail
Escritores Gaúchos

                                                                         

Flávio Torres

 

O guri abaixou-se e apanhou algo no chão. Desviou de algumas pessoas apressadas e sentou-se em frente a uma lanchonete, onde pôde finalmente olhar para o papel. Ao contrário do que imaginara, aquilo não era um bilhete de loteria; era menor, todo branco, só uma palavra e uns números escritos. O guri permaneceu algum tempo tentando decifrar aquele enigma e levantou-se, moço, o que está escrito aqui? O homem não parou. Nem o outro. Nem a moça de óculos, nem o moço de azul. Só quando ele pensava em jogar o papel fora é que uma mulher lhe deu atenção.

Isso é um cartão, ela disse, quem te deu? O guri não respondeu, perguntou o que estava escrito, sorria. A mulher também sorriu: é o telefone da tua mãe? O menino então ficou sério, minha mãe?! Tirou o cartão das mãos da moça e agarrou-o com força. Tu está perdido? Ele não respondeu, não conseguiria. Estava muito longe dali, estava com a mãe, aquela vaga lembrança de conforto no escuro, de calor no inverno, mas que um dia desaparecera e o largara sozinho.

É mesmo da minha mãe?, ele gaguejou. A mulher achava que sim, não fora a mãe quem lhe dera o cartão caso eles se perdessem? O guri puxou-a pela mão, moça, tu pode ligar pra ela? A mulher olhou à volta, olhou o relógio, olhou para o garoto, tudo bem, te ajudo. Caminharam até um orelhão, fica ali que eu falo com ela e pego o endereço, disse a moça. O guri concordou, sorrindo, não era possível que estivesse indo encontrar a mãe depois de todo aquele tempo. Não era possível, ele sabia, mas era verdade.

Tua mãe tava meio braba, disse a mulher quando colocou o fone no gancho. O guri voltou dos sonhos, ela não quer me ver?, perguntou. Ela iria vê-lo, mas aquele era o telefone de trabalho dela. Entregou-lhe o cartão com o telefone e o endereço recém-anotado, pega o duzentos e quinze e desce no fim da linha, disse. Deu-lhe ainda umas moedas, compra um pão pra comer.

Quando o ônibus parou, o guri teve medo. Estava acostumado com o centro da cidade, onde se sentia seguro porque o José estava sempre por perto e o José era um moço legal que sempre ajudava os meninos da rua; talvez o garoto até conseguisse convencer a mãe a deixar o José morar com eles. Mas, ali onde a mãe morava, não era o centro, era mais escuro, sujo, um cheiro de peixe podre pelo ar. Havia muitos ônibus e muito movimento nas ruas, principalmente próximo às portas abertas, onde várias mulheres de todas as formas e tamanhos vestiam roupas curtas e chamavam os homens que passassem para conversar. Qual delas seria sua mãe?

Decidiu parar. Moça, onde é esse endereço? A mulher indicou o prédio no fim da rua. Sexto andar, disse, mas fica aqui mais um pouco que eu te dou uma chupeta. As outras riram risos de gengivas quase nuas.

Ele caminhou um pouco mais e parou em frente à porta aberta do prédio indicado e olhou antes de entrar, minha mãe mora aqui? A escada era velha, sacos de lixo se empilhavam em um dos cantos, um sujeito dormia no chão. Minha mãe tem uma casa!

Subiu até o sexto andar e parou na frente da primeira porta. Tentou comparar o que estava escrito no papel que trazia à mão com o que estava pregado nas portas, mas não entendia. Tentou, durante alguns minutos, mas, como não conseguisse, sentou-se junto a uma das dezenas de portas, daqui a pouco a minha mãe aparece, ela sabe que eu venho.

Algum tempo depois, uma das portas foi aberta e um sujeito apareceu. Viu o guri agachado, o que tu tá fazendo aqui, pirralho? O menino levantou-se e entregou o cartão para o homem, qual é essa porta?, perguntou. Tu tá procurando a Mãe? Aquela puta velha mora naquele ali, e apontou para um dos apartamentos. Depois, devolveu o cartão para o guri e desceu a escada.

Após instantes sozinho, o garoto caminhou até a porta indicada. Arrumou a camiseta rasgada para dentro das calças, tentou ajeitar o cabelo sujo e duro para o lado e sorriu da melhor forma que poderia sem ter os dentes da frente. Bateu. Quem é?, fez a voz do outro lado; o guri respondeu: sou eu.

Silêncio. Um, dois minutos. Chave, maçaneta, que é que tu quer? Apenas metade do rosto aparecendo pela fresta da porta. Quem te mandou aqui? O menino ainda sorria, vim pra te ver, mãe!

A mulher abriu a porta e encarou o guri. Examinou-o, tocou em seus cabelos, braços, rosto, há muito tempo não tenho filho! O garoto parou de sorrir pela primeira vez e disse que a moça tinha falado, ele tinha o cartão da mãe, estava com saudades, era um bom guri, não roubava quase nunca, só pra comer.

Quantos anos tu tem?, ela perguntou. Ele disse quatro e mostrou cinco com os dedos. Ela riu pela primeira vez. Entra, piá, disse.

O guri olhou o quarto à volta, as paredes descascadas e mofadas, aquele cheiro de podridão muito mais concentrado, algumas roupas pequenas e coloridas penduradas em uma fina corda azul perto da janela, um abajur aceso, um crucifixo colado com durex, uma cama desarrumada, uma pia, um balão murcho no lixo. Sorriu, como se aquela fosse a maior descoberta de sua vida. Que casa bonita tu tem, mãe!, falou.

Ó, senta aí, ela apontou para um dos cantos da cama. Tá com sede? Ele fez que sim, olhos fixos naquela que já representava tanto para ele, que, mesmo estranha e diferente daquela com quem sonhava, merecia a palavra mãe.

A mulher veio com um copo de frukicola, abriu a gaveta do pequeno armário e tirou as bolachas de lá, deu uma para o guri, ó, tu deve ter fome. Ele agradeceu e mastigou a bolacha com vontade, bebeu o refrigerante e entregou o copo de volta à mulher, brigado, mãe. Ela parou, tu sabe o que eu faço?

O guri olhou mais uma vez o quarto, não, não sabia, mas ela tinha uma casa bonita, ele tinha gostado e...

Sou uma puta, ela disse. O guri parou de observar tudo e fitou as olheiras da mulher, depois os olhos dela. Isso é ruim?, como que perguntando, isso dói?

Ela se ajoelhou, tocou no braço do guri, olha, nem se eu quisesse poderia ser a tua mãe, ela disse.

Ele parou de sorrir, como assim? A moça tinha dito...

Sei lá o que ela disse, mas tu não é meu filho. Tenho mais de cinquenta, não tenho nenhum filho com a tua idade, concluiu a puta olhando para o chão, não conseguia encarar o guri sentado em sua cama. O menino então baixou a cabeça e chorou um choro de quem perdeu a mãe outra vez. A mulher observava, olhos parados. Depois de algum tempo, pegou o guri pela mão e levou-o até a porta. Antes de abri-la, a campainha soou.

O guri fitou a mulher, os olhos ainda molhados, e depois a porta. Ela pegou o menino nos braços, fica em silêncio que depois eu te levo pra encontrar a tua mãe, tá? Entregou mais duas bolachas ao guri e mandou-o para baixo da cama, silêncio, viu? Caminhou até a porta: onde alojaria o guri?

Sorria. Abriu-a, pensando em ganhar mais um trocado para comprar umas roupas, pão, talvez uns brinquedos para o filho.

 

Sobre o autor

 

A ausência de nomes para as personagens e a falta de títulos para os contos colaboram para a criação da atmosfera inóspita dos enredos. Da mesma forma o faz a escolha do narrador, que, como se carregasse uma câmera no ombro, invade a vida dos protagonistas e registra, de maneira seca e objetiva, o modo como cada um deles lida com a instituição família.

Aliás, a palavra “instituição” pode ser usada em seu pleno significado quando se comenta o Monstros fora do armário. As famílias no livro parecem surgir por alguma imposição do destino, por algo instituído pela sociedade, ou, ainda, para atender carências afetivas. Os motivos que levam à progenitura são tão fracos que a maternidade e a paternidade acabam por se tornar um fardo. O desconforto durante o convívio entre pais e filhos é o resultado triste desta “falta de opção” das personagens.

Monstros fora do armário é ousado e subversivo, na melhor conotação que cada um desses adjetivos possa ter. Ousa quando gera as perguntas “para que formar uma família?” e “o que leva alguém a ter filhos?”. Subverte quando questiona o próprio conceito de “social”. Afinal, onde as pessoas que não têm afeto no lar vão descontar suas frustrações? Que resultados coletivos a fragilidade das relações familiares podem gerar? Que tipo de sociedade está sendo criada sobre laços às vezes tão doentios?

A miséria humana não tem classe social, como já nos mostrou Luiz Ruffato ao passar por quase todos os estratos da comunidade paulistana em Eles eram muitos cavalos. Agora, Flávio Torres complementa. A miséria humana não tem classe social. E ela começa em casa.

Leila de Souza Teixeira*

 

*Autora de Em que coincidentemente se reincide e organizadora da Vereda Literária.