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Depois da Revolução, Cyro Martins E-mail
Estante do Autor - Ficção

                                                                          

                                                                                                            a Bernardo Simões Fernández


 

Tudo ainda estava meio remexido, meio falso, como raizame de ervas num tremedal. Nada bem no lugar, nem fora nem dentro das pessoas. Mas a paz fora feita. Os jornais chegavam da capital falando grosso no “Tratado de Pedras Altas”. Aquilo soava bonito, algo misterioso, remoto. Os chefes estaduais de ambas as facções aconselhavam calma, mas entre o povo, os contrários, quando se cruzavam, se olhavam cismáticos. Qualquer piscada parecia pouco caso. Para alguém se parar potro e pedir peleia não precisava grande ofensa. Os do lenço encarnado perseveravam com ele no pescoço, orgulhosamente, e os de branco também. Na cidade ainda os sentimentos afinavam sem demasiadas estranhezas. Mas na campanha, que perigo dois adversários se encontrarem na estrada! De longe se alertavam, cutucando as esporas na barriga do pingo e levando a mão por baixo do pala para desabotoar o coldre. Quantas vezes, por um triz não se queimavam!


 

Nas primeiras reuniões de carreira depois da revolução recrudesceram as diferenças. O eriçamento dos grupos era quase impossível de conter. Em cavalo de contrário não se jogava, nem brincando. Engano, pensar que a revolução tivesse acabado. Qual nada, tudo não passava dum engambelo, manobra dos graúdos. Honório Lemes amoitara sua gente e seu armamento no Caverá — falava-se. Num ápice, estava a sua coluna formada, no topo das coxilhas. Os desmentidos não adiantavam, o povo queria acreditar naquele diz-que-diz-que, mesmo os que alimentavam algum receio. Afora esses, havia os que apeteciam, que provocavam, com dichotes, com caretas, com rabo-de-olho ou mesmo com atrevimentos francos. Isso, mais no tocante aos revolucionários. Do lado dos outros, eram as patranhas, as prisões atrabiliárias, o arrocho nos impostos só para os adversários. Os correligionários do governo em geral eram dispensados, com ou sem disfarce. 

 

Não sentara ainda o pó desse redemoinho de paixões, quando correram as primeiras notícias de que em breve começariam as qualificações eleitorais, que dali em diante não se precisaria mais apelar para as armas, as diferenças se tirariam na boca das urnas. A lei eleitoral do Borges fora finalmente rasgada, os mortos não tinham mais direito a voto.

 

 A movimentação foi um deus-nos-acuda, principalmente da parte dos cabeças oposicionistas, que principiaram a percorrer a campanha, sem alívio, de rincão em rincão. Correrias, cabalas, palpites sobre candidatos, desenhação de nomes aprendendo a própria assinatura, tudo parecendo numa pressa e numa canseira medonha para aquelas mãos rudes. Em conseqüência, era só gente de dedo encarangado.

 

Afeitos a rebuliços, os gaúchos acudiam com alvoroço aos grandes piqueniques políticos nas estâncias dos chefetes

assisistas. Montados no melhor cavalo, o lenço vermelho esvoaçante, rumavam alegres para a churrasqueada. Ouviam discursos, davam grandes talhos nos assados à beira dos fogões, soltavam gargalhadas estupendas, animados, num primarismo saudável. E também bebiam dois ou três barris de vinho nacional. E cervejadas.

 

Inflamados, ali pela meia-tarde de repente se formava um rolo, e eram adagas relampeando, revólveres engatilhados, gritaria, impropérios, latidos de cachorro e o tropel de um bagual que se assustava com o estrupício e saía campo fora

vendendo arreio.

 

Então os chefes vinham lá de dentro, da casa grande da fazenda. Em geral a simples presença deles impunha respeito, arrefecendo os arrebatamentos. Os doutores da cidade discursavam outra vez, arrasando o governo e prenunciando a sua derrota certa nas próximas eleições. E tudo terminava com vivas à liberdade, vivas à Assis Brasil, a Honório Lemes e a todos os chefes presentes, sem esquecer, naturalmente, o nome do fazendeiro que oferecera o churrasco, a essa hora, se não o fora antes, já promovido a coronel. Este viva sempre vinha por último e por iniciativa de um dos membros graduados do comitê.

 

Foi num desses atropelos libertários, à sombra de um paraíso gigante, entre o galpão da Estância Estrela d’Alva e a ramada onde os gaúchos churrasquearam, matearam e por fim se estranharam, que o Dr. Magalhães, trepado num mocho, começou seu discurso de emergência citando:

 

— Anatole France...

 

 No hiato, pois a eloqüência do bacharel era pausada, o Alberto Nunes perguntou ao velho Patrício, conhecido pelos seus repentes, quem era esse tal de Anatole.

 

— É um fazendeiro lá da costa do Ibicuí, maragato dos quatro costados!

 

Os cabos eleitorais caprichavam na cabala para aumentar o prestígio, em rivalidade cavalheiresca, uns com os outros. De quinze em quinze dias, mais ou menos, davam um pulo à cidade para saber novas e receber ordens do comitê. Nenhum queria passar vergonha daquela competição. As lides de campo iam se fazendo apenas as mais urgentes. Os próprios galopeavam pelos atalhos, levando recados para os companheiros, muitas vezes ninharias. Era mais para manter o pessoal numa espécie de prontidão cívica. E também para evitar desconfianças, porque alguns se ressentiam facilmente quando passavam certo tempo sem serem procurados por alguém que representasse chefia.

 

Enquanto a oposição se movimentava desse jeito, os borgistas, aparentemente, ficavam na moita, como se não tivessem nada que ver com as eleições. Piqueniques na campanha, comícios na cidade, não faziam. Os assisistas mais exaltados debochavam, dizendo que os chimangos não se reuniam pra não mostrar a sua míngua de gente. Entretanto, os subintendentes, os inspetores de quarteirão, manhosos, não paravam, a pretexto de percorrer os seus distritos.

 

 No vizindário, nas vendas, nas canchas de carreira, o assunto era a qualificação. Até parecia que nunca houvera eleições naqueles pagos.

 

Com essa expectativa tensa, chegou finalmente o dia do alistamento. Para esse fim, o juiz iria da cabeça de comarca mais próxima, mas, segundo se comentava, passaria em São João apenas dois dias. Entretanto, o Comitê Libertador estava trabalhando para ver se ele ficava ao menos mais um.

 

Por precaução, para evitar que alguém refugasse à última hora, cada chefete reuniu de véspera os seus eleitores no próprio estabelecimento. E fazia dias que os gaúchos vinham adelgaçando os cavalos para aquela troteada. Ao saírem de casa, os casados, as mulheres ficaram aflitas. Para elas, aquilo era o começo da revolução. Esperavam o pior. E as crianças, que andavam de ouvido fino, ao verem o pai, os tios e um que outro peão ou agregado ou capataz mal sabendo assinar o nome, despedirem-se daquele jeito, como quem vai para uma viagem muito longe, e montarem a cavalo, armados, imaginavam peleias. Para elas, qualificação era o mesmo que briga. E dali a pouco, assim que as mulheres voltavam à lida para espantar os temores, os cuscos se aquietavam e as vacas, mansas, o sol já descambando, vinham pastar na frente da casa, os guris, às vezes um guri solito, iam para trás do galpão, da mangueira, ou para debaixo dum umbú brincar de “qualificação”, alinhando seus piquetes de ossos no fio das coxilhas do faz-de-conta. 

 

No outro dia, o pessoal madrugou grande nas estâncias. Alguns, por doença, ou em consideração à idade, foram no auto, junto com o fazendeiro. Os restantes, montados no seu melhor flete, formando grupos de oito ou dez homens, bateram estrada a trote largo e a galope, fantasiando, como seus filhos, com piquetes de cavalaria.

 

 Acamparam em duas chácaras de correligionários na entrada da cidade. Foram acolhidos com assados gordos e sombras grandes. Com efeito, homens e cavalos, formando um todo numeroso e agitado, abrigaram-se da soalheira debaixo das ramadas refeitas recentemente, a propósito. Um festão, o tal alistamento.

 

Dali os transportavam de automóvel, para o foro, local onde se processava a qualificação. Na frente do edifício, os grupos das duas facções, por precaução espontânea, se mantinham separados, o que não impedia que se olhassem enviesados. Mas as ordens eram de não topar parada.

 

 Os trabalhos transcorreram a contento até as três horas e meia da tarde do segundo dia. Nessa hora, precisamente, não se ficou sabendo bem quem foi, um manda-chuva borgista assoprou no ouvido do juiz que eles não tinham mais gente para qualificar, enquanto que dos assisistas restavam ainda talvez uns trinta.

 

Magistrado de proclamada integridade e cidadão de firmíssimas convicções partidárias, o que se comprovava pelo eriçar dos bigodes e das sobrancelhas cada vez que se sentava na sua frente, para garatujar o nome, um assisista de lenço encarnado no pescoço, o juiz não teve dúvidas. Imediatamente suspendeu a audiência, retirando-se para uma dependência dos fundos do prédio.

 

Num acesso de indignação patriótica, o dr. Azambuja, médico e líder oposicionista, ali mesmo, dentro do foro, explodiu:

 

 — Viva a liberdade! Abaixo a ditadura!

 

O brado ecoou como um sacalão de rédeas no queixo dos governistas. E em seguida o dr. Magalhães arrebatou de cima da mesa a papelada pertencente ao seu eleitorado e, baixo e empinado, se endereçou à saída para desmanchar a confusão sobrevinda. Seguiram—no de perto o coronel Quinca, o coronel Palma, o dr. Azambuja, vários outros correligionários que estavam ali ajudando e mais os eleitores que se encontravam na sala aguardando a vez de assinar o requerimento na frente do juiz.

 

 — Qu’os pariram! — gritou o coronel Palma, cortante, da soleira da porta, ao defrontar-se com os companheiros que se amontoavam na calçada, num começo de tumulto.

 

 O rebuliço estava formado. Espumando de raiva, os gaúchos queriam invadir o fôro, linchar o juiz, botar fogo naquela joça. Mas como os chefes se encaminharam para o meio da rua, os demais foram atrás. O dr. Magalhães de garrão duro, ponteava, com a papelada debaixo do braço. O dr. Azambuja bufava, furioso, e só deixava de bufar e espumar para bradar vivas e morras tremendos. O coronel Quinca, faceiro até nesses momentos, fuzilava para os lados olhares caudilhescos, de comando, e mais de uma vez repetiu:

 

 - Pra mim, como que isto já estava preparado!

 

 O dr. Ubatuba, de preto, como sempre, alto, solene, segurando firme a bengala, ruminava elevados pensamentos reinvindicatórios. Entretanto, refletia, o mais necessário na hora seria encontrar uma saída para aquele nó. Não pelos adversários. mas pelos companheiros de campanha que podiam tomar o incidente como frouxidão deles, os chefes. E a solução, subentendia-se estava na sua cabeça, nalgum lugar, cérebro que era da oposição sanjuanina, dizia-se.

 

A notícia do acontecido espalhou-se num relâmpago. São João inteiro estremeceu.

 

A pé, pelo meio da rua, semblantes carrancudos, o grupo, umas cinqüenta pessoas, subia a ladeira pedregosa, acaudilhado pelos chefes. E vanguardeando, a uma distância de dez metros do bolo, mais ou menos, destacavam-se três cavaleiros, os únicos que haviam recusado condução para ir da chácara ao foro. Não, dos seus cavalos, ninguém os apeava. Bem aperados, ostensivamente armados, montavam pingaços: um zino estrela, um tostado e um alazão. Não lhes faltava nada: revolver, adaga, pala, mala de poncho na garupa, boleadeiras, laço nos tentos, cola atada. parece que estavam ali de encomenda, pra aquilo, à espera.

 

 Portas, janelas, calçadas, apinharam-se de mulherio e de criançada. Assisistas, que estavam trabalhando largaram suas ocupações e foram incorporar-se aos companheiros, para o que desse e viesse. Guris afoitos queriam acompanhar os pais. Uns, as mães não deixavam; outros, por cuidados pelo marido ou por amor ao lenço vermelho, elas mesmo mandavam:

 

— Vai, rapaz, acompanha o teu pai!

 

 Outras instigavam os seus nomes, xingavam os chimangos. E todo o mundo se perguntava o que iria acontecer.

 

 A maioria não tinha idéia do destino daquela passeata arrogante. Seguiam os chefes, bastava. Havia índio se danando de gana, topando tudo. Alguns acreditavam que aquilo fosse o começo da revolução e já se viam de novo, na manhã seguinte, no topo das coxilhas. Sim, porque com aquela gente só a bala. E também alguns especulavam, sem dizer nada:

 

— Aquilo não teria sido pichotada dos cabeças?

 

Chegaram à esquina da praça e enveredaram pela avenida que cortava em diagonal. Tempo bom, sem vento, sem nuvens. Os ramos dos gigantescos eucaliptos que quadravam a praça nem balançavam. E davam muita sombra.

 

Os três cavaleiros seguiram a trote para dobrar a esquina e encontrar os outros na extremidade oposta. Passaram obrigatoriamente pela frente da cadeia. Foi nesse lance que a situação se enfeiou de verdade. A companhia da Brigada Militar, ali aquartelada, correu e estendeu linha na calçada, embalando armas, sob a voz de comando do capitão Machado, velhaco e bandido, na opinião dos oposicionistas. Os três gaúchos, campeiraços, não se amedrontaram. Mostraram-se até mais guapos diante do imprevisto, tesos como estátuas no lombo dos pingos, as pernas esticadas nos estribos como em dia de carreira, a aba larga do chapéu levantada.

 

— Estropiados! — destratou um deles, encarando de frente os soldados.

 

No meio da praça, recrudesceram os vivas e morras, mais morras agora, desde que retiniu o estrépito das armas inimigas. O coronel Palma assumiu o comando da retaguarda, enquanto que o coronel Quinca, mais ligeiro, cuidava dos flancos.

 

Em volta da praça, olhos cheios de espanto os seguiam, na certeza do morticínio iminente.

 

 O dr. Ubatuba já dera a palavra de ordem. Reunir-se-iam na redação do órgão oposicionista, “Liberdade”. O diretor do jornal, o poeta Alfeu Carvalho, redigiria um manifesto enérgico contra a velhacaria do juiz. Todos o assinariam. Também telegrafariam para as autoridades estaduais, embora tivessem consciência da inutilidade de tais apelos. Mas, naquele transe, se impunha fazer qualquer coisa.

 

 O cortejo agarrou pela rua principal afora, os três cavaleiros na frente, o dr. Magalhães carregando a papelada. Pelo sombrio dos rostos, parecia um enterro que passava. E o defunto seria aquele maço de papéis.

 

 Quando chegaram ao jornal, agora já uma pequena multidão, o povo esperava discursos. Por isso foi uma decepção quando os oradores não apareceram à janela. Os vivas e morras espaçavam. A palavra “manifesto” principou a circular, meio cochichada, meio enigmática. O pessoal da campanha não sabendo bem de que se tratava, aguardava, respeitoso. Apenas tinham certeza que era contra o governo.


 

Caía a tarde e o tal de manifesto, nada. Os gaúchos foram cansando, enjoando, escorando-se nas paredes, já com vontade de voltar para os seus ranchos. O coronel Palma, com sua inquebrantável fibra partidária, não arredava o pé do meio da gauchada, tendo uma palavra de coragem para cada um e, com os que serviram com ele na revolução, evocando episódios de valentia, de lealdade e certas passagens impagáveis, que sempre as há, mesmo na guerra. Por isso, de quando em quando, estouravam risadas, aqui e ali, de sacudir os ombros. Atilado e sóbrio, o caudilho sabia o modo de animar a sua gente de sentimentos fortes.

 

Já o coronel Quinca era de outro feitio. Homem mais da cidade, gostando de rodas no clube, de bailes, de namoricos, surpreendera meio mundo com o desprendimento de suas atitudes e de suas bravuras durante a campanha de 23. Ferido na batalha do Ibirapuitã, no rosto, exibia a sua cicatriz, que não ficara feia, como quem conduz um estandarte, com altivez. mas não era homem de se misturar muito com o povo. Assim, conservava-se na sala da redação, só se mostrando esporadicamente, na porta ou numa janela, e sorria, abanava, convencido de que bastava o bafo da sua importância para aquecer o peito da gauchada.

 

 Os doutores, Magalhães, Azambuja e Ubatuba, sumiram-se. Estavam no gabinete do Alfeu Carvalho, uma pecinha de fundos, mobiliada com uma mesa de trabalho, rústica, duas poltronas e um sofá de molas vencidas. Natural de São João, de família humilde, aos vinte anos saudara Olavo Bilac, em Livramento, com um soneto que o príncipe dos poetas disse que assinaria, ressalvada a intenção laudatória à sua pessoa. Mudara-se depois para São Paulo, onde começara a destacar-se nas letras, quando, vindo ao Rio Grande, o supreendera a revolução de 23. E ali estava agora, ar absorto, de pena erguida, enquanto o dr. Ubatuba, de mãos nos bolsos, passeava de um lado para outro trabalhando uma idéia, cuja forma pertenceria ao poeta. Ao dr. Azambuja, ainda transfigurado de indignação, só ocorriam palavras de violência. Quanto ao dr. Magalhães, raposa velha, atreito a trapaças de todo gênero, vasculhava furos jurídicos para aquele embrulho.

 

 Lá fora, aguardando com os demais companheiros, àquela altura já não sabiam bem o que, os três cavaleiros, cujas estampas épicas emprestaram uma dignidade antiga às rua de São João, estavam apeados na beira da calçada, de pé, os cavalos pela rédea e secos por um chimarrão. Perto deles, dois cidadãos, um gerente de Banco e um farmacêutico, assisistas entusiastas, conversavam sobre o fato.

 

 — O Alfeu deve estar caprichando. Não vou lá para não estorvar. Também, não fui chamado. Mas, palavra que tinha vontade de vê-lo escrevendo, neste momento — dizia o farmacêutico num tom que revelava intimidade com o poeta e com as letras, e também um certo despeito.

 

 — Tomara que não empole muito — atalhou o gerente, meio esfriando o outro —, senão esse pessoal todo vai ficar devendo. Por que seria que não falaram?

 

— Por causa do Dr. Azambuja, que estava possesso — informou o farmacêutico. Mas não te afoba, que o Alfeu, quando quer, sabe escrever pára o povo. Num momento destes, — insistiu o gerente — a gente precisava era de Fanfa Ribas.

 

 — Pucha, — cedeu o farmacêutico — lascar um manifesto no estilo daquele artigo “A vida e a morte das espadas!” Te lembras?

 

 — Mas claro, se sabia de cor. E ainda recordo muitos trechos.

 

 — Recortaste?

 

 — Aquele e todos os outros — respondeu o gerente, exaltado.

 

 - É, — entregava-se cada vez mais o farmacêutico — o Alfeu é um poeta parnasiano que está no jornalismo por acaso. As circunstâncias o obrigaram. O seu lugar não é aqui.

— Não há dúvidas, — assentia o gerente de Banco — o Alfeu é um rapaz duma cultura literária invejável, dum talento soberbo, mas como jornalista político... Bem, é como tu dizes, ele é mesmo um poeta parnasiano.

 

E os três gaúchos, quietos, pitando e ouvindo. A conversa dos dois entendidos continuava cerrada. E a cada instante lá vinha o “parnasiano” em cena. De cada vez, os gaúchos se entreolhavam. No íntimo, pensavam que aqueles dois estavam falando mal do companheiro. Afinal, não se contendo mais, um deles interveio:

 

 — Os srs. podiam explicá melhor pra gente que cousa é essa?

 

 — Que cousa? — perguntaram os dois, quase ao mesmo tempo.

 

 — Essa de “parnasiano”.

 

 — Bem, parnasiano é um poeta. Claro, nem todos os poetas são parnasianos — tentou esclarecer o farmacêutico, um tanto atrapalhado com a pergunta inesperada.

 

 — Fiquei na mesma, sim, senhor, mas como o sr. é doutor, parnasiano deve ser parnasiano mesmo.

 

 O gaúcho, insatisfeito, desconfiadão, tirou a adaga e começou a picar outro criolo. Foi nessa hora que apareceu na janela o dr. Magalhães, de manifesto em punho.

 

 Correu uma animação na assistência, já esfalfada da espera. O dr. Magalhães se esforçou, gastou a garganta, cantou nos períodos redondos, mas o efeito foi mixe. Apenas o acompanharam com algum entusiasmo nos vivas finais.

 

Dispersou-se o povo. Os da cidade, ainda formando grupinhos pelas esquinas, sem pressa. Os da campanha rumaram logo para os pagos, com cara de poucos amigos, amolados com a maçada, sentindo um peso de logro no peito. Afinal, todo aquele rebuliço, pra quê?


— Paga? Não paga! — e Virgílio sacudiu a cabeça.

 

 Subiam o repecho, do outro lado da sanga, fora da cidade. Em seguida a vista se alargou, quando logo ali, uma quadra mais, assomaram o topo da coxilha. Começava a ventar. O do cavalo zaino se atravessou nos arreios para indagar o que tinham achado do tal manifesto. O do alazão, reportando-se à conversa do gerente de Banco com o farmacêutico, pulou, voluntário, meio por fanfarronada, meio por troça:

 

 - Por mim, foi um manifesto parnasiano.

 

 — Te explica, chê, deixa de bobagem! — saltou um, decidido, falando alto contra o vento.

 

 — Vocês querem saber o que é parnasiano? Pois é uma cousa assim, no meu mal entendido, como pomadista.

 

 — Ah, já sei, — interveio o Viirgílio Nunes, sempre resumido no falar — assim como o coronel Quinca.

 

 Alegraram-se. E logo um dos da ponta, alteando-se nos estribos, sacudiu o pala e convidou:

 

 — Vamo galopeá, muchachada!

 

 E galopearam contra um pôr-do-sol parnasianíssimo.

 

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In: A Entrevista ( contos). Sulina. 1968, p. 101-112. (esgotado)