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Uma poeta nas sombras - José Francisco Botelho E-mail
Coluna CELPCYRO - Colunistas



Cegueira e poesia formam uma parelha antiga e proverbial. Entre os vates que contaram sílabas no coração das trevas, ressoam os nomes portentosos de Homero, Milton e Borges; já no universo da literatura portuguesa, temos o admirável poeta, prosador e polígrafo António Feliciano de Castilho, cujo Tratado de metrificação portuguesa é até hoje obra essencial para os versejadores da língua. Menos famosa, mas igualmente impressionante, é a história de Delfina Benigna da Cunha (1791-1857), esquecida guerreira das letras gaúchas. Nascida em São José do Norte, filha de um capitão-mor do exército imperial, Delfina perdeu a visão aos vinte meses de idade. Cresceu nas sombras, aprendendo de ouvido as perícias literárias que seriam sua única arma no combate da vida.

E de armas ela precisaria, mesmo, pois aqueles eram tempos atribulados. Quando Delfina era pequena, os canhonaços espanhóis ressoavam regularmente do outro lado da Barra, na cidade vizinha de Rio Grande; e, a partir de 1835, a Revolução Farroupilha mergulhou a província em dez anos de luto, peleias, êxodos e sofrimentos. Isso tudo Delfina foi obrigada a atravessar, em sua condição de mulher pobre, inválida e abandonada. Como não lhe restasse outra alternativa, teve de ganhar o pão fazendo versos. Se viver da escrita é empreitada aventurosa ainda em nossos dias, tanto mais o era naquela época; mas Delfina saiu-se bem nessa epopeia. Viajou  ao Rio de Janeiro, onde implorou misericórdia a Dom Pedro I, em versos bem metrificados; de Sua Majestade, conseguiu um certo estipêndio. Depois, palmilhou outros rincões do Brasil, como a Bahia e o vale do Paraíba, coletando assinaturas para suas publicações (naquela época, os livros eram geralmente impressos sob demanda e pagos antecipadamente). Com a ajuda da Corte, publicou sua obra Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses, em 1834. O título não é dos mais grandiosos, mas a proeza, sim: esse foi um dos primeiros livros de poemas publicados no Rio Grande do Sul. E sua autora, jamais é demasiado lembrar, foi cega, órfã, desvalida ‒ em suas próprias palavras, uma "mórbida vate, errante e sem auxílio".

Os poemas de Delfina não foram imunes à banalidade e ao marasmo ‒ o que não é de espantar, pois muitos de seus versos são elogios aos eventuais benfeitores (a gratidão pecuniária é um nobre sentimento; mas nem sempre é a mais fogosa das musas). Como espírito de sua época, Delfina também tinha invocações de amores árcades, com sopros de Eolo e cantilenas de Cupido. Jamais se casou, e muitos de seus versos são fantasias sobre o matrimônio não realizado (Elmano  era o nome que dava a seu esposo imaginário). Aqui e ali, os poemas deixam escapar arroubos de desespero, que eram sua nota sincera. O sentimento de pária, de criatura naufragada no arquipélago do destino, sem nada além da lira para empunhar, confere a algumas de suas linhas uma espécie de ascética nobreza. Este soneto, em que narra o fado de sua própria cegueira, é de uma altiva e exemplar amargura:

Vinte vezes a lua prateada

Inteiro o rosto seu mostrado havia,

Quando o terrível mal que já sofria

Me tornou para sempre desgraçada.

 

De ver o sol e o céu sendo privada,

Cresceu a par de mim a mágoa impia;

Desde então, a mortal melancolia

Se viu em meu semblante debuxada.

 

Sensível coração deu-me a natura,

E a fortuna, cruel sempre comigo,

Me negou toda sorte de ventura.

 

Nem sequer um prazer breve consigo;

Só para terminar minha amargura

Me aguarda o triste, sepulcral jazigo.

 

Delfina, a Cega, pode não ter sido uma poeta brilhante; mas foi, na mais funda acepção do termo, uma heroína literária ‒ "flor bizarra em um acampamento de guerra", no dizer de Guilhermino César. Que tão pouco a recordemos, hoje, é sinal de nosso voluntário e algo neurótico mergulho na escuridão: por descuido, por enfado, por niilismo, deixamos as sombras entrarem onde a luz a tanto custo brilhou.

 

 

 

Batalhar pela vida, na solidão e na pobreza é encargo sempre pesado. Mais ainda quando se trata de mulher cujo único patrimônio era a poesia, que criava e buscava com ela uma luz em sua cegueira e o próprio sustento. Mais: isso se passava na primeira metade do século XIX , no Rio Grande do Sul, e a “guerreira” era a poeta Delfina Benigna da Cunha.