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Fábio Varela Nascimento


OUTRA VEZ PORTO ALEGRE

 

Uma vez em Porto Alegre, território conhecido, Cyro agiria com desembaraço. Ele já não era o jovem inexperiente que deixara os bancos da Faculdade de Medicina. Ao aprendizado e à prática daqueles anos em Quaraí, acrescentava-se a especialização em neurologia, que favorecia o seu currículo. O nome de Cyro não era conhecido e ainda pairavam dúvidas sobre sua excelência profissional. Contudo, frente aos “doutores” restritos aos estudos da graduação, ele possuía uma habilitação que o distinguia. Na capital gaúcha, Cyro também teria que se virar como clínico geral, mas o trabalho neurológico não precisaria ser deixado de lado. Além de trocar ideias com os antigos colegas e professores de faculdade, ele poderia desenvolver pesquisas no Hospital São Pedro.

Cyro encontrara as portas do São Pedro abertas já nos primeiros tempos de estudante. Nesse novo momento, em que se voltava para a neurologia e trazia na bagagem conhecimentos adquiridos nas visitas aos sanatórios do Rio, ele seria novamente bem recebido. Fundado em 1884, o São Pedro atravessou uma etapa de remodelação entre o final dos anos 1920 e início dos 1930. Não por acaso, nessa época, o hospital foi conduzido por Jacintho Godoy Gomes. Egresso da Faculdade de Medicina de Porto Alegre e funcionário público estadual ligado à medicina legal, Jacintho passou uma temporada na França – de 1919 a 1921 – a fim de se especializar em neuropsiquiatria e de tomar aulas com docentes como Pierre Marie, Joseph Babinski, Ernest Dupré e LaignelLavastine, que atuavam no Hospital Salpêtrière. Em 1926, quando assumiu o São Pedro, Jacintho levou para o comando da instituição os fundamentos e os aprendizados franceses.

Ele entendia que, para funcionar de maneira mais efetiva, era necessário que o hospital passasse por modificações que iam do nível material ao científico. Foram construídos “pavilhões independentes para atender diferentes tipos de pacientes”, houve uma “modernização das técnicas de tratamento de acordo com os recursos da época” e um “desenvolvimento de atividades de pesquisas e intercâmbio científicos” com médicos de outros países. A formação dos profissionais também era um assunto caro a Jacintho. Além de criar “a primeira escola para enfermeiros psiquiátricos no país”, ele se preocupou em contratar “médicos especializados em psiquiatria”[1]. A gestão remodeladora de Jacintho Godoy, considerado por Cyro o “mais eficiente”[2] diretor do São Pedro, teve início em 1926, mas sofreu uma interrupção, provavelmente por motivos políticos, em 1932.

Em 1937, Jacintho foi reconduzido ao cargo e essa volta era um sinal positivo para Cyro. O interesse do administrador em contar com especialistas em neurologia e psiquiatria indicava que Cyro teria mercado de trabalho. Era preciso, contudo, dar um jeito de entrar para a equipe do São Pedro. Até 1937, não havia concurso público e os médicos eram contratados. Naturalmente, as afinidades políticas contavam na hora da contratação. O próprio Jacintho, por mais competência que demonstrasse, ingressou nas funções públicas devido a uma proximidade com Antônio Augusto Borges de Medeiros. Em alguns raros casos – como o de Jacintho – o compadrio era eclipsado pelo bom desempenho do apadrinhado. Porém, na maioria das vezes, o arranjo acabava mal. Jacintho Godoy sabia que o sistema das indicações não escolhia os profissionais com maior capacidade. Era preciso organizar um processo seletivo claro, dentro dos conformes – com regulamentos, número de vagas, datas e banca de avaliação explícitos.

Na obra Psiquiatria no Rio Grande do Sul, de 1955, rememorando sua carreira e sua trajetória frente ao São Pedro, Jacintho tratou das seleções para a instituição em um capítulo específico, intitulado “Concursos”. De acordo com o diretor, em 1938, “entrando em vigor a Lei Federal das acumulações, o Hospital se viu desfalcado de quatro médicos”. A disponibilidade de vagas deixou Godoy “assoberbado de pedidos para os cargos”. O problema é que os aspirantes eram “todos médicos não especializados, candidatos a empregos, mas, naturalmente, imbuídos da ideia de que a psiquiatria é um ramo da medicina que se pode exercer sem grandes conhecimentos e o psicopata um doente pitoresco”[3]. Além de ficar evidente a busca de Jacintho pelos profissionais com capacidade e formação, sua postura sugere certa consonância com aquilo que se desenhava nos primeiros momentos do Estado Novo. Quando abordou o tema sem censuras, Cyro disse que o “novo regime, com seus interventores nos Estados, resolveu varrer caprichadamente a casa, como vassoura nova, abrindo concurso para os cargos públicos”[4]. Assim como ocorrera na virada política de 1930, quando recebeu uma bolsa providencial, em 1937, Cyro poderia ser, outra vez, beneficiado pela marcha da história.

Embora não acreditasse em destino e pensasse que um homem deveria ser o senhor dos seus caminhos, após os meses em terras cariocas, Cyro precisava que a história ou a providência viessem ao seu auxílio. Seguindo os rastros do médico, é possível deduzir que ele voltou do Rio de Janeiro para Quaraí. Como em um filme repetido, suas expectativas despencavam e os planos de estabelecimento em Porto Alegre eram deixados de lado. O interessante é que as pistas dessa silenciada temporada quaraienseafloram por causa do seu fim. Ainda que viesse do São Pedro, mas fosse mais terrena do que celeste, a possibilidade de que ocorresse, em 1938, um concurso público para o hospital foi bem recebida por Cyro. Ali estava a oportunidade para sair de Quaraí.

Frases e fotografias de Cyro referentes ao período indicam que ele estava em Quaraí no início de 1938 e partiria outra vez, na mesma época. A notícia da seleção para o Hospital São Pedro tinha saído entre o final de janeiro e o início de março daquele ano, pois Jacintho afirmou que aproveitou a “velha amizade” com Maurício Cardoso, então interventor do Rio Grande do Sul, para “estabelecer o regime de concurso para o provimento dos cargos vagos”[5]. Tomando conhecimento da novidade, Cyro não teve dúvidas de que era a hora de levantar acampamento e viajar para Porto Alegre. Ele estava tão decidido que não hesitou em contar aos familiares e aos amigos que iria para a capital enfrentar o concurso. É estranho o fato de Cyro, um sujeito discreto, ter gritado seus planos ao vento. Aquilo era uma demonstração de confiança ou um pedido de apoio? Provavelmente, Cyro queria que o encorajassem, que lhe dissessem que era capaz, que uma das vagas seria sua. Se era isso o que pretendia, pelo menos até sua partida, conseguiu que lhe apoiassem.

Em um depoimento que serve como pista para recuperar aqueles dias quaraienses, ao falar sobre a saída da cidade meses antes do concurso, ele lembrou que “fora despedido [...] com charanga, churrasco e discurso”[6]. As palavras de Cyro parecem exageradas e recheadas de autoelogios. Por que fariam isso por ele? Não era nenhum voluntário a caminho de se imolar pela pátria ou pela terra natal. Não partia para o sacrifício comum, ao contrário, ia em busca dos objetivos individuais. Esse poderia ser o motivo da carne, da música e dos discursos encorajadores. Os parentes e amigos torciam para que o guri do Seu Bilo crescesse, fizesse nome; torciam para que ele encontrasse um lugar ao sol. Quaraí não lhe traria nada.

No livro Cyro Martins – 100 anos: o homem e seus paradoxos, Celito De Grandi e Nubia Silveira ilustraram o texto com fotografias que contemplavam as várias fases da vida do biografado. Em uma delas, ele aparece em um ambiente festivo. Entre Ivo, o irmão, Ilda, a cunhada, Suely e outros homens e mulheres com risos encorajadores, Cyro exibe um sorriso largo e espontâneo, um sorriso que não foi captado em nenhum dos seus retratos anteriores. A legenda da fotografia informa: “Despedida de Quaraí, 1938”[7]. Era essa a razão do sorriso inédito.

Outros colegas que, como Cyro, interessavam-se por neurologia e psiquiatria também viram, no concurso para o São Pedro, uma chance. Entre eles estava Mário Martins, um velho conhecido. Cyro e Mário eram companheiros desde antes da Faculdade de Medicina. No texto “Mário Martins” – psicoterapeuta, apresentado na inauguração da Fundação Mário Martins, em março de 1988, e publicado, anos depois, em Caminhos: ensaios psicanalíticos (1993), Cyro falou sobre a amizade com Mário e as trilhas percorridas pelos dois. Eles se conheceram na Rua da Praia e o que os aproximou foi “a inquietação literária”[8], motivada pelos ecos da Semana de Arte Moderna e da Revolução de 1923. Com Lino de Mello e Silva, Cyro e Mário entraram para o curso de medicina e foram juntos até o final. Mário, que convivia com dificuldades financeiras semelhantes às de Cyro, dividiu com o amigo a formatura em gabinete e a falta de comemorações pela colação de grau.

Donos de seus diplomas, Cyro e Mário tomaram rumos parecidos. Sem dinheiro, voltaram para casa, um para Quaraí e o outro para Sant’Ana do Livramento. Até as perdas e as dificuldades atingiram-nos pela mesma época – Cyro viu o pai falecer em 1934, e Mário ficou órfão de mãe em 1935. Não existem correspondências e outros documentos para evidenciar a hipótese, mas é provável que ambos tenham mantido contato enquanto se exilavam nas suas cidades de origem. Um indicador que aponta para essa probabilidade é a informação dada por Roberto Bittencourt Martins[9], filho de Mário, que não era nascido na época. Ele afirma que, nos anos de separação, os dois amigos trocaram cartas. Mário escrevia para Cyro de Livramento ou de Marcelino Ramos – município do Norte do estado para onde se mudara a fim de clinicar –, e Cyro respondia de Quaraí ou do Rio de Janeiro.

Não eram apenas as “inquietações literárias” e os dramas pessoais que aproximavam os dois. Assim como acontecia com Cyro, as inquietações de Mário transcendiam o campo da literatura. Na verdade, as letras iam, aos poucos, sendo deixadas de lado por ele – suas pretensões de ser escritor não se mostravam exacerbadas como as de Cyro. Seu grande foco era a profissão e, no tocante a ela, seus desejos de aprimoramento e ascensão eram tão grandes quanto os do quaraiense.

Em algum momento de 1938, Cyro e Mário se reencontraram em Porto Alegre[10]. Com o mesmo objetivo em vista, os antigos colegas decidiram estudar juntos para a prova. No depoimento sobre Mário, Cyro disse que a ideia inicial do “tímido e modesto”[11] amigo era concorrer à vaga de sanitarista e não à de psiquiatra. A autocrítica, a exigência em relação a si mesmo e a “seriedade do seu caráter” impediam Mário de “preparar-se às pressas para um concurso de tal monta, sem ter de antemão uma base razoável de conhecimento sobre a matéria”[12]. Pensando no bem de Mário e no seu próprio, Cyro ajudou o companheiro a vencer as barreiras autoimpostas.

A rotina de estudos ocupava quase todas as horas úteis dos dois. Cyro contou que as manhãs eram passadas no São Pedro e as tardes reservadas para as visitas à enfermaria de neurologia da Santa Casa[13]. Nesses turnos ainda deviam ser feitas leituras trazidas por Cyro do Rio de Janeiro e outras descobertas de Mário, assim como abordagens aos professores da Faculdade de Medicina que transitavam pelo São Pedro e a Santa Casa.

Durante as noites, Cyro quebrava a rígida disciplina de concurseiro e se ocupava com outra atividade: escrever. Depois de Campo fora e Sem rumo, ele se sentiu encorajado a continuar. Além disso, a marca da literatura era intensa demais para ser ignorada. Em Sem rumo,Cyro encontrou um tema frutífero. Ele ainda tinha muito a falar a respeito da complicada situação dos gaúchos a pé. Contudo, era necessário arranjar uma forma diferente de explorar o assunto em futuras produções. Cyro não queria travestir o mesmo livro repetidas vezes. Ele precisava ampliar a questão iniciada na novela de 1937. A expansão deveria passar pela abordagem social do assunto e pela exploração do tipo humano que colocara em cena.

 

 

NASCIMENTO, Fábio Varela. Cyro Martins – os anos decisivos (1908-1951). Porto Alegre: Movimento, 2019, p. 214-219.



[1]As informações sobre Jacintho Godoy Gomes foram retiradas das biografias que compõem o site do Museu Psi, disponível em: http://www.ufrgs.br/museupsi/biogodoy.htm Acesso em: 21/06/17.

[2]MARTINS, Cyro. Acontecimentos e vultos históricos da medicina sul-rio-grandense. Caminhos: ensaios psicanalíticos. Porto Alegre: Movimento, 1993, p.126.

[3]As citações foram retiradas de: GOMES, Jacintho Godoy. Psiquiatria no Rio Grande do Sul. [Local de publicação não identificado]: [Editora não identificada], 1955, p. 351.

[4]MARTINS, Cyro. Mário Martins – psicoterapeuta. Caminhos: ensaios psicanalíticos. Porto Alegre: Movimento, 1993, p. 137.

[5]GOMES, Jacintho Godoy. Psiquiatria no Rio Grande do Sul. [Local de publicação não identificado]: [Editora não identificada], 1955, p. 351. Indico a possível data baseado na afirmação de Jacintho Godoy e na informação de que a interventoria de Maurício Cardoso foi de 19 de janeiro a 3 de março de 1938.

[6]MARTINS, Cyro. Mário Martins – psicoterapeuta. Caminhos: ensaios psicanalíticos. Porto Alegre: Movimento, 1993, p. 138.

[7]DE GRANDI, Celito; SILVEIRA, Nubia. Cyro Martins – 100 anos: o homem e seus paradoxos. Cachoeiro do Sul: Defender, 2008, p. 9. A foto original se encontra no Delfos (Acervo Cyro Martins, caixa 16, número de tombo 5449).

[8]MARTINS, Cyro. Mário Martins – psicoterapeuta. Caminhos: ensaios psicanalíticos. Porto Alegre: Movimento, 1993, p. 134.

[9]A informação foi dada por e-mail, em 30/07/2017.

[10]Na mesma ocasião em que deu informações sobre a vida do pai entre os anos de 1934 e 1938, Roberto Martins contou que Mário foi para Porto Alegre em 1938, para cursar uma especialização em psiquiatria, que visava, justamente, ao concurso. Não encontrei menções a esse curso no livro de Jacintho Godoy ou nos escritos de Cyro.

[11]MARTINS, Cyro. Mário Martins – psicoterapeuta. Caminhos: ensaios psicanalíticos. Porto Alegre: Movimento, 1993, p. 137.

[12]MARTINS, Cyro. Mário Martins – psicoterapeuta. Caminhos: ensaios psicanalíticos. Porto Alegre: Movimento, 1993, p. 137.

[13]Ver: MARTINS, Cyro. Mário Martins – psicoterapeuta. Caminhos: ensaios psicanalíticos. Porto Alegre: Movimento, 1993, p. 137.