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O ANÃO CASTELHANO Imprimir E-mail
Escritores Gaúchos - Vitrine

Roberto Bittencourt Martins

Em seus livros sobre Santana do Livramento, o historiador Ivo Caggiani conta alguns episódios sobre as visitas dos primeiros circos que chegaram à cidade, quebrando a monotonia e semeando deslumbramentos. Recorda que , no trapézio de um deles, o “Circo Americano”, em 1917, brilhava a equilibrista Clotilde Teresa Dias e que ali, em dezessete de fevereiro, estreou no picadeiro seu filho de dez anos, nascido em Málaga, na Espanha, o menino Oscar Lourenço - que, com o nome de Oscarito, viria a ser, ao lado do mineiro Grande Otelo, um dos dois maiores cômicos do Brasil no século XX. Caggiani também relata a vinda de um outro circo, este bem mais antigo, em 1888, o “Circo Europeu”, que trazia como trunfo a primeira aparição de um elefante, animal de espécie nunca vista na cidade. Chovia torrencialmente naquele dia de dezembro, a água escorrendo sob a lona encharcada, mas o público, apesar de empapado, recusou-se a deixar o lugar até que o elefante Zombo, embora mal-humorado, acedesse a cumprir seu número, desfilando no chão de lama, sentando-se sobre um tamborete e, em seguida, passando por cima de seu domador, o infortunado Paulo Serino, a quem, num acesso de ira, iria matar três meses depois, numa apresentação em Montevidéu.

Esses e outros fatos acontecidos em terras de Livramento foram bem descritos pelo olhar sempre atento do historiador santanense. É, porém, quase impossível encontrar o registro de um outro episódio, ocorrido noutra cidade da fronteira meridional (que será conveniente não nomear), envolvendo também circo, elefantes enxergados pela primeira vez em carne e osso e, além disso, um anão e um crime ocorrido nas vizinhanças da estação da estrada de ferro inaugurada havia algum tempo.

A respeito do crime, ninguém encontrou até agora documento algum. E o nome do anão tem estado esquecido; seria, ao que parece, de origem castelhana, vindo de um dos países do Prata ou mesmo da própria Espanha e, devido a seu idioma, ficou sendo chamado de “O Anão Castelhano”. Ele chegou a X. em mil novecentos e pouco, quando a praça da Estação começava a ser arborizada. Trabalhava num circo que tinha como atração principal uma família de elefantes amestrados. Pela primeira vez, a população da cidade fronteiriça poderia ver ao vivo esses animais exóticos que somente Santana havia conhecido, anos atrás, na visão daquele exemplar único, Zombo, o futuro assassino de seu domador. Os anúncios afirmavam que a presença deles ali em X. era um sinal de progresso, demonstrando como o mundo se fizera pequeno, inteiriço e sem mais mistérios. E todos acorriam para admirar o descomunal volume dos imensos paquidermes, suas brancas presas de marfim, enormes orelhas de abano e a singularidade de suas longas trombas flexíveis, capazes de agir como se fossem mãos. Num contraste que alvoroçava as platéias, o anão surgia montado no maior dos elefantes; vestindo trajes hindus e um turbante de rajá, era ele quem orquestrava a dança tosca dos animais. Sua figura miúda e sua atuação folgada logo lhe trouxeram aplausos e popularidade. Era bem proporcionado e as moças se enterneciam com suas feições viris e seus gestos despachados. Ao vê-lo, elas murmuravam: tão bonito, pena que seja um anão! Embora aparentemente não pudesse ouvi-las, ele não disfarçava um mal contido sorriso de satisfação pelo encantamento das mulheres.

Os homens, animados pelas trapezistas de saiote, olhavam com benevolente simpatia aquele espécime raro de miniatura masculina. Depois, ao correr dos dias, espalhou-se um certo rumor malicioso, nascido entre as raparigas da noite, sobre suas proezas na cama, tão desembaraçadas quanto seu desempenho na arena. O anão, porém, não tardou a ausentar-se das noitadas – e um novo zunzum assoprou que ele havia trocado as chinas da boemia por uma viúva moça, protegida de um coronel influente, mandante de justiçamentos e degolas na Revolução de 1893. A mulher mal encobria uma beleza selvagem, negros olhos de brilho embaciado, e a mágoa de uma tristeza funda que nem mesmo a proteção do chefe poderoso conseguira dissipar. Dizia-se que, tendo ido ao circo, seu rosto se desanuviara com a visão daquele homem tão leve a orquestrar, imponente, a dança dos perigosos animais. Falava-se também que, mesmo de longe, o anão pudera notar a admiração enlevada que clareava a expressão dela. Terminada a função, soubera segui-la discretamente, apresentar-se com cortesia, acompanhá-la sem imprudências e deixar que uma obscura simpatia mútua realizasse, na marcha mansa da conversa, a tarefa de enlaçá-los em sentimentos parelhos.

O coronel estava ausente, na estância com a família. Quando o mexerico o alcançou, inflamou-se de um furor de fogo, queimado menos pelo ciúme do que pelo ridículo da situação: ser chifrado por um anão e, ainda por cima, castelhano! Humilhado, ordenou a seus capangas que fossem apanhar sem mais demora aquele pitoco ordinário. Mas o anão, alertado, no momento em que ia ser pego, conseguiu achar resguardo entre seus bichos. Os elefantes redemoinhavam e, enquanto a capangada se atrapalhava, esbarrando entre as patas pesadas e a agitação das trombas, o anão aproveitou a balbúrdia e, com a ajuda de seu tamanho minguado, alcançou sumir a tempo na escuridão da lua nova. Gambeteando por telhados e muros, disparou ao encontro da viúva, que o conduziu ao abrigo de um rancho em ruínas rente a um riacho. Ali, na tapera úmida, os dois planejaram a fuga pelo trem da madrugada: ela iria esgueirar-se até a estação e, para maior precaução, ele estaria escondido no interior de sua mala.

Antes do raiar do dia, a viúva irrompeu pelo terreno da praça vazia. Caminhava, dura e altiva, esforçando-se para manter o garbo apesar do peso do malotão. E estava já no meio de seu caminho quando os jagunços do coronel a cercaram. Ela fingiu inocência, fez protestos indignados, jurou que não estava fugindo e alegou estar carregando a bagagem de uma amiga que viajaria no trem. Mas ninguém lhe deu ouvidos, a mala foi estropiada e, desabando de seus frangalhos, apareceu o anão. Ele saltou, quis escapar, mas foi logo, logo, agarrado e, suspendido pela gola, as pernas soltas no ar, entreviu, apavorado, os facões que já luziam, afiados para a degola. Na lividez do terror, ele implorou pela vida, mentiu que pretendia viajar só e sem nenhuma companhia, jurou mesmo que aquela mulher não tinha importância alguma e que mal a conhecia. Invocando os testemunhos de Deus e da alma de sua própria mãe, assegurou que os boatos não passavam de calúnias lançadas pela desgraçada da viúva. E estava, irado, a xingá-la, quando o estrondo de um tiro rasgou o silêncio da praça. O anão tombou, baleado, uma grande mancha sangrenta avermelhando sua camisa na altura do coração; em seu rosto, o esgar de um enorme espanto ante a estupidez daquele fim repentino e vazio de qualquer sentido. Depois do pasmo inicial, os capangas do coronel não hesitaram e devolveram seu corpo agora inerte aos destroços da mala em que viera. Em seguida, intimidados pelos primeiros raios do sol e pelo toque de alvorada dos galos cantando ao longe, jogaram a bagagem incômoda numa das covas preparadas para o plantio das árvores. E a mulher? – algum deles lembrou. Não conseguiram encontrá-la; parecia haver sido engolida pelas veredas do descampado.

A mala ficou ali, encardida nas sombras, dentro da escavação, até a chegada dos trabalhadores encarregados do ajardinamento. Assim que eles a enxergaram no fundo do buraco que haviam cavado no dia anterior, não vacilaram na decisão indispensável à sobrevivência de todos. Como grande parte da cidade, não discordavam da punição decretada pelo coronel e, numa cegueira combinada, fingindo nada saber, puseram terra por cima de mala, crime e cadáver. Sobre a terra assim fofa e adubada, plantaram a muda de um plátano, a mais folheada de todas. E seguiram, impassíveis, com a rotina de seu trabalho até a chegada do sol forte. Na tarde daquele mesmo dia, o circo deixou a cidade às pressas. Como no final de um espetáculo, o picadeiro se esvaziava e o silêncio tomava conta da arena deserta. A despeito de algum vago murmúrio, todos acreditaram – ou pretenderam crer – que o Anão Castelhano partira com seus companheiros. E sua história duvidosa permaneceu contida no tom baixo de alguns comentários de aprovação pelo merecido castigo que teria recebido. Afinal, aquele castelhano nanico havia ferido os brios não somente do coronel, mas dos homens da cidade inteira, dos paisanos do Rio Grande e do próprio Brasil...

Na praça, o arvoredo foi crescendo e embelezando o ponto de chegada e partida dos passageiros dos trens. Aos poucos e, com a reserva afrouxada pela idade, por dois ou três copos a mais e pela velhice do antigo patrão, algumas línguas mais afiadas passaram a espalhar histórias sobre o final tragicômico do “enano aragano” – cujos restos estariam lá na praça, sob as raízes de um dos plátanos, o mais alto de todos. Não passavam, contudo, de falatórios inconseqüentes, sem maior repercussão. O segredo pareceu ter enterrado, na mesma cova indefinida, mala, anão, crime e paixão – e mesmo a visita do circo a X.. Os anos apagaram também a memória das promessas de um futuro de progresso que haviam animado o espetáculo dos primeiros elefantes na cidade. Outros circos chegaram e partiram; várias e incessantes novidades foram desbotando o brilho ingênuo de circos, com suas atrações gastas.

O episódio do anão, porém, não chegou a ser varrido das lembranças da cidade; como fato pitoresco ou lenda sem fundamento, permaneceu vagando no anedotário de reminiscências da população, ganhando novas formas e sentidos. Às vezes, em piadas maledicentes ou invenções divertidas sobre a disparidade de tamanhos entre o “enano” e suas parceiras, a agilidade elástica de suas façanhas de fauno e as lições que teria aprendido observando seus amigos animais no manejo das trombas... Bobagens, com alguma ou nenhuma graça. Mas alguém mais imaginoso e sem pretensões humorísticas chegou a asseverar que o anão e a viúva haviam sido vistos, na meia-noite de uma sexta-feira 13, montados num elefante, trotando trevas adentro pelas trilhas da via férrea...

Com esses e outros floreios, a história rebrotava, estendendo novos ramos elançando-se em feitios diversos. No largo da praça, o plátano copado criava também novas ramificações e, dia a dia, ia desenhando suas sombras desiguais sobre calçadas, canteiros e a garganta de leão no chafariz recém construído. Debaixo dos galhos da árvore, num banco rústico, os namorados vinham sentar-se, buscando aproveitar a inspiração romântica do infeliz casal de amantes para gozar da intimidade sombreada, do som da água jorrando no ar arejado e, sobretudo, da correnteza murmurejante de carinhos... Nem tudo eram flores e verdeios, porém. As folhas caíam no outono e muitos amores eternos também secavam e vinham ao chão. Havia, contudo, entre os opositores do coronel, quem dissesse que o anão tinha conseguido escapar dos jagunços e, mesmo corrido, conseguira fugir num vagão de carga rumo a Cacequi. Dali, viajara para reunir-se a seu circo em Lages, Paso de los Libres ou Montevidéu, segundo os palpites que se dividiam. Testemunhos mais atrevidos ousavam apontar algum amigo ou parente que teria avistado o anão enrodilhado à viúva nas vizinhanças da casa dela, num rancho ao pé dum riacho ou num quintal ao fundo. Uns poucos teriam mesmo visto o anão, num matagal, de pé, espichado para alçar-se até a mulher mais alta... Meras especulações – como, aliás, a maioria dos causos atribuídos ao Anão Castelhano, alguns mais correntes, outros menos abertos. O mais secreto de todos tinha por fonte de origem a inesperada indiscrição de alguns dos agregados do coronel. Pois nenhum de seus capangas ousou mencionar, alto e de bom som, em público, a visão do súbito revólver que, naquela madrugada na praça, tinha irrompido nas mãos da mulher que havia disparado. Nem um só deles sabia ao certo se a viúva alvejara o anão pelo ódio que a tomara ao saber-se desprezada – ou se o matara por amor, para impedir que ele sofresse os horrores de ser degolado e sangrado como um bicho. Houvesse sido por despeito ou misericórdia, somente ela poderia ter revelado para alguém as razões de seu crime desconhecido. Mas, por motivos óbvios, escolheu calar-se. E, segundo mexericavam algumas vozes, unicamente à custa de muitos fogoneios de sedução, ela havia conseguido convencer o coronel de sua inocência e, repelida a calúnia, tinha prosseguido em sua vida de protegida do caudilho poderoso. Já perdoada e bem contente, dera à luz a um par de gêmeos e, dois anos depois, a mais um terceiro filho bastardo do coronel.

À deriva desse mesmo manancial de casos secretos, rumorejava ainda um outro, este bem mais sigiloso, fechado no interior de algumas raras famílias. Murmuravam que a morte do anão havia sido apenas uma cena de picadeiro, montada pela arte astuciosa dos namorados. Uma pistola de teatro, uma bala de festim, uma bolsa de pano colada junto ao peito e cheia de um líquido encarnado... Nada além de uma representação executada por um artista tarimbado no teatro... Logo que a praça se esvaziara, o anão se erguera da cova e, sem ninguém para vê-lo, muito alarife, “ressuscitara”. Para quem acreditava nesses fatos cochichados, era fácil deduzir que o anão, nos intervalos de suas excursões pelo mundo, costumava retornar, em surdina, à cidade. Em X., permanecia oculto, mais ou menos escondido nos porões da casa da viúva, em suas cercanias, na beira do riacho, nos matos próximos. E também no antigo rancho reconstruído, onde agora eram armazenados queijos, morcilhas, vinhos e outros mantimentos consumidos pelo casal que, para defender sua união, tivera de torná-la invisível. Durante as ausências cada vez mais longas do coronel envelhecido e, depois, adoentado até morrer, o anão pudera acompanhar o crescimento de seus filhos – os gêmeos e mais o terceiro.

O século passou, disparado e já não existe nenhuma testemunha viva do alegado crime que teria ocorrido em X. lá pelos começos de seu início. Elefantes, coronel, capangas, palpiteiros, o anão e a viúva há muito já nos deixaram.. E também os seus três filhos que, para tranqüilidade de todos, não haviam herdado a reveladora pequena estatura do anão. A genética – qualquer que tenha sido o gen em causa – poupara, feliz ou infelizmente, aos filhos e aos netos , que, apesar da bastardia, puderam apresentar-se como descendentes do coronel poderoso, já transformado em personagem histórico e nome de rua em X. . O tempo, em sua carreira, às vezes não deixa outras marcas além daquelas que a poeira de sua passagem levanta nas imaginações: um plátano maior dando sombra na praça de uma estação agora desativada e serena, um casal continuando a viver o seu amor persistente... E, ainda, a marca de um passado que se reafirma. Alguém que, várias gerações depois, herda de seu ascendente a estatura reduzida que o diferenciou - além da mágoa entranhada de uma tristeza difícil de levar sem os legados sobressalentes de suas habilidades e perícias. Alguém, também anão como o Castelhano, e que, por esse motivo, apesar de incomodado e algo desgostoso, sente que tem um dever a cumprir para com seu antepassado. Esta é a missão que, segundo a tradição transmitida em minha família, como descendente e semelhante, tento realizar aqui, ao reviver a enevoada memória de meu bisavô Lano Serino Fuentes com sua amada Lila.

 


Um escritor seminal

A geografia da literatura de Roberto Bittencourt Martins é onírica, e nesse espaço se misturam lendas e versões da realidade criadas social e pessoalmente. Os fatos são ilusórios diante das versões mitológicas que surgem das ruas, das esquinas, das casas. O território dessa ficção, na maior parte de suas histórias, é o pampa, suas cidades solitárias, seus imensos vazios; a história petrificada em lenda.

O Anão Castelhano, conto inédito do autor, é mais uma comprovação da qualidade singular da literatura desse gaúcho que é psicanalista no Rio de Janeiro. Ao contrário de seu romance Ibiamoré – O Trem Fantasma, que parte da lenda para chegar aos fatos, este conto inicia com os fatos, e Roberto chega a citar o historiador de Santana do Livramento, Ivo Caggiani, para se referir às mudanças acontecidas no início do Século XX. Mas os fatos logo se esfumaçam e versões duvidosas, sem comprovação, transmutam-se e assumem proporções épicas. As narrativas fantásticas se multiplicam, uma explicação nova por dia. Essa capacidade popular de mitificar seu quotidiano vem sendo pasteurizada pelas novelas de televisão, de consumo imediato. Mas enquanto existirem histórias como a do anão castelhano e as várias versões de seu amor, qual teria sido seu fim, haverá uma literatura forte e duradoura. Roberto Bittencourt Martins é um escritor seminal. Seu trabalho combina realismo e imaginação, o mundo concreto e o do sonho, com uma densidade rara. E dessa matéria se cria a grande literatura.

José Onofre