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Autor Premiado no Concurso Literário da ABP(2014) -Fláviio Shansis E-mail

Autor Premiado no Concurso Literário da ABP (2014)



Flavio Milman Shansis

 

Flávio Shansis é  Médico pela UFCSPA, Psiquiatra pelo HCPA, Mestre em Bioquímica pela UFRGS, Professor da Residência em Psiquiatria do Hospital Psiquiátrico São Pedro, aluno dos Grupos de Criação Literária da Profa. Léa Masina.

                                                   

                                                                          ERNESTINHO

Ele está de pé, na esquina da Epitácio Cafeteira com a Melquíades, à altura do número cinquenta e oito. Veste um traje cinza escuro com riscas de giz muito discretas. A gravata bordô descansa, de modo suave, sobre a alvíssima camisa recém-passada. Sente-se impecável esse homem, e está, de fato, impecável. Olha com alguma curiosidade para os transeuntes, mas acaba sempre por fixar-se em jovens donzelas. Mas o seu olhar não transmite lascívia ou devassidão. Antes, é de arrebatamento, de quem admira o dulcíssimo sabor da juventude. Piedosa inveja. Ele sabe muito bem que, aos cinqüenta, o viço já abandonou o corpo há, pelo menos, duas décadas. Insiste, no entanto, em não cooptar com essa verdade. Ciente que é dos mandamentos da física tradicional, combate a lei da gravidade naquilo que ela apresenta de inexorável: a briga se dá através de esportes aeróbicos. Tem sido mais glorioso que vencido nessa luta; já sabe, porém, com larga antecedência, que o troféu não sossegará em suas mãos.  Ernesto Pontes é – ainda que muitos duvidem – um sujeito que sabe reconhecer seus limites.


Pois em uma dessas modorrentas tardes de um janeiro repleto de verão, Tinho – e é assim que o chamam seus bons e raros amigos – encontra-se na já referida esquina. Está mirando faces novas. Ao limpar o suor da testa com o lenço retirado do pequeno bolso superior do paletó, percebe um olhar encontrando o seu. É da cor azul, e rutilam simplicidade esses olhos. Apesar de serem atributos de alguém no frescor da idade, essas esferas marítimas são, de fato, predicados não de uma moçoila, mas de um rapazote que conta apenas dezessete primaveras. Ernestinho, a princípio, desvaloriza a mirada,  atendo-se a uma saia mais colorida ou a uma blusa mais voluptuosa. Mas, dada a insistência do rapaz, acaba por retornar sua vigilância a esses teimosos apelos juvenis. Só então percebe a sutileza da mensagem: trata-se de um pedido. Não tem ciência ainda do significado, nem da extensão da súplica, mas, sem dúvida, é disso que se trata. Ao olhar, segue-se um sorriso.


 O moço agora o encara de forma acintosa, mas polida. Faz menção de aproximar-se. Por uma dessas vias da boa educação, o menino como que solicita ir ao seu encontro. Ernesto, a princípio, hesita. Por não saber das motivações desse pedido, nem da personalidade do suplicante, permanece, por cerca de um quarto de minuto, paralisado, à espera de uma resposta que não lhe vem à mente. Que perigo essa garotice, quase infantil, traria nas pupilas? Não obtendo réplica à sua própria indagação, decide ele mesmo por se aproximar do infante de louros e encaracolados cabelos. Esse mantém-se sorrindo e a solicitar contato. Tinho, de maneira reservada, mas gentil, lhe diz:

- Pois não?

- Desculpe, cavalheiro, mas não pude deixar de perceber.


Essa frase curta e enviesada, aberta em significados, reverbera no córtice de Ernestinho. Não pôde deixar de perceber o quê? Que é calvo? Que segue o andar de meninas na flor da idade pelas calçadas dessa mal cheirosa urbe? Que assume a posição de um sério e correto pretor durante o dia, para à noite se envolver em pensamentos libidinosos, relembrando suas damas? Ele não poderia saber disso. Ninguém desconfiaria.


- Impossível deixar de perceber o seu alinho – segue o rapaz -, a forma tão correta e apurada de suas vestes, nem o asseio com que, de longe, já se apreende e se faz intuir a decência de seu caráter. Pois tamanha elegância só pode ser proporcional às mais altas maneiras.


- Não estaria tão certo disso, meu sagaz desconhecido. Desde cedo se sabe que, sob a melhor das aparências, pode se esconder até mesmo aquele Conde que atende por Drácula.


- Ora, meu senhor, não percebi nem dentes tão afiados, nem aquele olhar rútilo e colorado em Vossa Senhoria - assevera entre a gentileza e o sarcasmo.


- Por certo, experiências com esse tipo de estranhas criaturas deves ter para falar com tamanha desenvoltura acerca de meus dotes físicos, diz Tinho , sem muita convicção em cada uma de suas palavras e oportunizando-se mais tempo para melhor entender o que se passa.


- Meu senhor, até onde minha memória possa me auxiliar, em meus poucos anos de experiência, não tenho a recordação de ter avistado, nem de longe, esses instigantes seres. Mas também sei, apesar de minha limitada prática, que a vida nos coloca diante de personagens reais que podem representar até mais perigos do que alguns entes fantasmagóricos.


- Acaso não te avizinhaste de mim para tão somente descrever meu singelo vestir, ou para te pronunciar sobre tua astúcia na percepção dos indivíduos, pois não? Suponho que outros objetivos, ainda por mim desconhecidos, te favoreceram essa aproximação.


- Andava eu, senhor, por essas vias, entulhadas das gentes, entre um magazine e outro da moda, quando deparei com Vossa Senhoria e suas vestimentas tão alinhadas. Não pude, pois, deixar de servir meus olhos de tamanha retidão no bom gosto, coisa rara em nossos dias tão desagradáveis àqueles que fazem da estética um de seus deleites.


- Quer dizer que o senso estético lhe é peculiar? Andas por aí a distinguir entre o formoso e o modesto?


- Esse é, com certeza, um de meus passatempos prediletos. O que é belo e luminoso alegra o nosso viver. Furtar-nos dessa capacidade, faria de nós anjos sem asas, rosas sem perfume.


Um esteta de dezessete anos! O que teria compelido esse rapazote na direção daquilo que é pura imagem?,  pergunta-se Tinho. Isso não lhe parece consoante com tudo que sempre compreendeu ser uma juventude máscula.


- Pois não foi Enéias a prova concreta de que a beleza tornou-se humana? , interroga-lhe o menino.


- Mas nem tudo que é humano, meu nobre aspirante, é necessariamente mais digno.


- Disso ambos temos profunda consciência, não é mesmo? - diz-lhe, encarando Ernesto com ares de quem possui conhecimento sobre o que está afirmando.

Sendo tão afeito à magnitude estética do que nos cerca no mundo, sem dúvida, pensa Tinho, o rapaz originava-se de uma, entre não mais que três centenas das famílias mais abastadas dessa cidade. Tão diverso dele e de sua história.


Filho de marinheiro e de mucama, a Ernesto só o destino dos pouco afortunados estava-lhe reservado. Com mais seis bocas a comer, além das dos seus pais, Tinho sempre soube o significado do verbo repartir. Desde muito cedo, intuiu que alguma fartura só viria através de uma boa e segura profissão. Atirou-se com afinco aos estudos e, muito por mérito e pouco por sorte, alcançou seu primeiro quarto de vida já com o seu diploma nas mãos. Daí, bastou manter-se reto, ordeiro e dedicado àquilo que decidiu fazer, que o próximo passo foi iniciar a construir fortuna. De fato, suas posses hoje em dia somam algumas patacas. No entanto, o preço real, aquele que a vida cobra sempre de quem se dedica com extremismo ao seu objetivo, foi tanto maior, quanto penoso. Sentir-se só, desamparado e sem família formada, já com a perspectiva de fim de estrada, estava sendo o custo amargado por Ernesto. Daí as boas vestimentas, daí também algum comportamento um tanto gris, tristemente obscuro.


- E a consciência, meu nobre senhor – prossegue o rapaz - é o que nos permite diferenciar o que fantasiamos, o que sonhamos, do que, de fato, temos de real à nossa frente.


- Pois noto uma alma muito jovem, porém astuta e impertinente. Uma mistura desarmônica, mas que, à altura da juventude, acaba por se tornar encantadora.


Assim que pronuncia tais palavras, Ernesto enrubesce ao perceber que outros significados poderiam ser erroneamente inferidos pelo seu interlocutor.


- Pois, meu senhor, já que a mocidade tanto lhe encanta, - diz o menino abrindo um sorriso - por que não me oportuniza mais um tempo para desfrutar de sua tão honrosa companhia? Acaso não lhe agradaria sentarmos à mesa de um desses botequins vizinhos e amainarmos um pouco o intenso calor com um saboroso caldo de frutas?


Tinho sente-se perplexo com o convite feito, assim, de surpresa. Dado, portanto, o inusitado e a imprevista maneira do rapazote, assim como a já agora crescente curiosidade nascida desse contato, não resta alternativa a Ernesto a não ser aceitar a solicitação para que compartilhassem a mesa de um desses bares das cercanias. Ao que o rapaz, entre olhadas falsamente envergonhadas em direção ao chão e sorrisos de cálculos maliciosos, de súbito agradece o acolhimento do convite. No entanto, diz, para não lhe solicitar companhia em algo de teor alcoólico, pois a pouca idade não lhe permite esse desfrute. Um bom caldo de alguma fruta tropical o apetece e em muito. Faz questão, no entanto, de sublinhar a Ernesto: melhor que o refresco, será a oportunidade de compartilhar com tamanha elegância e astúcia, predicados às mãos cheias, tão opulentos em seu mais novo conhecido.


Quando se acomodam em uma mesa bem ao fundo, Ernesto solicita ao garçom alguma bebida que possa aliviar, pelo menos um pouco, a aflição que invade seu corpo. Dá-se conta de que saiu do seu posto de mirada para sentar-se com um rapazote desconhecido em um café público. Já começa a se arrepender. O adolescente, então, solicita caldo de laranja, de preferência bem gelado, e passa a comentar trivialidades. Não parece nem inquieto, nem apreensivo com a situação. Ao contrário, o espírito do jovem sugere estar a se divertir, como que embalado pelo som de uma serenata.


- As laranjas, nessa época do ano, já estão algo passadas; entretanto, apenas algumas, e não se sabe bem o porquê, conseguem ainda manter o ditoso paladar. Esse me parece um importante enigma, cavalheiro: por que, na vida, tão somente a alguns, entre tantos, é dada a fortuna da escolha? Acaso seremos eleitos por nossas capacidades inatas, ou serão, de fato, como afirmam minhas beatas tias, os desígnios do Senhor os responsáveis pelos caminhos que, apenas para os incrédulos, lhes parecem imponderáveis?


Ernesto recebe das mãos do garçom o seu conhaque e, ainda impactado tanto pela situação em que se colocou, quanto pela filosófica pergunta de seu debatedor, derrama quase que a totalidade do líquido em sua exasperada garganta. E, enquanto ainda sente o fluido queimar-lhe o esôfago, e sem poder nem mesmo dar-se um tempo para concluir o que, afinal, estava pensando sobre a pergunta, acompanha o rapaz em sua discursiva ponderação.


- Penso que essa fortuna, advinda do fato de termos sido preferidos dentre tantos, é muitas vezes imperceptível aos mais tolos. Eu, por exemplo, meu senhor, sendo filho único, tenho ciência de que sou, pelos próprios devaneios da natureza, o escolhido. E, apoderado de tais predicados, não posso abdicar dessa condição: minha mãe sempre soube regalar-me com o carinho e a afeição que essa categoria ímpar exige e pressupõe. Ser singular tem sido o meu fado.


- Meu jovem consorte, aqui, nossa perspectiva me parece um tanto avessa. Tendo sido o único a nascer do ventre daquela que tanto te venera, hás de honrar em cada segundo, de cada um de teus dias, essa prerrogativa que o destino dispôs a teu favor. Se tiveste esse privilégio de ser exclusivo, tiveste também o que, para mim, se assemelha mais a um fardo. Pois ser singular, meu amigo, acrescenta peso a essa tarefa.


- Sim, eu tento ser digno dessa tarefa! Uma empreitada que não escolhi, mas que tenho aceito de muito bom grado. Ainda - e me surpreende muito que assim o veja Vossa Senhoria – que alguns possam entendê-la como recheada de fardos. A mim, meu senhor, é antes uma honra, do que um sacrifício. Eu compreendo que o senhor esteja a me julgar a partir de pressupostos adquiridos em sua vasta experiência, seja em sua vida social, seja em seus labores. Mas rogo-lhe, por um instante, que se dispa desses conceitos já tão cimentados em seu caráter. Garanto-lhe que não me era pesaroso ser impar e exclusivo à minha bondosa progenitora.


- Era? Indaga-lhe Ernesto, surpreso com a inesperada informação. Há pouco, disse-me, em tempo presente, o quanto lutas para ser digno, de bem honrar tua genetriz.


- Tem razão, meu senhor. As palavras, muitas vezes, expõem, com traição, nossos reais sentimentos. Com certeza, usei o tempo presente denotando vida, porque a realidade, absolutamente recente, me é por demais amarga e me estimula a descrença.


Lágrimas discretas vertem do rapaz que, tentando disfarçar a correnteza de sentimentos, afasta o olhar em direção à entrada do bar.


- Assim, estás a deixar-me confuso e comovido com o que me relatas. O que, de fato, está a se passar, meu bom moço?


- Mil perdões peço a Vossa Senhoria: não pretendia importunar-lhe com minhas mazelas, muito menos em um ensejo tão agradável nessa luminosa tarde. Mas, dada a sua insistência em obter respostas e também a uma crescente afabilidade que vejo ascendendo em sua direção, preciso confessar-lhe que esse mesmo sol radioso que está a iluminar a copa das frondosas árvores ali na calçada, assim como a fazer mais doce nossas frutas, pois esse mesmo sol agora está a esquentar o telhado da santa capela onde, nesse momento, estão a velar o corpo já inerte de minha sagrada mãezinha.


- Meu Deus Misericordioso! Esse que roga por nós, que somos sempre e cada vez mais pecadores. Esse que, representado na manjedoura por um menino que somente quis trazer paz aos nossos corações, que tenha agora toda a sua infinita piedade do infante à minha frente!, diz Ernesto, quase em tom de homilia e tomado de incredulidade.


Embalado pelo som afetuoso expresso pelo seu mais novo amigo, as lágrimas, agora, já não derramam discretas no rosto do jovem, se não despejam abundantes pelas encostas de sua face.


- E o que esse bondoso Deus faz comigo nesse instante?, prossegue  Tinho, Coloca-me à frente de um pobre menino enlutado no instante mesmo de seu dolente luto. Pelo mais sagrado amor de nosso Senhor Jesus Cristo, te indago assombrado, meu rapaz: o que fazes aqui comigo, a beber refrescos gelados, nos minutos derradeiros em que ainda podes observar, mesmo que já inativo, o corpo de tua sagrada mãe?


- Às vezes, meu senhor, somos impelidos por caminhos tortuosos e não pensados, como aqueles que nos colocam, de forma inesperada, no núcleo de uma tempestade. Quando percebemos, já estamos sendo sugados pelas ondas infernais de tanto vento e, então, já não nos resta mais nada a não ser deixar-nos levar. Assim, após saber da morte de minha progenitora, e encontrando-me à deriva, com minhas velas singrando sem rumo, quis o destino que encontrasse Vossa Senhoria. Vagava, sim, meu senhor, como o errante que busca sentido para sua existência. Perguntava-me o porquê de a vida – ou quem dela se apodera – ter-me colocado nessa dilacerante situação em minha ainda tão precoce fase. Desse modo – errático, reflexivo e envolto na maior de todas as tristezas – topei com sua figura de tão nobres vestimentas. Daí, quis-me ter com vossa senhoria, quem sabe em busca de algum conforto para esse meu infeliz momento.


- Mas por que intuíste que eu, envolto em tecidos abastadamente generosos como dizes, pudesse ser aquele de quem buscas consolo?


- Se, como já disse o velho bardo, existem coisas entre o céu e a terra que nossa vã filosofia não compreende, por certo, o que me magnetizou em Vossa Senhoria foi um desses, entre tantos outros fenômenos, tão inexplicáveis como a vida e a morte.


Aturdido com aquela situação, Ernesto desiste de seguir em seu conhaque. Chama o garçom e entrega, sem pedir a conta, várias patacas, em uma soma que pagaria três ou mais despesas como aquela.


- Mas, meu senhor, nem bem nos sentamos aqui e recém iniciamos nossa conversação e já intenta terminá-la, assim, de tão repente?


- Não há como sorver algo com algum deleite e, ao mesmo tempo, não reconhecer que aquele que à minha frente está passa pelo mais terrível dos momentos a que um homem está predestinado. Por tudo isso, vamos meu rapaz: é preciso ir.


Tinho põe-se em pé. Veste novamente o paletó e tira o lenço do bolso superior para secar o suor. Não de calor, que, a essa altura, é o que menos lhe aflige. Precisa secar a transpiração nervosa que teima em arder-lhe os olhos.


O rapaz, então, levanta-se e indaga a Ernesto, entre curioso e perplexo:


- Irá vossa senhoria abandonar-me aqui, nesse lugar e nessa difícil hora, e deixar-me em minha mais profunda solidão?


- De forma alguma. Mais do que nunca, mesmo que não te conheça, mereces, nessa quadra em que te encontras, todo o meu arrimo.


Já na calçada, Tinho segura o jovem pelo braço e lhe diz:


- Coragem, meu triste rapaz! Coragem é do que vais precisar! Vamos, vamos à capela mortuária que está a não muitos passos daqui. É lá o único lugar em que deves estar. Quando ali chegarmos, entregar-te-ei àqueles entes que te são queridos e receberás deles, tenho a certeza, todo o consolo de que necessitas.


- Não há consolo algum, meu senhor – diz o moço, quase sendo empurrado por Ernesto em direção ao cemitério. Não tenho família que viva aqui na Corte. Tios e tias habitam a mais de mil léguas de distância, avós já estão todos enterrados para além da praia do Caju, e aquele que me fez filho junto a minha santa mãe não o conheci, pois ele nunca me teve como seu. Dessa forma, Vossa Senhoria não espere encontrar mais que meia dúzia, se tanto, na ocre capela. Talvez, duas ou três vizinhas e, se muito, a senhora que dividia com minha mãe as lides diárias de jogar ao mar os dejetos produzidos pelo duque e sua família, seus patrões, na casa que possuem para os lados da Quinta da Boa Vista.


- Pois, então, há mais motivos, ainda, para te unires a tão poucas criaturas. Elas precisam de ti, assim como necessitas estar ao lado delas.


O resto do caminho, pelo passo apressado e decidido de Tinho, é percorrido em pouco mais de quinze minutos. O rapaz parece ser quase que impelido por Ernesto em direção à capela e faz todo o trajeto cerca de dois passos atrás, como se estivesse receoso do que viria a encontrar. Alcançam, por fim, a edícula.


- Chegamos, meu jovem. Por fim, chegamos. Rogo-te a mais firme das coragens. Tens de ser, nessa hora, uma muralha frente às ondas de desespero que teimarão romper em ti. Por favor, entremos, por mais sombrio que isso te pareça.


- Faltam-me as pernas. Falta-me, também, essa coragem a que se refere Vossa Senhoria. Voltemos, por favor, ao nosso aprazível café, tão distinto desse melancólico ambiente.


Mais uma vez, Ernesto segura pelo braço o rapaz e avança através do portão principal do cemitério. Ao chegarem à capela mortuária, Tinho abraça o jovem como que lhe dando apoio e adentram à pequena sala. Ali está ainda mais quente que na rua e, ao calor, se junta um fétido cheiro de um corpo que já produz seu olor da morte. Duas senhoras vestidas de luto estão sentadas em um canto próximo da única janela que, entreaberta, permite a entrada de uma leve claridade. Abraçados, Tinho e o jovem dão passos em direção à esquife. O jovem treme.


- Então, essa é sua santa mãezinha! Que Deus a tenha ao seu lado para toda a eternidade, diz Ernesto enquanto cruza seu peito com o sinal da cruz.


O rapaz repete o gesto e, separando-se dos braços de Tinho, passa o observar seu mais novo amigo.


Ernesto dirige com mais atenção seus olhos àquela senhora que repousa no sono eterno à sua frente. Uma lágrima escorre do canto de seus olhos e se junta ao suor que volta a escoar de forma abundante em sua fronte. Ao secá-lo com o lenço branco, tirado de seu paletó, o rosto de Tinho torna-se lívido. O aspecto cadavérico daquela mulher não consegue ocultar a beleza que já foi dona daquele corpo, nem encobre a identidade há muito conhecida de Tinho.


Nesse instante, um calor intensíssimo invade as costas de Ernesto. Ao calor, segue-se um arrepio, logo transformado em dor lancinante. Fora apunhalado. Sente fluir-lhe o sangue vivo e ainda quente por dentro de sua alva camisa. Já tonto, segura-se ao ataúde na tentativa vã de manter-se em pé. Ainda consegue ver um leve sorriso nos lábios do rapaz, que sai correndo da capela. Aos berros, na calçada, grita a todo pulmão, entre um choro doído e uma risada estridente, para que a cidade toda o ouça:


- Matei! Matei meu pai!


São as últimas palavras que Ernestinho escuta em sua vida.

                                               

Sobre o Autor

 

Médico Psiquiatra dos mais conceituados no Brasil e no exterior, Flávio Shansis estreia na literatura com uma premiação importante: seu conto "Ernestinho" obteve o segundo lugar no concurso nacional promovido pela Associação Brasileira de Psiquiatria neste ano de 2014. Essa premiação atesta o quanto a literatura e a medicina, sobretudo a psiquiatria, podem tornar-se mutuamente férteis quando aproximadas pela competência e pelo talento.

 

Para usar uma expressão cara a Cyro Martins, Flávio escreve "no rabo das horas", o que não significa superficialidade ou diletantismo. Seus textos correspondem ao desejo de unir passado e presente, desejo que seu mestre maior, Machado de Assis, atribuiu às inquietações de Dom Casmurro. Ao reviver o passado na constituição de personagens, intriga, contexto, o escritor revitaliza o contemporâneo. O aparente paradoxo entre linguagem antiga e percepção atualizada da pessoa humana é uma das maiores qualidades dos textos de Flávio Shansis.

                                                                                                                                                                        Léa Masina