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O IEL e a formação do conceito Literatura do Rio Grande do Sul E-mail
Artigo de Fundo

 

Memórias dos anos 70

 

Léa Masina *


O conceito do que hoje se reconhece como “Literatura do Rio Grande do Sul” surgiu, em seus contornos atuais, em meados dos anos setenta do século XX, pela ação de pessoas que, avessas a uma visão redutora da literatura regionalista limitada a seu recorte espacial e histórico,  pretendiam escutar outras vozes urbanas e criar condições materiais para que essas  se manifestassem. A literatura gaúcha, até então, assemelhava-se a dos países platinos  pela caracterização do espaço e da memória histórica e hegemônica, sempre em diálogo intertextual com literaturas européias e platinas. Havia, nisso, a questão de preservar as chamadas origens, pedra de toque que a Sociologia Literária começava a apontar como fato a ser examinado pela crítica.

Na literatura gaúcha, até meados de vinte, a temática dominante decorria, quase sempre, da descrição do espaço e dos fazeres da campanha ou, quando muito, da apreensão de movimentos históricos de um ponto de vista não raro acrítico. Esse quadro transformou-se, inicialmente, em 1930, com escritores mais voltados para a avaliação da realidade social,  beneficiados pelo surgimento de editoras, e que configuraram o que se designou como “romance de 30”. Seus principais representantes foram, dentre outros, Dyonélio Machado,

 

Erico Verissimo, Pedro Wayne, Ivan Pedro de Martins , Cyro Martins, Reinaldo Moura e  Aureliano de Figueredo Pinto.

 Mas o desenho de um projeto moderno e coeso, que propiciasse a multiplicação e a expressão de diferentes temas originados pela urbanização e diversificação cultural  resultou, a meu ver,  em grande parte,  do esforço de diversos intelectuais e do trabalho aglutinador realizado pelo Instituto Estadual do Livro sob a direção de Lygia Averbuck.

Por esse tempo, o Professor Guilhermino Cesar, recém chegado de Portugal, reassumiu a cátedra de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, resistindo aos modismos da época, como a importação de  teorias formalistas e estruturalistas, não raro em desacordo com as necessidades e os interesses locais. Essas teorias transplantadas, independente de sua importância na formação dos intelectuais e estudiosos das Letras, eram convenientes com relação ao momento político de então, com a censura das obras imposta pelo regime militar. Formalistas e estruturalistas em geral preconizavam o estudo do texto através da análise minuciosa de seus elementos formais, afastando a possibilidade de sua inserção num contexto histórico, sociológico e político.  A censura aos livros e aos escritores, embora repudiada por todos, era um fato que causava revolta e temor. Eram os tempos da ditadura.

Guilhermino Cesar publicara, em 1956, a “História da Literatura do Rio Grande do Sul”, pesquisa de fontes de largo espectro, cujo segundo volume não chegou a editar. O livro inventaria a formação da literatura no Estado. Ao retornar de Coimbra, onde recebeu o título de Doutor Honoris Causa por aquela Universidade, publicou a “História do Rio Grande do Sul: período colonial” (1970), inscrevendo essas questões no âmbito da literatura nacional. Como se lê na coletânea de ensaios “Rio Grande: terra e povo”, publicada pela Globo, e também nas obras individuais de Moysés Vellinho, Carlos Dante de Moraes, Manoelito D´Ornellas e nos demais ensaístas e historiadores do período,  algumas dicotomias com relação à literatura e à cultura local enraizaram-se a partir dessa época. Dentre elas, a questão do regional versus o nacional na literatura,  e o influxo lusitano versus o platino. Guilhermino pensou essas questões e deu-lhes visibilidade, superando preconceitos e orientando teses que mapeavam a cultura através do estudo de seus escritores mais representativos.

Lygia Averbuck, então professora vinculada a centros de pesquisa existentes na Secretaria de Educação e Cultura do Estado, fora aluna de Guilhermino e ambos frequentavam o grupo de intelectuais ligados a Erico Verissimo, Mauricio Rosemblatt e à Livraria do Globo. Por essa época, Lygia assumiu a direção do Instituto Estadual do Livro a convite da Professora Antonieta Barone.

Lygia conhecia a obra de Antonio Candido, com certeza o maior crítico literário do Brasil. Em sua “Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos” (1959), Candido trouxe a noção de sistema literário para o entendimento da literatura nacional. Para ele, o “fato literário” resulta de uma tríade: a existência de um autor brasileiro que escreva um livro no Brasil para ser lido por brasileiros. Autor, obra e público concretizam o fato literário nacional, “constructo” dominante herdado do século XIX.  Sobre essa tríade, Lygia concebeu o trabalho que passou a desenvolver no Instituto Estadual do Livro, modernizando-o.  Para isso, atraiu ao IEL todos os escritores seus contemporâneos, ficcionistas, poetas, críticos, jornalistas. Estimulou-os a lhes entregar seus textos, conversou com eles, intermediou edições.

Esses jovens escritores, em sua maioria, eram estreantes em uma literatura de poucos nomes, cuja presença no Brasil era excepcional e lida com as marcas da excentricidade.  Aproximando-os de novos editores que também surgiam, Lygia colocou em circulação suas obras. Contava, para isso, com o apoio de intelectuais de peso, não apenas locais, como também do Rio de Janeiro e de São Paulo. Dentre esses, o ensaísta, crítico e poeta Augusto Meyer, que dirigia o Instituto Nacional do Livro, o poeta e embaixador Raul Bopp, cuja obra foi objeto de sua dissertação de Mestrado; o poeta Walmir Ayala, radicado no Rio, além dos escritores mais jovens, com os quais mantinha permanente contato.

O regime de co-edição instituído no IEL possibilitava também que as  novas editoras se fortalecessem, eis que lhes eram encaminhados livros selecionados e revisados, prontos para a edição. Os originais recebiam pareceres de escritores que partilhavam o trabalho de constituir um novo “conceito” para a literatura gaúcha. Sem negar seus pertencimentos, esta, aos poucos, se transformava, acolhendo obras renovadoras da tradição e, mesmo, contrárias a ela, lidas como manifestações de novas tendências. Nessas vertentes, coube ao IEL publicar as primeiras obras de quase todos os escritores conhecidos do público leitor como “escritores gaúchos”. E envolvê-los em seus projetos de divulgação da literatura local e de formação do hábito de leitura. A lista é longa e, com certeza, faltarão muitos: Caio Fernando Abreu, Mario Quintana, Lara de Lemos, Luis de Miranda. Heitor Saldanha, Cesar Pereira, Carlos Legendre, Carlos Nejar, Ivo Bender, Nei Duclós, Ivete Brandalise, Carlos Carvalho, Maria Dinorah, Tarso Genro, Sergio Faraco, Luis Antonio de Assis Brasil, Dilan Camargo, José Eduardo Degrazia, Arnaldo Campos, Sergio da Costa Franco, Donaldo Schuler, Antonio Carlos Resende, Paulo Roberto do Carmo,  Laury Maciel, Moacyr Scliar, Tania Faillace, Lya Luft, Patrícia Bins, ao mesmo tempo em que se reeditavam obras esgotadas ou de valor histórico e documental. Ao longo do tempo, essas publicações prosseguiram e muitos dos nossos melhores escritores tiveram seus primeiros livros acolhidos e co-editados pelo IEL.

 Em resumo, o IEL investia no autor, prestigiando o antigo e o novo; na  obra, cuja publicação possibilitava; e no público, criando diversos programas em que o livro era disponibilizado em escolas estaduais, em eventos, ciclos de palestras e concursos literários.

Além dos intelectuais que frequentavam e prestigiavam as atividades da casa, outros nela trabalhavam como assessores da direção, dentre os quais Aníbal Barros Cassal, Ivo Bender e Antonio Hohlfeldt. É preciso salientar o apoio constante dos editores, em especial de Carlos Jorge Appel, professor de literatura e diretor da Editora Movimento, que, anos mais tarde, veio a ocupar o cargo de Secretário de Cultura do Estado. Muitos, desde os primeiros momentos, ou ao longo do tempo, aderiam às propostas de Lygia, como Roque Jacobi, diretor da Editora Mercado Aberto, Paulo Flávio Ledur, da AGE,  e conhecidos livreiros e professores. Todos abençoados pelo patriarca e Presidente do Conselho Estadual de Cultura, Maurício Rosemblatt, um dos principais articuladores da Feira do Livro da cidade.

Foi no reduto intelectual do IEL que comecei a ler profissionalmente e a revisar textos de autores novos. Selecionávamos o que seria publicado e solicitávamos parecer externo, quando necessitávamos maior isenção e rigor.  Revisávamos e multiplicávamos textos e os encaminhávamos às escolas do Estado, através das delegacias de educação. Treinávamos os colegas professores das escolas para o preparo de encontros com escritores, a organização de feiras de livro e a própria tarefa de análise a abordagem literária dos textos. Viajávamos pelo interior do Estado, visitando escolas, trabalhando juntos na criação do hábito da leitura e na inscrição de um projeto que até hoje se mantém sob o nome de “Autor presente”. O objetivo era aproximar o escritor de seus leitores, desmitificá-lo, possibilitar um diálogo criativo. E aproveitar a relativa “impunidade” e a coragem dos escritores que, não sendo funcionários públicos, possuíam menores chances de responderem a comissões de inquérito tão comuns à época.

 

Um dos escritores mais acolhido e respeitado era o Dr. Cyro Martins, um entusiasta incentivador de ideias. Era criativo, inteligente e generoso. Frequentava o IEL para orientar e conversar. Admirava-se sua vitalidade e o entusiasmo com que participava dos programas de leitura, principalmente dos “Encontros de escritores com estudantes de segundo grau”, um projeto pioneiro que levava escritores às escolas para conversar com os jovens leitores. Por seus resultados no incentivo à formação do hábito da leitura, esse projeto serviu de modelo a outros que se repetem no estado e fora dele.

.

Lygia Averbuck era bastante politizada. E com tantas cabeças pensantes frequentando a casa, aproveitava-se esse potencial para qualificar e assegurar nosso trabalho. Os escritores levavam a sério o compromisso social de dar voz a quem não tinha, tanto em sua literatura como em depoimentos nas escolas às quais era impingido o mito do milagre brasileiro. O esporte, como sempre, estava  em alta: a Copa do Mundo era nossa, Eder Jofre, o “Galinho de Ouro”, brilhava no Box, Maria Ester Bueno vencia no Tênis.  Um país de campeões. O erro era a dissidência: Brasil, ame-o ou deixe-o.

 

Surpreendentemente, Cyro Martins, era aceito e respeitado por todos, embora sua obra fosse pura denúncia social. Ninguém se atrevia a cancelar seus encontros, o Dops parecia ignorá-lo. Pessoas como ele, Paulo Gastal, Guilhermino Cesar, Maurício Rosemblatt, Henry Satkamp e Paulo Xavier davam respaldo político e legitimavam as atividades que promovíamos e realizávamos. Cyro era um homem de esquerda. Não sei se costumava comparecer a reuniões do Partido Comunista. Mas nunca o comentou, era muito discreto.

 

Conheci detalhes sobre a época da militância intelectual e política de Cyro e de muitos outros escritores em uma reunião em casa de Carlos e Myrna Appel. O convidado especial era Ivan Pedro de Martins, e o motivo, a publicação de um livro que Myrna e eu organizamos, nos anos noventa, para a Editora da UFRGS, com depoimentos de escritores e artistas. A geração de 30 no Rio Grande do Sul: literatura e artes plásticas. E foi o historiador Décio Freitas que nos instruiu a respeito daquela época turbulenta.  Eram depoimentos de homens inteligentíssimos que conheciam, como poucos, os meandros da vida política brasileira.

 

Lygia foi afastada por diversas vezes da direção do IEL, sempre por motivos políticos.  Mas a equipe que formara nunca abandonou suas ideias e projetos.  Chegamos a ter interventores na direção e precisamos conviver com eles. Mas o IEL manteve-se por muito tempo como a casa do escritor, onde se podia ler, respirar e falar, uma espécie de oásis no asfixiado meio cultural da cidade.

 

Nos encontros com estudantes,  em palestras e outros eventos, os escritores depunham sobre a realidade, respondiam a perguntas. Com isso, quando menos se esperava, havia um funcionário novo infiltrado no IEL pelo governo. E, de repente, Lygia foi afastada e substituída e seu grupo dissolvido. O IEL só veio a ser recomposto anos depois, pela atuação agregadora do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, que organizou nova equipe e recuperou parte da biblioteca que se dispersara em outras instituições.

 

Durante o período da ditadura militar, ocorreu uma situação paradoxal: houve crescimento e desenvolvimento visíveis na cultura do Rio Grande do Sul.  Em suma, o  IEl recebia verbas dignas para investir no trabalho: conseguiu criar um Conselho Editorial e tocar adiante várias edições de livros e revistas, lançar obras de autores novos, relançar os antigos, criar prêmios literários e realizar eventos com convidados nacionais. Ainda publicou uma coleção de fascículos, Autores gaúchos, contendo vida e obra dos principais escritores sul-rio-grandenses vivos. E outra coleção, que ironicamente apelidamos Finados Ilustres. Assim, foi-se materializando o conceito da literatura sul-rio-grandense que convivia com o regionalismo mas não se limitava a temáticas localistas. Junto a isso, criou-se também o mito da auto-suficiência: no Rio Grande, se escreve, publica e lê, ali o círculo se fecha. Felizmente, sabe-se hoje que isso nunca foi assim.

 

 De qualquer modo, a memória individual desse período, que minha escrita agora coletiviza, registra o prazer de um convívio que nunca se repetiu. O IEL e todos nós perdemos Lygia muito cedo e o trabalho continuou, tendo a frente escritores e professores de alto nível intelectual. Foi em um desses momentos que, com o apoio de Guilhermino Cesar, Porto Alegre recebeu no IEL escritores de renome nacional, como Murilo Rubião, J. J. Veiga Clarice Lispector, Deonísio da Silva, Flávio José Cardoso, Fábio Lucas e Ligia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Affonso Romano de Sant´Anna  e outros tantos.  Mais tarde, na esteira de Josué Guimarães, o IEL  apoiou também as Jornadas de Passo Fundo, que inseriram a cidade e o estado  no mapa cultural do Brasil.

 

Trabalhava no IEL quando publiquei meus primeiros textos críticos no Caderno de Sábado, do Correio do Povo, organizado por P.F. Gastal. Enviei o texto a ele sem grandes esperanças de publicação. E foi estranho quando vi o artigo por acaso, enquanto comprava verduras no Mercado Público. Nas páginas do Correio  estavam enrolados os dois pés de alface que comprara.  Logo, Cyro  Martins me telefonou, a franqueza na voz bonachona : Olha, li teu artigo, saiu hoje no Correio do Povo, gostei muito. Comentou o texto, um artigo de ocasião, sobre um romance de Jorge Amado. Eu quero te falar uma coisa. - disse.  Léa Sílvia Rebouças dos Santos Masina é um nome muito comprido, ninguém vai te conhecer. Encurta para Léa Masina e assume teu nome literário.

 

Devo a ele essa parte de minha identidade.  E ao IEL, à Lygia, ao querido Ivo Bender, ao Assis Brasil e também,  de modo especial, a amigos e colegas daqueles dias,  os rumos que tomei em minha profissão. Não restam dúvidas de que fui privilegiada por essa iniciação rara e especial. Por isso, meu apego muito grande ao IEL e o desejo de que tenha vida longa!

 

O conceito do que hoje se reconhece como “Literatura do Rio Grande do Sul” surgiu, em seus contornos atuais, em meados dos anos setenta do século XX, pela ação de pessoas que, avessas a uma visão redutora da literatura regionalista limitada a seu recorte espacial e histórico,  pretendiam escutar outras vozes urbanas e criar condições materiais para que essas  se manifestassem. A literatura gaúcha, até então, assemelhava-se a dos países platinos  pela caracterização do espaço e da memória histórica e hegemônica, sempre em diálogo intertextual com literaturas européias e platinas. Havia, nisso, a questão de preservar as chamadas origens, pedra de toque que a Sociologia Literária começava a apontar como fato a ser examinado pela crítica.

 

Na literatura gaúcha, até meados de vinte, a temática dominante decorria, quase sempre, da descrição do espaço e dos fazeres da campanha ou, quando muito, da apreensão de movimentos históricos de um ponto de vista não raro acrítico. Esse quadro transformou-se, inicialmente, em 1930, com escritores mais voltados para a avaliação da realidade social,  beneficiados pelo surgimento de editoras, e que configuraram o que se designou como “romance de 30”. Seus principais representantes foram, dentre outros, Dyonélio Machado,

  

Erico Verissimo, Pedro Wayne, Ivan Pedro de Martins , Cyro Martins, Reinaldo Moura e  Aureliano de Figueredo Pinto.

 

 Mas o desenho de um projeto moderno e coeso, que propiciasse a multiplicação e a expressão de diferentes temas originados pela urbanização e diversificação cultural  resultou, a meu ver,  em grande parte,  do esforço de diversos intelectuais e do trabalho aglutinador realizado pelo Instituto Estadual do Livro sob a direção de Lygia Averbuck.

 

Por esse tempo, o Professor Guilhermino Cesar, recém chegado de Portugal, reassumiu a cátedra de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, resistindo aos modismos da época, como a importação de  teorias formalistas e estruturalistas, não raro em desacordo com as necessidades e os interesses locais. Essas teorias transplantadas, independente de sua importância na formação dos intelectuais e estudiosos das Letras, eram convenientes com relação ao momento político de então, com a censura das obras imposta pelo regime militar. Formalistas e estruturalistas em geral preconizavam o estudo do texto através da análise minuciosa de seus elementos formais, afastando a possibilidade de sua inserção num contexto histórico, sociológico e político.  A censura aos livros e aos escritores, embora repudiada por todos, era um fato que causava revolta e temor. Eram os tempos da ditadura.

 

Guilhermino Cesar publicara, em 1956, a “História da Literatura do Rio Grande do Sul”, pesquisa de fontes de largo espectro, cujo segundo volume não chegou a editar. O livro inventaria a formação da literatura no Estado. Ao retornar de Coimbra, onde recebeu o título de Doutor Honoris Causa por aquela Universidade, publicou a “História do Rio Grande do Sul: período colonial” (1970), inscrevendo essas questões no âmbito da literatura nacional. Como se lê na coletânea de ensaios “Rio Grande: terra e povo”, publicada pela Globo, e também nas obras individuais de Moysés Vellinho, Carlos Dante de Moraes, Manoelito D´Ornellas e nos demais ensaístas e historiadores do período,  algumas dicotomias com relação à literatura e à cultura local enraizaram-se a partir dessa época. Dentre elas, a questão do regional versus o nacional na literatura,  e o influxo lusitano versus o platino. Guilhermino pensou essas questões e deu-lhes visibilidade, superando preconceitos e orientando teses que mapeavam a cultura através do estudo de seus escritores mais representativos.

 

Lygia Averbuck, então professora vinculada a centros de pesquisa existentes na Secretaria de Educação e Cultura do Estado, fora aluna de Guilhermino e ambos frequentavam o grupo de intelectuais ligados a Erico Verissimo, Mauricio Rosemblatt e à Livraria do Globo. Por essa época, Lygia assumiu a direção do Instituto Estadual do Livro a convite da Professora Antonieta Barone.

 

Lygia conhecia a obra de Antonio Candido, com certeza o maior crítico literário do Brasil. Em sua “Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos” (1959), Candido trouxe a noção de sistema literário para o entendimento da literatura nacional. Para ele, o “fato literário” resulta de uma tríade: a existência de um autor brasileiro que escreva um livro no Brasil para ser lido por brasileiros. Autor, obra e público concretizam o fato literário nacional, “constructo” dominante herdado do século XIX.  Sobre essa tríade, Lygia concebeu o trabalho que passou a desenvolver no Instituto Estadual do Livro, modernizando-o.  Para isso, atraiu ao IEL todos os escritores seus contemporâneos, ficcionistas, poetas, críticos, jornalistas. Estimulou-os a lhes entregar seus textos, conversou com eles, intermediou edições.

 

Esses jovens escritores, em sua maioria, eram estreantes em uma literatura de poucos nomes, cuja presença no Brasil era excepcional e lida com as marcas da excentricidade.  Aproximando-os de novos editores que também surgiam, Lygia colocou em circulação suas obras. Contava, para isso, com o apoio de intelectuais de peso, não apenas locais, como também do Rio de Janeiro e de São Paulo. Dentre esses, o ensaísta, crítico e poeta Augusto Meyer, que dirigia o Instituto Nacional do Livro, o poeta e embaixador Raul Bopp, cuja obra foi objeto de sua dissertação de Mestrado; o poeta Walmir Ayala, radicado no Rio, além dos escritores mais jovens, com os quais mantinha permanente contato.

 

O regime de co-edição instituído no IEL possibilitava também que as  novas editoras se fortalecessem, eis que lhes eram encaminhados livros selecionados e revisados, prontos para a edição. Os originais recebiam pareceres de escritores que partilhavam o trabalho de constituir um novo “conceito” para a literatura gaúcha. Sem negar seus pertencimentos, esta, aos poucos, se transformava, acolhendo obras renovadoras da tradição e, mesmo, contrárias a ela, lidas como manifestações de novas tendências. Nessas vertentes, coube ao IEL publicar as primeiras obras de quase todos os escritores conhecidos do público leitor como “escritores gaúchos”. E envolvê-los em seus projetos de divulgação da literatura local e de formação do hábito de leitura. A lista é longa e, com certeza, faltarão muitos: Caio Fernando Abreu, Mario Quintana, Lara de Lemos, Luis de Miranda. Heitor Saldanha, Cesar Pereira, Carlos Legendre, Carlos Nejar, Ivo Bender, Nei Duclós, Ivete Brandalise, Carlos Carvalho, Maria Dinorah, Tarso Genro, Sergio Faraco, Luis Antonio de Assis Brasil, Dilan Camargo, José Eduardo Degrazia, Arnaldo Campos, Sergio da Costa Franco, Donaldo Schuler, Antonio Carlos Resende, Paulo Roberto do Carmo,  Laury Maciel, Moacyr Scliar, Tania Faillace, Lya Luft, Patrícia Bins, ao mesmo tempo em que se reeditavam obras esgotadas ou de valor histórico e documental. Ao longo do tempo, essas publicações prosseguiram e muitos dos nossos melhores escritores tiveram seus primeiros livros acolhidos e co-editados pelo IEL.

 

 Em resumo, o IEL investia no autor, prestigiando o antigo e o novo; na  obra, cuja publicação possibilitava; e no público, criando diversos programas em que o livro era disponibilizado em escolas estaduais, em eventos, ciclos de palestras e concursos literários.

 

Além dos intelectuais que frequentavam e prestigiavam as atividades da casa, outros nela trabalhavam como assessores da direção, dentre os quais Aníbal Barros Cassal, Ivo Bender e Antonio Hohlfeldt. É preciso salientar o apoio constante dos editores, em especial de Carlos Jorge Appel, professor de literatura e diretor da Editora Movimento, que, anos mais tarde, veio a ocupar o cargo de Secretário de Cultura do Estado. Muitos, desde os primeiros momentos, ou ao longo do tempo, aderiam às propostas de Lygia, como Roque Jacobi, diretor da Editora Mercado Aberto, Paulo Flávio Ledur, da AGE,  e conhecidos livreiros e professores. Todos abençoados pelo patriarca e Presidente do Conselho Estadual de Cultura, Maurício Rosemblatt, um dos principais articuladores da Feira do Livro da cidade.

 

Foi no reduto intelectual do IEL que comecei a ler profissionalmente e a revisar textos de autores novos. Selecionávamos o que seria publicado e solicitávamos parecer externo, quando necessitávamos maior isenção e rigor.  Revisávamos e multiplicávamos textos e os encaminhávamos às escolas do Estado, através das delegacias de educação. Treinávamos os colegas professores das escolas para o preparo de encontros com escritores, a organização de feiras de livro e a própria tarefa de análise a abordagem literária dos textos. Viajávamos pelo interior do Estado, visitando escolas, trabalhando juntos na criação do hábito da leitura e na inscrição de um projeto que até hoje se mantém sob o nome de “Autor presente”. O objetivo era aproximar o escritor de seus leitores, desmitificá-lo, possibilitar um diálogo criativo. E aproveitar a relativa “impunidade” e a coragem dos escritores que, não sendo funcionários públicos, possuíam menores chances de responderem a comissões de inquérito tão comuns à época.

 

 

Um dos escritores mais acolhido e respeitado era o Dr. Cyro Martins, um entusiasta incentivador de ideias. Era criativo, inteligente e generoso. Frequentava o IEL para orientar e conversar. Admirava-se sua vitalidade e o entusiasmo com que participava dos programas de leitura, principalmente dos “Encontros de escritores com estudantes de segundo grau”, um projeto pioneiro que levava escritores às escolas para conversar com os jovens leitores. Por seus resultados no incentivo à formação do hábito da leitura, esse projeto serviu de modelo a outros que se repetem no estado e fora dele.

 

Lygia Averbuck era bastante politizada. E com tantas cabeças pensantes frequentando a casa, aproveitava-se esse potencial para qualificar e assegurar nosso trabalho. Os escritores levavam a sério o compromisso social de dar voz a quem não tinha, tanto em sua literatura como em depoimentos nas escolas às quais era impingido o mito do milagre brasileiro. O esporte, como sempre, estava  em alta: a Copa do Mundo era nossa, Eder Jofre, o “Galinho de Ouro”, brilhava no Box, Maria Ester Bueno vencia no Tênis.  Um país de campeões. O erro era a dissidência: Brasil, ame-o ou deixe-o.

 

Surpreendentemente, Cyro Martins, era aceito e respeitado por todos, embora sua obra fosse pura denúncia social. Ninguém se atrevia a cancelar seus encontros, o Dops parecia ignorá-lo. Pessoas como ele, Paulo Gastal, Guilhermino Cesar, Maurício Rosemblatt, Henry Satkamp e Paulo Xavier davam respaldo político e legitimavam as atividades que promovíamos e realizávamos. Cyro era um homem de esquerda. Não sei se costumava comparecer a reuniões do Partido Comunista. Mas nunca o comentou, era muito discreto.

 

Conheci detalhes sobre a época da militância intelectual e política de Cyro e de muitos outros escritores em uma reunião em casa de Carlos e Myrna Appel. O convidado especial era Ivan Pedro de Martins, e o motivo, a publicação de um livro que Myrna e eu organizamos, nos anos noventa, para a Editora da UFRGS, com depoimentos de escritores e artistas. A geração de 30 no Rio Grande do Sul: literatura e artes plásticas. E foi o historiador Décio Freitas que nos instruiu a respeito daquela época turbulenta.  Eram depoimentos de homens inteligentíssimos que conheciam, como poucos, os meandros da vida política brasileira.

 

Lygia foi afastada por diversas vezes da direção do IEL, sempre por motivos políticos.  Mas a equipe que formara nunca abandonou suas ideias e projetos.  Chegamos a ter interventores na direção e precisamos conviver com eles. Mas o IEL manteve-se por muito tempo como a casa do escritor, onde se podia ler, respirar e falar, uma espécie de oásis no asfixiado meio cultural da cidade.

 

Nos encontros com estudantes,  em palestras e outros eventos, os escritores depunham sobre a realidade, respondiam a perguntas. Com isso, quando menos se esperava, havia um funcionário novo infiltrado no IEL pelo governo. E, de repente, Lygia foi afastada e substituída e seu grupo dissolvido. O IEL só veio a ser recomposto anos depois, pela atuação agregadora do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, que organizou nova equipe e recuperou parte da biblioteca que se dispersara em outras instituições.

 

Durante o período da ditadura militar, ocorreu uma situação paradoxal: houve crescimento e desenvolvimento visíveis na cultura do Rio Grande do Sul.  Em suma, o  IEl recebia verbas dignas para investir no trabalho: conseguiu criar um Conselho Editorial e tocar adiante várias edições de livros e revistas, lançar obras de autores novos, relançar os antigos, criar prêmios literários e realizar eventos com convidados nacionais. Ainda publicou uma coleção de fascículos, Autores gaúchos, contendo vida e obra dos principais escritores sul-rio-grandenses vivos. E outra coleção, que ironicamente apelidamos Finados Ilustres. Assim, foi-se materializando o conceito da literatura sul-rio-grandense que convivia com o regionalismo mas não se limitava a temáticas localistas. Junto a isso, criou-se também o mito da auto-suficiência: no Rio Grande, se escreve, publica e lê, ali o círculo se fecha. Felizmente, sabe-se hoje que isso nunca foi assim.

 

 De qualquer modo, a memória individual desse período, que minha escrita agora coletiviza, registra o prazer de um convívio que nunca se repetiu. O IEL e todos nós perdemos Lygia muito cedo e o trabalho continuou, tendo a frente escritores e professores de alto nível intelectual. Foi em um desses momentos que, com o apoio de Guilhermino Cesar, Porto Alegre recebeu no IEL escritores de renome nacional, como Murilo Rubião, J. J. Veiga Clarice Lispector, Deonísio da Silva, Flávio José Cardoso, Fábio Lucas e Ligia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Affonso Romano de Sant´Anna  e outros tantos.  Mais tarde, na esteira de Josué Guimarães, o IEL  apoiou também as Jornadas de Passo Fundo, que inseriram a cidade e o estado  no mapa cultural do Brasil.

 

Trabalhava no IEL quando publiquei meus primeiros textos críticos no Caderno de Sábado, do Correio do Povo, organizado por P.F. Gastal. Enviei o texto a ele sem grandes esperanças de publicação. E foi estranho quando vi o artigo por acaso, enquanto comprava verduras no Mercado Público. Nas páginas do Correio  estavam enrolados os dois pés de alface que comprara.  Logo, Cyro  Martins me telefonou, a franqueza na voz bonachona : Olha, li teu artigo, saiu hoje no Correio do Povo, gostei muito. Comentou o texto, um artigo de ocasião, sobre um romance de Jorge Amado. Eu quero te falar uma coisa. - disse.  Léa Sílvia Rebouças dos Santos Masina é um nome muito comprido, ninguém vai te conhecer. Encurta para Léa Masina e assume teu nome literário.

 

Devo a ele essa parte de minha identidade.  E ao IEL, à Lygia, ao querido Ivo Bender, ao Assis Brasil e também,  de modo especial, a amigos e colegas daqueles dias,  os rumos que tomei em minha profissão. Não restam dúvidas de que fui privilegiada por essa iniciação rara e especial. Por isso, meu apego muito grande ao IEL e o desejo de que tenha vida longa!

 

Porto Alegre, 6 de setembro de 2013.

 

  

*Léa Masina

 Doutora em Literatura Comparada e Crítica Literária

 Professora do Instituto de Letras da UFRGS (aposentada)