Velhos sem velhice - Maria Helena Martins |
Além da Letra |
Velhos sem velhice
Chego à Galeria Marta Traba, no Memorial da América Latina (SAO), dia 23 de outubro últmo, para a vernissage da expo Retratos do Afeto. Logo tomo conhecimento de que essa exposição está inserida num projeto: Jornada da Longevidade. Agrada-me a escolha dessa longevidade - referência aos idosos sem lhes grudar epítetos condescendentes e falsos como Melhor idade. Vou sendo informada pela coordenadora do projeto, Sra. Alice Carta, e pelas curadoras Juliana Monnachesi e Denise Schnyder. Entre os propósitos do projeto está o de alcançar um público amplo - não necessariamente só de velhos -, mas de pessoas não frequentadoras de exposições, teatro, cinema, balé, literatura, também artesanato, circo, baile, tudo gratuito. Por meio de seu contato direto com obras e autores, com os quais se misturam efetivamente, são incentivados a estabelecer relações significativas do que assistem e participam com suas próprias experiências, suas fantasias, suas criações. Isso seria o mais importante do projeto: não se trata de permissão, consentimento, mas de intenção deliberada de conquistar esse público para manifestações artísticas e culturais, sendo os artistas convidados incentivados a acolher o que essas pessoas trazem de sua trajetória de vida, buscando diálogos e co-participação do público nas criações. Com tais informações fui introduzida à exposição Retratos do Afeto - um dos eventos do projeto em que fotógrafos renomados são convidados a homenagear seus queridos, em especial, idosos. De pronto percebo-me tocada pelo título da exposição. Imagino os artistas levados a fazer os "retratos" com a alma leve. Num processo de acolhimento e carinho. Memória e emoção. Assim vi a exposição, admirando a maioria das obras. Mas, independente de minha amizade pela modelo e seu autor, diante da fotografia Mamma, de Paulo D'Alessandro, percebo que o artista apresenta um retrato efetivo de afeto, de cumplicidade amorosa entre autor e modelo, filho e mãe. Á medida em que percorro as tantas obras - umas mais tocantes que outras, mas todas significativas -, reforça-se meu feeling de que a mostra de D'Alessandro parece mesmo atingir em cheio o objetivo da exposição. Mamma, de Paulo D'Alessandro O olhar de cumplicidade respeitosa do autor se cruza com algo de maroto, divertido no olhar da Mamma. Modelo se portando como modelo e fazendo a própria metalinguagem da situação. Ao me fixar nas fotos de Barcelona, percebo que o fotógrafo também expõe, nada de tentar ocultar-se para revelar um instante. Ele de certa forma parece querer compartilhar o momento com essas figuras despojadas e contentes com a vida. Aí se impõe um diferencial que aos pouco se configura numa constatação: eu nunca vira criaturas velhas sem velhice como essas que se apresentam. Nem eu nem talvez muitas das pessoas que estavam também apreciando a exposição. Em nossa sociedade o velho e a velhice são estigmatizados. Não se lhes dá direito de serem livres, leves e soltos - sob pena de estarmos cedendo às sandices dessa idade ... Daí a Mamma e as figuras de Barcelona surpreenderem. E, de imediato, cativarem o espectador. Não preciso criar eufemismos para identificar as figuras de Barcelona. Os eufemismos são corolários dos estigmas. E eles não têm lugar nas imagens que D'Alessandro nos apresenta. Ao contrário, elas estão lá a desafiar o olhar preconceituoso de quem vê a velhice e não os velhos satisfeitos, na deles. Inevitavelmente, lembro Cyro Martins, ao olhar fotos de velhos num asilo ( ele tinha, então, mais de 70 anos, mas só se considerou velho quando já doente e próximo da morte, aos 87): O que mais impressiona nessa meia dúzia de fotografias de velhos num asilo, desde o primeiro vistaço, é o tédio da repetição das horas, iguais, espichadas, destilando morrinha, prostração, fastio. ( veja as fotos e leia o texto completo)
Com sua generosidade de humanista, Cyro Martins não tem repulsa, nem se amargura diante dessa velhice que abate os velhos de um asilo. Apenas lamenta que seja esse o fim de muitas pessoas, a maioria? Bem diferentes dele que, sem pejo e sem culpa, revela em entrevista já aos 80 anos: "ainda estou em obras". Uma boutade, mas bem fiel à realidade. Quisera eu - e muitos de gerações mais novas - pensar, agir assim e declarar algo semelhante.
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