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Sobre "Acepipes e Doçuras" - E-mail
Além da Letra - Entrevistas

 

 

Elizabeth Brose conversa com Betina Mariante Cardoso sobre o fazer culinário e modos de relatar essa experiência - um outro lado da atividade profissional

 

Betina Mariante Cardoso é Médica Psiquiatra, Psicoterapeuta e Mestre em Psiquiatria pela UFRGS. Como sócia-fundadora e diretora da Casa Editorial Luminara, traduziu e publicou o livro “...E viveram ciumentos e felizes para sempre”, da Psiquiatra e Neurocientista italiana Donatella Marazziti, em 2009. Participou ainda, junto a Profa. Dra. Beatriz Viégas-Faria e a Profa. Dra.Elizabeth Brose, da organização do livro “Kate Chopin: contos traduzidos e comentados-Estudos Literários e Humanidades Médicas”, publicado pela Casa Editorial Luminara em 2011. Realizou a coordenação editorial do livro “Memórias de um corpo eviscerado”, de autoria da Profa.Dra. Elizabeth Brose, também pela Casa Editorial Luminara, em 2011. Participou dos seminários de criação literária da Profa.Dra. Léa Masina e das oficinas de tradução literária no Studio Clio e na PUCRS, ministradas pela Profa.Dra. Beatriz Viégas-Faria. É colaboradora do setor de Humanismo Médico do CELPCYRO ().

Em 2013, lança nas lojas da Livraria Cultura de Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Fortaleza, o caderno de crônicas culinárias “Pequeno Alfarrábio de Acepipes e Doçuras”, inaugurando o projeto “Maria das Claras-Vivências de Cozinha”, que inclui cursos e oficinas de Escrita Culinária.

“Maria das Claras-Vivências de Cozinha” resulta de um trabalho começado em março de 2012, quando o blog de cozinha “Serendipity in Cucina” inicia suas postagens (). Hoje com mais de 10.000 acessos é leitura obrigatória aos interessados em culinária, nutrição, saúde física, saúde emocional e escrita culinária. Betina Mariante Cardoso trata na entrevista a seguir dos fundamentos teóricos e dessa prática de escrita, que inclui contato diário com seus leitores através das redes de relacionamento. Boa leitura!

Elizabeth Brose:  O que é Food Writing? Por que escrever sobre a ação de cozinhar?

Betina Mariante Cardoso: ‘Food writing’ é o campo de escrita do comer, do preparar o alimento, com diversas ramificações e horizontes, como ensaios, autobiografias, a ficção, a reportagem, os escritos históricos, biográficos, os livros de receitas, propriamente ditos, etc.

Seja em que campo o escritor de cozinha escolher atuar, terá em mãos uma das escritas mais evocativas: todo alimento ou bebida que colocamos na boca evoca uma resposta emocional, além da fisiológica. Uma das principais referências na área, o autor David Lebovitz, refere que a importância desta evocação está também no fato de que, quando degustamos algo, nos sentimos impelidos a partilhar estas experiências, escrevendo sobre elas.

A meu ver, este modo de partilhar a vivência culinária pela escrita é, também, uma forma de comensalidade. Nos dias atuais, em que a Gastronomia ocupa um espaço considerável no cotidiano e nos interesses de tantos, mundo afora, esta partilha assume uma função ainda mais importante: a transmissão via blogs de culinária gera uma troca cultural rica entre os povos, e isto pela escrita de cozinha, a mídia gastronômica, os programas de televisão, os livros de cozinha por toda parte.

Devemos considerar os primeiros livros de cozinha da nossa História, que tiveram esta mesma função de transmitir conhecimentos e experiências culinárias, que foram se difundindo e gerando ramificações, especialidades, novas funções, novos aprendizados...Esta troca cultural, hoje, tem seus efeitos multiplicados pela enésima potência pela Internet, pela cultura de que cozinhar é um evento agregador. Escrever de cozinha tem um grande papel nisto, pois o escritor tem a missão de trazer o leitor para a mesa, ou para o balcão, como se fizesse parte da refeição, com os sentidos e as emoções aguçados.

Esta é uma área muito difundida em diversos países, principalmente nos Estados Unidos, mas a criação de blogs de cozinha e da cultura dos livros de cozinha tornou cada vez mais ampla a prática desta escrita.

Uma das principais referências na área é a escritora e instrutora em escrita culinária, Dianne Jacob, autora do premiado livro “Will Write for Food”, já em sua edição ampliada.

Escrevemos de cozinha para evocar reações e emoções, para transmitir culturas, para agregar, e por tantas outras razões, que especifico a seguir.

Elizabeth Brose:  Como você escreve?

Betina Mariante Cardoso: Gosto de contar a receita por escrito, como em uma conversa na mesa da copa, daquelas que ocorrem entre amigos ou família, durante uma refeição longa e saboreada. Nestas conversas, muito se transmite, e a culinária é um dos principais veículos desta transmissão. ‘Faço-assim, faço-assado’ é a história do ‘como-se-faz’ de alguém, e esta propriedade é viva nos verbos e pronomes de uma receita.

Observei muito como as pessoas contam, oralmente, seu modo de fazer deste ou daquele prato; fiz isto por curiosidade, antes de começar a escrever especificamente sobre cozinha, em 2012. E, então, decidi que gostaria de reproduzir este contar da receita como algo pulsante, como se estivesse no balcão da cozinha com o leitor, fazendo-o aprender, tim-tim por tim-tim, como o quitute deve ser feito, como deve ficar em cada etapa, e o que esperar do resultado final. Este aprendizado passa por fazê-lo olhar, cheirar, sentir o gosto, escutar os instrumentos e os ingredientes, tocar as texturas do que está executando. E esta é a riqueza, a meu ver, disponível na escrita de cozinha: o exercício pleno dos sentidos. Se vamos escrever sobre o pão que estamos fazendo, devemos escrever TUDO sobre ele, para que o leitor, a partir de nossa descrição, siga os passos em sua casa, sabendo o que deve verificar em cada momento da receita, com os SEUS SENTIDOS.

Assim, procuro provocar nele a seguinte percepção: exercitando a atenção, ao olhar uma cor ou um tom, ao sentir um aroma, ao tocar a massa do pão, ao escutar o som da cebola refogando, ao sentir um gosto, ele está ‘presente’ na receita, com o foco ali. E o benefício disto desdobra-se nos campos culinário, pessoal e, às vezes, até profissional. Esta sensibilização que a prática de cozinha propicia enriquece nosso sentir: passamos a perceber mais as nuances de cada um dos cinco sentidos; pode-se dizer, também, que passamos a nos conhecer mais e melhor, pelo treino destas observações. E há muitas riquezas nesta partilha com o leitor, pelo contar da receita em detalhes ‘vivos’: torna-se um comensal, estamos compartilhando um fazer, mesmo que seja pela página. Em todo o processo, está subjacente a vivência do prazer, essencial para nossa existência, incluindo a perspectiva neurobiológica de seu funcionamento.

Precisei começar a aprender esta nova forma de expressão, ligada à Gastronomia. Neste ponto, para aprimorar a escrita de cozinha, tive como principais ‘Mestres’ as leituras de clássicos da culinária e da escrita culinária, como, por exemplo, M.F.K. Fisher (1908-19992), autora americana de referência, de diversos livros sobre cozinha com um olhar aprofundado para a subjetividade, como ‘The Art of Eating”, e Irma Rombauer, autora do clássico americano “The Joy of Cooking”. Li também Elizabeth David (1913-19992), ensaísta culinária inglesa, Doña Petrona (1896-1992), cozinheira argentina e escritora de livros de cozinha, Blanca Cotta, escritora e colunista de cozinha, também Argentina...E li algumas passagens de “A Arte de Comer Bem”, de Rosa Maria, publicado no Brasil na década de 30, e presente em tantos lares do nosso país, até hoje como relíquia...Recebi uma destas emprestada, em outubro de 2011, e foi um grande estímulo para o começo desta escrita.

No entanto, o material que de fato ferramentou minha escrita foi o livro “Will Write for Food”, da instrutora americana Dianne Jacob, um trabalho extenso de pesquisa e orientação da autora para quem quer escrever de cozinha, principalmente de modo profissional. Ela também orienta workshops e supervisões nos Estados Unidos. O livro é excelente, e de fato dá as bases, as referências, os focos possíveis. Foi um achado, sem dúvidas! Um dos primeiros aprendizados do livro: é preciso que cada um encontre sua ‘voz’ na escrita de cozinha, e foi quando percebi que desejava traduzir a escuta das receitas pela narrativa oral em um contar escrito, como em uma conversa. Foi a partir desta descoberta, e das leituras referidas, que criei meu blog “Serendipity in Cucina” e comecei a praticar este formato.

Elizabeth Brose:      Em seu blog, com mais de dez mil acessos, os leitores se comunicam com você imediatamente após a postagem. Eles interferem na sua escrita? Como isso acontece?

 

Betina Mariante Cardoso: Exato, esta comunicação tem ocorrido principalmente via Facebook, muito mais do que pelos comentários no próprio Blog. O que é interessante nesta participação dos leitores é que ‘apontam’ o que funciona melhor em termos de ‘assunto’ das postagens, pelos comentários que deixam. Este ponto não interfere propriamente na escrita, mas sim na escolha ou eliminação dos temas para o blog. Isto ocorre algumas vezes, mas o direcionamento dos assuntos se dá num ritmo espontâneo, como ‘uma conversa leva à outra’, sem uma seqüência determinada previamente.

 

No blog, comparo esta não linearidade dos temas com o caminhar por uma cidade estranha, em que vamos descobrindo novidades pela exploração casual do local É como se o foco de um texto apontasse para uma direção, que leva à outra e à próxima. Por isto o nome do blog: um ‘acaso feliz’ na cozinha, algo que, por acaso, nos dá novo ‘rumo’, como as receitas de improviso ou o ‘caminhar sem mapa’ por uma cidade estranha: nos aventuramos a conhecer, a descobrir, a vivenciar o novo. E esta é uma grande riqueza que a culinária nos propicia: vivenciar o novo, e nos vivenciarmos no novo. Assim, esta é a não-linearidade do blog, e poderia brincar, até mesmo, dizendo que é uma das características mais estáveis do projeto todo, ao lado da minha escrita-conversa.

 

Entretanto, cito um exemplo em que a participação do leitor interfere: percebo que a apreciação é muito positiva quando trago o comportamento como assunto, vinculado a algum tema culinário (que, neste caso, funciona como metáfora). Se o leitor aprecia estes posts e o expressa com mais freqüência do que em relação aos demais, procuro escrever mais vezes neste formato, como quanto comparei o ato de saborear à etapa do vínculo na relação amorosa. Outro ponto que os leitores parecem gostar é quando comunico alguns conhecimentos das referências atuais em Neurociência, em uma linguagem clara e acessível. Para mim, esta partilha é muito válida. Posts que também tiveram boa repercussão foram aqueles com as receitas que invento, por arriscar. Então repito este formato, de tempos em tempos.

 

Elizabeth Brose:      Como funciona sua oficina? Quem pode participar?

 

Betina Mariante Cardoso:           A oficina é composta por oito alunos, e ocorre em módulos teórico-práticos, cada um de quatro horas. São módulos independentes, em que trabalho os diversos campos possíveis na escrita de cozinha, com exemplos em autores de referência. Eventualmente, receberemos um instrutor convidado, para falar sobre um tema específico, como Análise Sensorial, Harmonizações, Enologia, entre outros.

A primeira parte, de duas horas, em geral é teórica, com aula ou palestra do convidado, então há um coffee-break dirigido à temática, de 30 minutos, e segue a segunda parte, prática, de exercícios de escrita.

Podem participar todos aqueles com interesse em escrita e em cozinha, pois o foco da oficina é, principalmente, vivencial: trata-se de estimular o ‘escrever de cozinha’ (“food writing”) como modo de realizar o prazer da escrita e de perceber os ingredientes como ‘personagens’ de nossa vida cotidiana, através do incentivo ao uso dos sentidos para perceber e para descrever o alimento. O foco é aliar um propósito lúdico ao aprendizado teórico das várias formas de escrever sobre Enogastronomia.

Uma exceção é o “Passeio de Campo”, em dois módulos, em que o grupo escolhe um local para visitar ou uma atividade dirigida, como um piquenique, e a atividade prática é realizada durante o passeio, com fotografias, coleta de material, anotações, conversas com integrantes do local (o Mercado Público ou uma feira, por exemplo). No módulo seguinte, a escrita é realizada a partir do que cada um coletou, saboreou, observou com os cinco sentidos.

 

Elizabeth Brose: Como você, psicoterapeuta, vê a relação do sujeito com a preparação de alimentos? O que significa preparar o próprio alimento e escrever sobre essa ação?

 

Betina Mariante Cardoso: Costumo dizer, e escrevo isto na introdução do livro:

 

“O ato culinário é, ao mesmo tempo, uma experiência individual e coletiva, uma oportunidade de autoconhecimento, de entrega a mim mesma e, simultaneamente, de partilha, de doação, de expressão de afetos positivos. Exercício contínuo de liberdade e de disciplina, de firmeza e de flexibilidade, de gratificação e de tolerância às frustrações. De foco e de atenção no presente em cada ato, pondo em ação cada um dos nossos cinco sentidos. Exercício de resiliência, a cada receita.”

 

Vejo o preparar do alimento sob diversos enfoques, mas, principalmente, como uma oportunidade de o indivíduo aprimorar seu autoconhecimento a partir de como percebe o fazer culinário com cada um dos seus sentidos, emoções, expectativas. Arriscar, inventar receitas e misturas, muitas vezes, mobiliza emoções diferentes daquelas despertadas pelo seguir receitas de livros: ambos os exercícios são importantes, pois trabalham atributos diferentes em nós. E esta prática é realizável por todos, em suas cozinhas: um aprendizado de si mesmo.

Outro ponto importantíssimo estimulado pela gastronomia é a comensalidade: comer com outras pessoas é uma das primeiras riquezas da História da Alimentação. Hoje, esta prática está muito ampla, pois cozinhar com outras pessoas é um hábito, um lazer, cada vez mais vivenciado. Nossos circuitos envolvidos na sociabilidade e no empatia, no cérebro, ficam ativados, como em outras ocasiões sociais. Como há o prazer envolvido, cozinhar com amigos, ou entre o casal, torna-se uma oportunidade multifatorial de reforço dos afetos positivos.

Há muitas outras perspectivas a serem pensadas, e dou especial destaque à questão dos exercícios sensoriais, pela melhora do foco na ação, nas percepções, a necessidade de o indivíduo estar cozinhando com o corpo todo ali, e não com as ‘mãos na massa’ e a cabeça nas preocupações. A concentração é ativada, quem cozinha deve estar atento a tudo, e esta imersão no ‘presente’ pode melhorar a capacidade de foco.

Esta experiência dos sentidos é o principal ponto da escrita do preparo do alimento. A escrita de cozinha tem várias aplicações, mas esta, de descrever o preparo, é uma das mais encantadoras, pois passamos a ter outra relação com os ingredientes, quando eles se tornam personagens de nossa escrita. Já olho a cor do tomate antes e depois de assá-lo, as mudanças em seu aroma, textura, e até mesmo nas emoções despertadas em um e em outro estado de preparo. Registro as memórias que tais e tais características despertam.

Esta prática pode melhorar a relação com os alimentos, pois passamos a perceber suas potencialidades, qualidades, viço, para podermos descrevê-los. A descrição torna-se uma prática muito prazerosa, já que passamos a mostrar, muitas vezes por metáforas, como é tal aroma ou tal textura, ao invés de simplesmente usar um adjetivo para isto, como aconteceu em meu texto “Manjericando”.

A meu ver, escrever sobre o que preparamos enriquece nosso olhar sobre o que percebemos e sentimos, o que comemos e do que gostamos ou não. Na vivência que tenho com o blog, por exemplo, entendo que a escrita sobre as práticas qualifica a experiência sensorial: melhoramos nossa sensibilidade ao tato, à visão, aos sons, aos gostos, aos aromas,pela própria plasticidade cerebral. Esta é, em linhas gerais, a capacidade que o cérebro tem de ‘aprender’ e de aprimorar o aprendizado com a prática contínua de um atributo. Sentimos mais, e sentimos melhor, nossas percepções, quanto mais as colocamos em uso. E os sentidos são a conexão de nosso mundo externo com nosso cérebro, envolvido em nossas emoções, pensamentos, reações fisiológicas, hormonais, etc.

 

Elizabeth Brose:      Para você, o que significa o preparo do piquenique, esse comer ao ar livre?

 

Betina Mariante Cardoso: Começo trazendo a postagem de 25 de setembro de 2012, no “Serendipity in Cucina”, que traduz muito do que sinto a respeito desta vivência dos piqueniques.

“Para mim, o elemento essencial do Piquenique, o elemento que de fato me desperta para esta proposta, é a liberdade: de sentar no chão, de comer com a mão, de me sentir criança brincando. A liberdade de perceber o vento mansinho se exibindo, fazendo voar guardanapos, derrubando copos,  espalhando farelos de bolo.

Esta atmosfera vibrante é exclusiva dos convescotes, desde o momento de espichar a toalha, abrir a cesta e colocar, espalhados, todos os quitutes. Sem ordem, regra, protocolo, ofício. É uma grande brincadeira, o piquenique. Me alegra a vivência de prazer, de 'descompromisso', de permissão; olhar ao longe uma paisagem e pertencer a ela, do lado de cá. Estar embaixo   d´árvore, em silêncio ou conversando. 

Pois o piquenique dá esta liberdade, esta lonjura: somos parte daquela amplidão. Nossa toalha sobre a grama é parte de uma cena maior, a leveza, a 'desimportância' com fatores não controláveis. Estamos ali, e pronto. Naquele campo, podemos soltar as rédeas, sujar nossa roupa com terra, deixar as formigas habitarem a cena. Podemos vestir a fantasia, o 'faz-de-conta', que ali pode. 

Há tantos outros elementos...A amizade, a partilha, as músicas, os jogos, os quitutes...No meu sentir, todos estes têm força. No entanto, a sensação de liberdade, de soltura, é  o que dá o toque final de mágica.  De verdade? Acredito que haja mesmo um fascínio neste prazer de brincar, sentado no chão. Feito criança...”

Gosto tanto, mas tanto destas vivências, que comprei um livro sobre piqueniques urbanos, feito por uma dupla de canadenses, John Burns e Elisabeth Caton, publicado em 2004: “The Urban Picnic” [O piquenique urbano].

Quando me apaixonei por este formato de refeição? Confesso que sempre tive encantos por essa vida que tem a toalha na grama, a cesta de vime, as comidinhas trazidas por todos, alguém tocando violão, a risada correndo solta, o cheiro do campo, do “ar livre”, o clima de aventura. Tenho alguns livros e revistas com cardápios específicos para piquenique, inclusive, escolhidos nos últimos 15 anos.

Sempre gostei daqueles bucólicos, fora da correria citadina, mas senti uma magia nos piqueniques dentro da cidade, também, andando por Edimburgo, com gente fazendo o seu no parque em frente ao Castelo, bem no meio da azáfama urbana. Gente sozinha ou em grupos, por todos os cantos, criando espaços para o piquenique, para um tempo mínimo de lazer no meio da rotina da semana.

 

Em tantos lugares isto acontece, mas lá me despertou encanto. É mais do que a liberdade de sentar no chão, de se sujar, de comer com as mãos: no caso dos piqueniques urbanos, há a permissão para este ‘tempo & espaço’ dentro de nós. Tempo e espaço ligados a uma refeição sem ordem, sem talheres na mesa, sem mesa nem cadeiras, num parque ou numa praça, em meio ao tumulto, na contracorrente do relógio apressado. Neste ponto, entra algo importante, nossa capacidade de adaptação, de flexibilidade, de produzir e de aceitar o novo, como aconteceu em Porto Alegre no ano passado, com os piqueniques noturnos.

 

Pela questão da falta de segurança, da falta de costume – e, digo por mim, da falta de coragem- para estender uma toalha numa das nossas áreas possíveis por aqui, este tipo de prática soa estranho, mas seria uma delícia se adotássemos esta novidade na nossa agenda corrida. Em linhas gerais, para mim, o piquenique urbano tem a ver com a permissão para o mais puro lazer dentro da rotina, sem precisar esperar um feriadão ou as férias.

 

“A filosofia do piquenique é aquela da flexibilidade, do lazer, do carpe diem”, é o que leio na introdução do livro “The Urban Picnic”, que ressalta uma tendência das capitais mundiais em estimular este hábito, na última década. Conforme apontam jornais de 2003, “Le Monde” e “The Economist”, há um incremento dos piqueniques urbanos, pela importância da refeição informal, hedonista, em meio ao caos moderno. Enfim, são pequenas rupturas do stress violento do nosso corre-corre, e valem a pena!

 

Para ler: .

 

Há também as refeições ao ar livre, chamadas de ‘alfresco’, em que colocamos a mesa no pátio, servimos ali o almoço aos amigos, festejamos. Há vários modos de enfeitar a mesa, sempre com uma tendência ao rústico acolhedor, que dão a estas celebrações também uma atmosfera de prazer, de brisa, de liberdade, de soltura, de mansidão. O ‘Barbecue’ americano também promove essa característica das refeições ao ar livre, por exemplo.

 

 

Elizabeth Brose: Seus escritos sobre experiências culinárias transmitem os imperativos: “cozinhe”, “escreva”, “fale sobre isso”, “comente”. Eles autorizariam o prazer de cozinhar em uma época de incentivo ao discurso mais centralizado nos valores nutricionais dos alimentos? Ou o prazer não está dissociado desse saber?

 

Betina Mariante Cardoso: Esta autorização ao prazer de cozinhar pode, e deve, estar associada à valorização das refeições nutricionalmente corretas. Acontece que, se pensamos neste prazer de ir para a cozinha, de preparar o alimento, imaginamos ingredientes fartos, ricos em sabor e pobres em saúde, mas não é preciso que seja assim. As opções para adaptarmos a alimentação às necessidades de saúde são cada vez maiores, e o prazer de cozinhar está cada vez mais difundido, também. Não, não precisam estar dissociados estes elementos. O ‘prazer de comer bem’ (saúde) e o ‘prazer de bem comer’(sabor) são idéias opostas?

 

Claro, em tempos de adotarmos comportamentos adequados em termos de alimentação, falar no prazer de cozinhar pode parecer uma saída do foco predominante, atualmente, mas eu diria o contrário: criarmos uma refeição nutritiva e prazerosa, no preparo e no sabor, é uma convergência de fatores de saúde. Por quê? Digo que o prazer é um nutriente necessário na preparação do alimento, bem como em sua degustação.

 

Um exemplo disto é o chef britânico Jamie Oliver, que estimula a cozinha saudável e prazerosa, em uma cruzada por alimentos orgânicos e naturais. Jamie interferiu positivamente na reforma do sistema da merenda escolar nas escolas britânicas, propondo trocar alimentos industrializados e fast-food por refeições balanceadas, naturais e ricas em verduras e fibras. Teve papel na mudança de cardápios em uma rede de fast-food, a partir de suas críticas e pela campanha fervorosa pela nutrição saudável. É um belíssimo exemplo de como o prazer de cozinhar e a busca pelos ingredientes favoráveis à saúde podem e devem ser fenômenos convergentes.

 

Então, o cuidado alimentar não é avesso a este prazer, podemos compor uma refeição saborosa, bela visualmente, com várias cores e texturas, ouvir uma música mansa, produzir gostos agradáveis, tudo dentro dos parâmetros nutricionais apropriados. De novo, a menção aos cinco sentidos: é possível, e é preciso, que estimulemos nossas ferramentas sensoriais para que nos permitam viver a refeição de modo pleno, agradável, prazeroso: estes elementos agregam valor nutricional ao nosso prato.

 

Um outro ponto que é preciso mencionar: o surgimento do Slow Food http://www.slowfood.com,uma associação internacional fundada em 1986, com a filosofia de promover uma maior apreciação da comida, uma melhor qualidade das refeições e uma produção de alimentos que valorize o produto, o produtor e o meio-ambiente. O movimento nasce do propósito de contrapor o fast-food, estimula refeições saudáveis, prazerosas e que aproveitem a sazonalidade e a localidade dos produtos, incentivando os produtores locais, já estando difundido pelo mundo.

 

Um dos aspectos interessantíssimos do Slow Food é o estímulo à desaceleração da rotina moderna, estimulando o retorno do prazer à mesa, das refeições com a família, da vivência prazerosa de comprar os produtos no mercado ou colhê-los na horta (mesmo nas pequenas sacadas de apartamento), preparar as receitas e partilhá-las nas refeições cotidianas. Este movimento guarda importante relação com a conexão entre saúde e prazer na cozinha, pois teve influência no olhar da sociedade para este cuidado.

 

             

Elizabeth Brose:      Fale sobre aquelas experiências culinárias, que, ao degustar, o sujeito diz: “Não gostei” ou “prefiro outra coisa”?

 

Betina Mariante Cardoso: Não gostar ou preferir outro alimento são expressões ligadas ao sabor e ao prazer que sentimos ou deixamos de sentir. Este é um fenômeno multifatorial, que não tem apenas relação com o sentido da gustação, mas também com aquele do olfato e do tato, e a coisa não pára por aí.

Os gostos, que são cinco (salgado, doce, ácido, amargo e umami) são percebidos nas nossas papilas gustativas, na língua, mas o sabor envolve mais de um sentido, como dito acima, e todo o campo de memória, afeto, prazer, em intrincados e fascinantes mecanismos neurobiológicos. Já há um campo denominado Neurogastronomia, interessantíssimo, que estuda estes fenômenos.

Há, inclusive, um livro chamado “Neurogastronomy-how the brain creates flavor and why it matters” [Neurogastronomia- como o cérebro cria o sabor e por que isto importa], do neurocientista Gordon M. Shepherd, que traz suas pesquisas na neurobiologia envolvida na Gastronomia. Curioso é que o renomado gourmand Jean Anthelme Brillat-Savarin publicou pela primeira vez, em 1825, seu livro “A Fisiologia do Gosto”, reeditado mundo afora, desde então. Brillat-Savarin antecipou compreensões que temos hoje sobre o universo do sabor, em vários campos: escreve sobre nossos sentidos, sobre a vivência de prazer, e tantas outras de suas ‘meditações’.

Quando o sujeito diz “Não gostei” ou “prefiro outra coisa”, está falando de sua fisiologia, sim, mas também de toda sua história, suas memórias, suas referências familiares, sua cultura, suas preferências, seus aprendizados e condicionamentos, seu jeito de ver a vida.

No gosto, percebido na língua, está implicada a percepção objetiva pelas papilas gustativas; no sabor, está implicado todo o aparato do cérebro e da mente para ‘gostar’ ou ‘desgostar’ do alimento, para sentir prazer e conforto, ou o contrário. O sabor, embora tenha correspondências objetivas em áreas do nosso cérebro, envolve em grande proporção nossa subjetividade.

 

Elizabeth Brose:  A escrita sobre as experiências culinárias organizam um enredo: Nessa história, quem é a personagem principal: o prato ou o cozinheiro?

Betina Mariante Cardoso: Minha primeira vontade é de dizer que é o prato, mas percebo que não é sempre assim. O prato deve ocupar a posição central em boa parte das narrativas, pois escrevemos sobre seu fazer, sua composição, sua existência através dos nossos sentidos; o cozinheiro deve estar nos bastidores, atrás do aspecto visual, da textura, do aroma, do gosto, do som do preparo; não deve estar à frente. A subjetividade do cozinheiro-escritor entra nestas descrições, sem que precisemos aparecer diretamente.

No entanto, depende da proposta de escrita: se estamos falando em um ‘memoir’, que é uma coleção autobiográfica do escritor-cozinheiro, ele é a personagem principal, o agente transformador do alimento, o sujeito que produz o ato culinário, e sua presença na história é essencial. Este é o caso da autora americana Ruth Reichl, autora de Best-sellers, entre eles “Conforte-me com maçãs.

M.F.K. Fisher, também americana e já citada nesta entrevista, também escreveu memoirs entre seus 27 livros, bem como diários, correspondências, literatura culinária e de viagens. Biografias também ocupam-se do cozinheiro e de sua história, como é o exemplo do livro ‘Stand Facing the stove’, de Anne Mendelson, sobre a autora do livro ‘The Joy of Cooking’, Irma Rombauer, e sua filha, ilustradora.

E há tantos outros exemplos espalhados pelo mundo, com variações entre o foco de luz no alimento, em algumas vezes, e no cozinheiro, noutras. Há muitas formas de escrever sobre cozinha, mas deve-se considerar: cozinheiro e preparo são como criatura e criação, interdependentes.

Uma situação especial, o crescente surgimento dos blogs de cozinha. Neles, em geral, espera-se –e indica-se- que o autor seja a voz do enredo, que fale de suas emoções, vivências, sabores e prazeres, e não que se esconda nos bastidores. Tanto que a própria autora Dianne Jacob, já mencionada, refere a necessidade de os blogs de cozinha terem a página de apresentação do autor bem configurada, pois ele é a voz que vai ‘conversar’ com os leitores, e não o prato.

 

Elizabeth Brose:  Cozinhar seria um ritual? Parece que vários elementos são estáveis: o calor, o fogão, o forno, a mesa, os talheres, a organização dos alimentos, a mistura adequada, a surpresa – que pressupõe uma ordem – e a organização da mesa. Seu livro-caderno ajudaria a perceber o cozinhar como um ritual afetuoso?

Betina Mariante Cardoso: Em primeiro lugar, sim, vejo o cozinhar como um ritual, que acompanha nossa história da Humanidade. Está presente em nosso percurso, nosso desenvolvimento Humano, e está nesta força atávica muito de sua riqueza. Coletiva, neste sentido, incluindo aqui, também, o papel da linguagem neste desenvolvimento, então a comunicação, a sociabilidade, a comensalidade, e por aí vai...No sentido individual, esta riqueza se expressa, a meu ver, na formação de aptidões motoras, sensoriais, perceptivas e emotivas ao longo da jornada de cada um de nós no universo dos sabores.

Dou papel de destaque à linguagem pela sua importância em tantos os campos da nossa vida, mas gosto muito de lembrar que é ela a responsável pela existência dos livros de receita: foi a partir dela que a transmissão de conhecimentos de cozinha foi ocorrendo entre as culturas, as épocas, os países e continentes. E isso se aplica, em âmbito menor, aos cadernos de receita, em que a transmissão ocorre entre as várias gerações de uma família.

É pela linguagem que existe a escrita de cozinha; e é ela que nos permite memorizar, e então nomear posteriormente, o que preferimos, o que nos dá prazer, o que saboreamos. A linguagem nos permite nomear aromas, muitas vezes, por nossas emoções, que associam sabores, aromas, palavras e afetos. Sendo assim, ela é também parte do ritual de cozinhar. Tanto quanto as panelas, os pratos, os talheres, os ingredientes, ela é um instrumento essencial: não há cozinhar sem linguagem. E por isto tenho este encanto pelos cadernos de receita, desde sempre, porque recebem vida, através das histórias do ‘como-se-faz’.

Os cadernos transmitem não apenas nossos rituais, mas aqueles das figuras que fazem parte de suas páginas (“Bolo de Melado da Anilda”, “Rapadurinha de leite da Vó Léia”, “Ambrosia da Vó Alda”...): os títulos dos doces estão amarrados às pessoas que os fazem, desde um sempre. Um caderno de receitas pressupõe que aqueles que passarem por nossa cozinha, por nossa mesa da copa, por nossas memórias culinárias, deixarão registrada sua passagem. E eu digo até que a escrita no caderno também nos torna personagens da nossa história, pois vemos, na escrita de uma receita antiga, nossa caligrafia e lembranças de nós mesmos, num outro tempo. Então, é um profundo documento de nossa história pessoal. Por isto, decidi fazer as crônicas habitarem um caderno de receitas, por todo o simbolismo deste na memória e no imaginário de quem gosta de cozinha.

E há um ponto: deixei as 50 páginas no final do livro, seguindo sua numeração, destinadas ao leitor, para que se torne coautor do projeto: tornará seu o meu livro-caderno, registrará, ali, suas receitas e vivências, percepções, notas. Deixará, nas folhas, as suas manchas da massa de bolo, que respingam durante o fazer culinário. Anotará a textura e o aspecto do bolo ao sair do forno, quem provou a receita, quem veio para o almoço, o que tinha de sobremesa. É esta bagagem afetiva que a cozinha propicia, e foi este o propósito de um livro-caderno. Além disso, as páginas que iniciam as duas partes (“Este livro pertence a” e “caderno de receitas de”) têm o objetivo de entregar ao leitor a propriedade do caderno, que passa a ter seu nome, passa a ser seu, para suas marcas, anotações, dúvidas, experimentos, vivências de cozinha.

Assim, o propósito é, de fato, que o leitor/coautor perceba o cozinhar como um ritual afetuoso, consigo, com aqueles que ama e com quem compartilha o prazer, um ritual com sua história.

Um ritual de suas transformações, de sua individualidade