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As águas profundas da violência humana - Franklin Cunha E-mail
Coluna CELPCYRO - Colunistas

 

Todas as cosmogonias contêm relatos dramáticos sobre a precocidade da violência e do crime. São os mitos que sempre nos contam histórias de assassinatos humanos. Mesmo os deuses, com sua força e capacidade descomunais, têm a versatilidade dos homens e, com suas desmesuradas façanhas, não se eximem de certas angústias e culpas. Na mitologia de todas as culturas, há sempre relatos de combates que buscam um equilíbrio, justiça, um tempo de paz e bonança nunca alcançados definitivamente. Esses sonhos coletivos da humanidade - seus mitos - ilustram a agressividade inerente à vida e que pode acabar com ela.

 

Segundo o psicanalista argentino Marcos Aguinis, alguns mitos revelam angústias de reparação e de sensato equilíbrio. Exemplo, é a versão do deus Ra dos egípcios. O relato começa descrevendo a condição humana do envelhecimento do deus. Sentindo-se extremamente cansado, transformou seu velho corpo em ouro, prata e lápis-lazúli.

 

Vendo seus súditos tomados pela soberba e dispostos a ignorá-lo, convocou um conselho de deuses e estes autorizaram-no a executar represálias. Ante o risco de ver cerceado seu poder, encarregou Athor, deusa da crueldade, a provocar extensa mortandade humana. A deusa, então, cumpriu sua tarefa com um sinistro júbilo. De seu trono Ra observava como eram assassinadas suas criaturas, uma por uma. Ao cabo de alguns dias, o deus considerou suficiente o castigo e ordenou à sanguinária Athor que desse seu trabalho por concluído. Porém, a deusa estava tão obcecada em sua sinistra obra que já não ouvia as ordens de seu chefe. Assim, caso Ra não tomasse alguma medida, o mundo ficaria desprovido de seres humanos. Este então urdiu um estratagema: durante a noite, esparramou pelo mundo uma bebida alcoólica de cor vermelha que a desenfreada deusa confundiu com sangue. Assim, Athor ficou tão embriagada que não conseguia distinguir homens, de animais e objetos. A força assassina, confundida e que tinha agido enlouquecida por seu instinto, atrapalhou sua loucura e desta forma a humanidade foi preservada.

 

Segundo a interpretação de Aguinis, os mitos que nossos antepassados elaboraram para explicar certos fatos difíceis de entender, nunca perdem sua atualidade. Ainda hoje, nos perguntamos qual a lógica do crime e da violência.

 

Seguimos desejando um mundo no qual reine a paz, a justiça, a solidariedade, movidos, ao mesmo tempo, pela violência e pelo controle da violência, simultaneamente descrentes e esperançados. Não é fácil manter a esperança no âmago de um mundo impregnado pelo ceticismo. Da mesma forma, sabemos e nos põe medo o fato de que é mais fácil e simples destruir e muito mais árduo construir. Cortar uma vida leva frações de segundos, cultivá-la, anos.

 

O deus Ra despachou uma simples ordem e a morte percorreu o mundo como um vendaval. Teve, no entanto, que aflitamente refletir e inventar um ardil: destilar uma bebida alcoólica  da cor do sangue e esparramá-la pelo mundo com esmerado segredo para deter a hecatombe.

 

Os desejos de destruição maciça brotam da mente de certos homens poderosos como gerados por uma fonte caudalosa e inesgotável. Entre as causas deste fenômeno, tão perigoso quanto universal, verificamos que, além de sua temível força, os detentores  do poder abrigam a expectativa de ultrapassar todos os limites de seus desejos e de sua onipotência. As interdições podem ser reais ou fictícias, importantes ou banais, mas esses homens são extremamente sensíveis a elas, porque soturnamente percebem que sua estrutura interior pode ser quebrada como um cristal. As impugnações a eles impostas tornam-se intoleráveis, por vezes mortais e para não morrer sob seus afeitos, urge anulá-las. Ignoram que é dentro de si que reside a temida limitação de seus desejos e a percepção de sua dissimulada fragilidade. E, embora consagrem sua vida a buscar nos outros a origem do mal, morrerão sem consegui-lo.

 

A instabilidade de sua estrutura íntima, o terror de ser ignorados e abandonados os impulsionam a realizar atos que não têm outra finalidade do que sustentar sua ilusão de poder e de autosuficiência.

 

O deus Ra, senhor dos deuses e dos homens, ao envelhecer, não ficou satisfeito em ver seu corpo metamorfoseado em metais preciosos; necessitava, como uma criança, que todos os homens lhe dessem atenção e dele se dessem conta. Ante o perigo de que o ignorassem, optou por ordenar um massacre de suas próprias criaturas, o que refutaria, ilusoriamente, o fato de que havia perdido o poder.

 

Esta história  a vemos, ouvimos e a vivemos  todos os dias. Os detentores do poder não podem suportar a idéia de sua transitoriedade. Associam o poder à vida e a sua perda, à morte. Poder é Eros e ostracismo é Tânatos. Melhor ficariam, e ficaríamos, se agissem como simples animais que se saciam e se acalmam após devorarem a presa. Mas sua bulimia pelo poder é imensa e insaciável e um dia acabarão se comendo entre si.