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CYRO MARTINS REVISITADO - Da nostalgia como sentimento,não como juizo  E-mail
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                        benhur


                                                                                     

                                                                                                  Benhur Bortolotto* 

 

 

As observações que eu separei para trazer a este encontro são breves e dizem respeito a um aspecto da obra de Cyro Martins que certamente merece apreciação mais cuidadosa e comprometida. Em todo caso, me pareceu ser o que há de mais importante para falar a respeito deste tópico que me foi atribuído, num convite muito gentil do nosso querido Carlos Appel.

 

Eu não conhecia A entrevista, e, incumbido de fazer algumas observações sobre o texto neste encontro acabei lendo o livro num ônibus, indo de Porto Alegre a Uruguaiana, com o pampa na janela. Nada mais adequado… porque o que pretenderei dizer é que, de certa forma, assim como nas narrativas longas, o campo reivindica seu espaço no ambiente urbano que o Cyro registra, e o faz seja pela linguagem, seja pela compleição emocional das personagens, seja por um senso histórico ou geográfico; e que estes elementos, quando se precipitam no texto, fornecem os fundamentos para sua empreitada de compreensão de nossa sociedade.

 

Entender a identidade do gaúcho e da sociedade gaúcha por meio da literatura passa, invariavelmente, pela obra do Cyro Martins. E tratar de identidade numa literatura de ambiência urbana é sempre um desafio porque as feições mais marcantes de uma cultura podem ser vistas, com mais facilidade, num ambiente livre da pasteurização ou, para soar menos refratário, da homogeneização natural que as tecnologias impõem aos centros urbanos. Quem vai aos fundões das estâncias na Fronteira Oeste vê mais peculiaridades do gaúcho do que quem toma um café debaixo da escada rolante do Iguatemi.

 

 

 

É bem verdade que às vezes temos algumas surpresas. Peço licença para contar algo que aconteceu comigo aqui perto de onde nós estamos. Há alguns anos eu estava numa fila de cinema aqui em Porto Alegre, com alguns amigos, e era uma fila longa, nós estávamos ali fazia algum tempo, conversando, e um sujeito furou a fila lá na frente. Um rapaz, que estava mais próximo de nós, franziu o cenho, olhou em volta, olhou para trás, e disse: “— Mas que tal!” Ao que um dos meus amigos, num esforço para não rir, perguntou: “— Vem cá, tchê, tu é de Uruguaiana, né? Porque falando ‘Mas que tal’ numa fila de cinema em Porto Alegre tu só pode ser de Uruguaiana…” Não era de Uruguaiana. Era de Alegrete. O que é a mesma coisa, embora nós e os alegretenses finjamos que não.

 

 

 

Mas o fato é que entre estes ambientes extremos existe distância e tempo. Há um percurso que o Cyro registrou (quando ele escreveu seus livros a cidade ainda não havia sido infestada por shopping centers) mas, enfim, há um percurso que o Cyro registrou, e neste percurso ocorrem, como é natural, transformações profundas, mas há algo que permanece como um substrato dessas transformações. Há algo no que era e que permanece no que passou a ser. Identificá-lo não é apenas retratar nossa sociedade urbana mas é também, de alguma forma, fazer justiça ao que nossa cultura campeira produziu: seja moral, estética, econômica ou politicamente.

 

Quem leu a trilogia do gaúcho a pé, sobretudo Porteira fechada, está familiarizado com duas nuances importantes da obra do Cyro Martins. Estamos falando de seus contos mas vale a declaração de que ele é um escritor de narrativas longas e isso aparece de uma maneira interessante em A entrevista, de uma maneira que, como por uma espécie de efeito colateral, dá ao livro sua coesão. Em todo caso, eu falava de duas nuances da obra do Cyro que dizem respeito ao meu tema: a primeira é justamente esta, trata-se de um autor de narrativas longas. Isso nota-se também com o auxílio da segunda delas: é um grande criador de personagens. Dizê-lo, em se tratando de um ficcionista pode parecer banal, afinal criar personagens é o trabalho do escritor (eu subscrevo aqui a noção deleuziana de que o objeto de trabalho do escritor é a personagem).

 

Mas o que o Cyro parece fazer, ao desenhar as figuras que compõem suas histórias, é uma espécie de dupla militância em relação ao panorama literário gaúcho. Se os psicanalistas gostam de apelar à fita de Moebius para ilustrar como se dá a ligação do consciente com o inconsciente, Cyro estabelece a mesma relação topográfica para a ligação de suas personagens com o mundo ou, dito de maneira precisa, de seus indivíduos com suas sociedades.

 

Defrontando-se com o heroísmo mítico do gaúcho, tal qual o temos hoje, ler Cyro Martins é encontrar o reles, o banal, o mísero. Longe da alma que é heróica por uma essência que trespassa o mundano, vemos um texto que fala por aqueles homens circunstanciados por uma economia e por um aparato social que incidem de modo decisivo sobre suas ações.

 

Se por um lado, então, ele responde ao heroísmo transcendental registrando o impacto das contingências sócio-econômicas na ação e na moralidade, por outro, ele devolve a individualidade ao tipo humano característico de seus textos. O equilíbrio não é artificial e não sei dizer de que modo se relaciona com o caráter ideológico da obra. Mas o que me parece seguro afirmar é que seu comprometimento é com o homem, e compreender seu meio, mais do que um projeto inicial, foi uma necessidade que se impôs à difícil tarefa de devolver ao homem sua verdade. Eximi-lo da glória salafrária que o gaúcho mítico reivindica (ou a qual aspira), reconstruir a dignidade que as distorções causadas pelas mudanças do mundo destruíram. Cada personagem carreia um contingente humano e isso pode ser visto como um artifício de retratação da sociedade, mas essas personagens também vivem algo de profundamente solitário e pessoal.

 

Daí certa lentidão de sua narrativa. Mesmo nos contos o leitor depara com lembranças e aflições que se desenvolvem com densidade. Por isso personagens estão sempre fazendo algo com as mãos. O tato é o sentido de contato com algo que as mantém no ambiente enquanto aos poucos se vão desvendando os mistérios de suas mentes. Uma moeda no bolso, o couro da poltrona, o tampo de madeira do balcão…

 

Existe algo de mecânico, algo de maquinal que se passa no corpo e que de repente é percebido pela personagem, não com significados além de um retorno ao mundo. Cyro sempre recorre ao tato, e dá a suas personagens essas âncoras porque a dimensão psicológica de sua narrativa é um rio e as personagens podem ser levadas a qualquer momento pela correnteza. Algumas, de fato, são: o segundo conto deste livro me toca de maneira especial. É um conto sobre a melancolia das vidas que não passam de esperas, e compreendê-lo não é tarefa fácil…

 

 

 

N’A entrevista, o campo passa despercebido em alguns contos. Insinua-se noutros, às vezes de maneira tão tênue que parece estar lá apenas para denunciar a nostalgia que torna Cyro Martins tão sensível às questões que fazem dele o escritor ao qual as sucessivas gerações recorrem para compreender a sociedade gaúcha. O intelectual, o psicanalista, sabe que a nostalgia pode ser alegre ou triste, mas a seu objeto específico não cabe valoração. A nostalgia é sentimento, não juízo. O escritor, com habilidade e empenho na própria empreitada literária, registra as transformações de nossa sociedade e encontra, com a delicadeza de seu próprio tato cuidadoso, o homem que a ancora. Ou o passado que tateamos enquanto tudo parece se dar à sua revelia. Encontra na periferia das cidades e no campo, no consultório, nas ruas, e em algo que lhe parece muito precioso, suas memórias de infância. Escreve sem certos ou errados, mas para fazer justiça.

 

 

 

Eram essas as minhas observações para este encontro. Muito obrigado pela presença e pela atenção.

 

 [texto lido no lançamento de A entrevista, de Cyro Martins, no Santander Cultural, Porto Alegre, rs, dia 8 de agosto de 2015] —

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 * Benhur Bortolotto é Jornalista e Escritor