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Fantasia e Realidade: ARTE E VIDA | Imprimir |  E-mail

Marcello Blaya


Nós, os adultos, dividimos as 24 horas em três terços e num deles dormimos e sonhamos. O não permitido nos outros dois, é livre no sonho. A exceção está nas Artes, pois o artista “sonha” acordado e nas suas obras “evita” a submissão à realidade, que sempre cobra seus direitos.

Sonhar preserva o modo de ser do bebê antes que  a realidade o obrigue a mudar. O “sonho” do artista ajuda a entender seu modus vivendi.

Sonhar mostra que o ser humano não é unidade; pelo menos dualidade. Perceber isso é algo antigo, como nos ensinou José, vendido pelos irmãos aos egípcios e com sua capacidade de “decifrar” sonhos tornou-se uma eminência parda junto ao faraó e sua corte. Sonhos eram “mensagens dos outros”, em geral dos deuses, por isso a dualidade não era reconhecida.

Um século antes de Freud sugerir a trindade na unidade – ID, EGO, SUPEREGO – coube a um artista essa descoberta. Edgar Allan Poe (1809-1849) publicou em 1839 William Wilson, onde mostra que somos pelo menos dois em um. O WW que conta a história em voz alta e o ww, de fala sussurrante. Quando WW mata ww, morre a unidade. William Wilson serviu de inspiração para Robert Louis Stevenson (1850-1894) escrever Dr. Jekyll and Mr. Hyde, em 1886 e Oscar Wilde (1854-1900), O retrato de Dorian Gray, em 1890. Ambos matam o “outro” repudiado e morrem.

Clarice Lispector (1920-1977) publica seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, em 1943. Foi leitora assídua do O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse (1877-1962). Joana, a do coração selvagem, é o lobo, gera a discordia. Lídia, a bem comportada, é o Harry Haller, gera a concórdia.

Quando o romance é  publicado Clarice casa-se com Maury Gurgel Valente, que conhecera na Faculdade Nacional de Direito, onde ambos se graduaram. A paixão de Clarice era o mineiro Lúcio Cardoso, literato homossexual. Clarice-Joana estava decidida a “curá-lo” da homossexualidade e só quando o fracasso ficou claro, Clarice-Lidia aceitou casar-se com Maury. Este havia ingressado na carreira diplomática e durante mais de 15 anos viveu, como diplomata, fora do Brasil.

Em 1959 desfaz o casamento, voltando ao Rio com os filhos, Pedro e Paulo. Joana derrota Lídia.

Maury tenta, numa carta, uma reaproximação:

Vou escrever-lhe pedindo perdão. ... Talvez eu devesse me dirigir a Joana e não a Clarice. Perdão, Joana, de não lhe ter dado o apoio e a compreensão que você tinha o direito de esperar de mim. Você me disse que não era feita para o casamento, antes de casar. Em vez de tomar isso como bofetada, eu deveria interpretar como pedido de apoio. Faltei-lhe nisso e em muitas outras coisas. Mas intuitivamente jamais deixei de acreditar que coexistissem em você, Clarice, Joana e Lídia. Rejeitei Joana, porque o seu mundo me inquietava, ao invés de dar-lhe a mão. Aceitei, demais, o papel de Otavio e acabei me convencendo de que “éramos incapazes de nos libertar pelo amor.”

Na obra de Clarice encontra-se sempre a oposição fantasia vs realidade. Ela dizia que escrevia para sobreviver.

Compreender Clarice, Joana-Lidia, é fácil pois ela mostra seu modus vivendi através de seus personagens.  Em A paixão segundo G.H. Lídia é uma arquiteta bem que ao entrar no quarto da empregada que se demitira, esmaga uma barata-Joana. Do ventre esmagado sai uma gosma que  G.H. engole e se apavora.

No último romance, A hora da estrela, Macabea-Joana vai a uma cartomante que anuncia que encontrará um homem maravilhoso, o que de fato ocorre: ao sair é atropelada e morta por uma Mercedes.

Comparemos fantasia e realidade vividas por Clarice-Joana-Lidia. Quando chegaram a Maceió, em 1922, a mãe, Mania Lispector, estava doente com sífilis, resultante do estupro sofrido num pogrom na Rússia, em 1919. A gestação ocorre numa Mania estuprada e infectada de sífilis. Clarice nasce em setembro de 1920 e Mania morre em setembro de 1930. A fantasia entre os judeus da Ucrânia de que o nascimento de um filho curava a mãe ajudou a filha, durante os dez anos de convívio com a mãe gravemente enferma e deteriorando-se cada vez mais, a acreditar no milagre. Com a morte da mãe acusa-se de não ter feito a cura: “Eu era a culpada nata, aquela que nascera com o pecado mortal.”

Um dos problemas de Joana-Lídia era dormir mal, razão de seu abuso de drogas. Em 1966, dopada de soníferos, adormece com o cigarro acesso e provoca um incêndio. Tenta apagar o fogo com as mãos, sofre queimaduras gravíssimas que quase a matam. Os danos ao seu belo corpo a obrigaram a dezenas de plásticas. Comparando o retrato que Giorgio De Chirico pintara em Roma em 1945 com o pintado por Carlos Scliar no fim de sua vida podemos ver a destruição que ela fez de sua beleza e de seu corpo.

A paixão e a admiração por Lucio Cardoso (1912-1968) determinaram a sua decisão de “curá-lo” da homossexualidade para casar-se com ele. Além de haver fracassado nesse “milagre” ainda sofreu a decepção de vê-lo morrer.

Divorciada, tem um caso com Paulo Mendes Campos que, pressionado pela esposa inglesa, abandona Clarice.

Com os dois filhos, o mesmo antagonismo. O menor, Paulo, é um advogado, capaz de resgatar os direitos autorais que ela sempre descuidou, Pedro, o nascido em Berna, no pior ano do exílio, esquizofrênico.

Finalmente o câncer lhe traz a morte que ela tanto “namorou”.

Clarice e os já citados são parte de uma maioria, pois mesmo os mais criativos, não chegaram à metade dos 120 anos,  tempo de vida humana: Castro Alves, 24; Mozart, 35; Chopin, 39; Van Gogh, 36; Modigliani, 36; Beethoven, 56.

Os que foram capazes de harmonizar sonho e realidade vivem mais: Oscar Niemeyer, vivo, 103; Pablo Picasso, 92; Goya, 92; Saramago, 88; Botero, vivo, 77. Aleluia !!!