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“Nos livros regionalistas, o homem de posição social mais elevada nunca tem sotaque, não apresenta peculiaridades de pronúncia, não deforma as palavras, que, na sua boca, assumem o estado ideal de dicionário. Quando, ao contrário, marca o desvio da norma no homem rural pobre, o escritor dá ao nível fônico um aspecto quase teratológico, que contamina todo o discurso e situa o emissor como um ser à parte, um espetáculo pitoresco como as árvores e os bichos, feito para a contemplação ou divertimento do homem culto, que deste modo se sente confirmado na sua superioridade". Antonio Candido


INTRODUÇÃO OU DE COMO A AMÉRICA TEVE DE SER INVENTADA PELOS AMERICANOS

La búsqueda del presente no es la búsqueda del éden terrestre ni de la eternidad sin fechas: es la búsqueda de la realidad real.” Octavio Paz


Durante décadas a “realidade real” da América não existiu. Era válido apenas o que transplantado de nossas antigas metrópoles. O latino-americano não pensava: ou por descender de europeus de segunda classe, por miscigenar-se a índios “selvagens” e a negros “inferiores”, ou por habitar, na América, regiões que não eram, segundo a mentalidade urbana e europeizante de próceres como Domingo Faustino Sarmiento, propícias ao empreendedorismo. Os determinismos de todas as ordens foram reforçados pelo positivismo, que trazia a idéia de uma história linear e eurocêntrica. E, desta forma, as visões de América Latina que iam sendo construídas eram aquelas criadas ou autorizadas desde um prisma logocêntrico europeu.

Por esse ponto de vista a América era uma Europa incompleta, com nações carentes de soluções aos seus problemas básicos. Entretanto, desde a década de 1810 encontramos um pensamento social criollo que quer, ainda que com interesses específicos de classe, a América independente e una: Bolívar, San Martín, Moreno. Após o período de luta pelas independências desses primeiros “pais fundadores” e o início da construção do Estado (já no período dominado pelas oligarquias), irá se desenvolver na América, um pensamento social dividido em dois grandes temas orientadores como pontua Devés Valdés (2000): modernização e nacionalismo, idéias aparentemente (e em seu trabalho) conflitantes, se pensarmos que a idéia do nacionalismo passava pela retomada dos valores autóctones, teoricamente opostos à modernização.


Embora não possamos pensar nesses dois problemas latinoamericanos de uma forma tão estanque como a desenvolvida por Devés Valdés, ainda assim, didaticamente, são dois orientadores fundamentais de uma discussão que prevê esses temas.


O tema aqui eleito se insere dentro do princípio da busca de uma identidade nacional argentina (e, por extensão, latinoamericana, porque carrega traços comuns a diversos países do continente ou mesmo algumas de suas regiões), em primeiro lugar, aparente na obra maior do escritor argentino Ricardo Güiraldes. Esse autor pertenceu a movimentos de vanguarda que buscavam encontrar uma cultura e um pensamento social latinoamericanos independentes e autênticos, voltados para questões artísticas permeadas pelos temas nacionais e regionais.


O que se busca é relacionar a obra e a vida de Ricardo Güiraldes com textos que versam sobre o pensamento social latinoamericano e ideias fundamentais constituintes de sua obra maior Don Segundo Sombra, que acabou por legitimar-se, na Argentina, juntamente com Facundo e Martín Fierro, em texto canônico para a construção da identidade nacional argentina.


Assim como existe a noção a respeito da dependência de uma literatura regional latinoamericana em geral, também existiu, durante muitas décadas, a ideia de que a América Latina não era capaz de “pensar” por si própria. Aquilo que era produzido em termos de pensamento social na América Latina estava sempre, de maneira indelével, ligado ao que se produzia na Europa, nosso grande paradigma.


Se para Oswald de Andrade (1924) essa influência não existe, mas há a sua “devoração” (e após a digestão uma recriação de forma adequada aos valores latinoamericanos, a partir de nossos ancestrais autóctones); para a grande maioria dos críticos, até o século XX, certa independência de formulação filosófica não existia. Foi necessário o surgimento de autores exemplares para que houvesse vozes destoantes nesse contexto de homenagem à Europa e um deles é Ricardo Güiraldes.

Muitas das pistas necessárias ao estudo da obra de Ricardo Güiraldes são encontradas naquela que é, sem dúvida, a melhor edição de Don Segundo Sombra, pela ALLCA XX, na qual encontramos, além da obra completa, com notas do próprio autor, vários estudos de ordem crítica, filológica, intratextual, discursiva e da vida do autor e sua inserção em movimentos de vanguarda.


RICARDO GÜIRALDES E O PERIODISMO ARGENTINO

“Huir lo viejo.
Mirar el filo que corta una agua espumosa y pesada.
Arrancarse de lo conocido.
Beber lo que viene.
Tener alma de proa.”
Ricardo Güiraldes

Se nosso tema é “pensamento social latinoamericano: o diagnóstico dos males e a invenção das soluções”¹ supomos que o dito “diagnóstico dos males”, bem como as “soluções” análogas foram expostos nos textos fundadores que referenciaremos aos longo do artigo e em seus comentadores. Entre nossas preocupações estava a de ler em textos a partir do século XIX o que se pensava dentro da América Latina sobre a própria: quais os problemas enfrentados e como enfrentá-los e então analisar como os ensaios tratavam a questão nacional.


A respeito disso constatou-se que, na América Latina do século XIX, quando nossos autores começam a escrever, não existe, ainda, uma definição do quê, exatamente, sejam seus escritos, os quais até hoje não são passíveis de serem incluídos numa ou noutra categoria. Podemos dizer que esses escritos são híbridos, porque reúnem diversas categorias: são jornalísticos, panfletários, literários, políticos.


Em tais ensaios, que dão a tônica aos primeiros textos sobre a origem das nações latinoamericanas, vemos a possibilidade de ficções orientadoras das nacionalidades, de símbolos nacionais e de mitos de nacionalidades. Existiam duas possibilidades em relação a esses discursos no que diz respeito a seu matiz predominante: políticos ou culturais, através da literatura e da intelectualidade engajada na publicação dessas idéias fermentadoras de um espírito nacional.


Após um período inicial, dos chamados “próceres da Independência”, há uma corrente que desenvolve análises da ordem do “determinismo geo-climático/racial”, com a obra Facundo (1845), de Domingo Faustino Sarmiento, já citada, na qual vemos o surgimento da dicotomia que cinde a América em duas: bárbara e civilizada, rural e urbana, atrasada e cosmopolita, com valores negativos e positivos, respectivamente. Reflexo de ideias já capitaneadas pelas oligarquias agrárioexportadoras, tal dicotomia perdurará pelo restante do século XIX, atingindo até as ideias mais recentes, ainda que em tom de crítica contemporaneamente.


No desenvolvimento das ideias sociais latinoamericanas chega a influência positivista, que não rompe com a noção que vê uma América incompleta, atrasada e devedora da tradição européia. É com o “arielismo” da virada do século XIX para o XX que temos esse rompimento, com a criação das primeiras idéias nacionalistas, as quais, entretanto, não se desligam de um modelo europeu como paradigma.


Mas é o panorama das décadas de 1920 e 30 que aqui nos interessa, já que é nesse momento histórico que se consideram as idéias desenvolvidas como nacionalistas. Tal mudança de rumo, embora já iniciada com o arielismo, tem relação direta com os eventos mundiais do período. O fim da Bélle Époque, imposto pela Iª Grande Guerra, somado ao crack da Bolsa de Nova Iorque em 1929, traz um verdadeiro desencanto em relação ao mundo europeu e às escolhas do paradigma ocidental. Somados às Revoluções Mexicana e Russa tais eventos apontam ao latinoamericano a necessidade de se buscar um “ser nacional”. Com a nova conjuntura, a partir da década de 1910, há a crise das oligarquias na América Latina e a transformação do pensamento social no continente, com a noção de que há um verdadeiro fracasso europeu.


É nesse contexto que têm impulso os movimentos vanguardistas na América Latina, seja através dos Manifestos no Brasil ou de periódicos na Argentina. 


Segundo José Horta Nunes, ao estudar a formação da identidade nacional nos discursos de Gilberto Freyre e de Oswald de Andrade, “manifestos são uma forma textual característica dos movimentos de vanguarda” (1993). Desta forma podemos, talvez, situar a obra literária Don Segundo Sombra, ele mesmo como um manifesto, já que Ricardo Güiraldes fez parte de movimentos de vanguarda argentinos, conjuntamente a outros nomes consagrados da literatura e da crítica argentinas, como Jorge Luis Borges e Leopoldo Lugones, por exemplo.


A partir do que discute Nunes talvez pudéssemos afirmar que Don Segundo Sombra aparece como um produto híbrido dentro dessa noção de Manifesto, uma mescla da proposta dos dois autores analisados por Nunes: Oswald de Andrade e Gilberto Freyre. Se o que propõe Oswald diz respeito a um caráter “totalizador e cosmopolita” e o que Gilberto Freyre quer é destacar valores de fundo regional, Don Segundo pode ser considerado como tendo um resultado que soma as duas propostas.


O resultado de Don Segundo Sombra, ao ser publicado, em 1926, é um livro que relata a história de uma aprendizagem – ser gaucho – e de uma revelação e uma escolha – deixar de ser guacho², tornar-se gaucho e depois descobrir-se senhor. A aprendizagem de Fabio Cáceres transcende o trabalho braçal do gaucho: cresce como homem e se descobre capaz, torna-se andarengo, “dono” daqueles caminhos. A transformação que então se dá, de guacho a gaucho, implica na construção de uma identidade. A recepção dessa identidade implícita na obra desdobra-se posteriormente, porque o que ali se retrata, embora imerso em aspectos regionais fundadores (fala, indumentária, costumes, ocupações, tradições etc), será recebido e reconfigurado em identidade nacional.


Então, se a partir do local, do regional (como quer Freyre), Güiraldes atinge o “universal”, cosmopolita argentino (como deseja Oswald), temos uma síntese do que propunham Oswald de Andrade e Gilberto Freyre. A propósito, a própria figura de Güiraldes é sintética nesse sentido: apesar de oriundo da Província de Buenos Aires e do meio rural (interior de San Antonio de Areco), Güiraldes é um homem cosmopolita, que vive entre Buenos Aires e Paris, cidade em que transita pelos meios intelectuais mais ativos dos anos 1920. Apesar de sua vivência européia (morre em Paris, em 1927), é justamente em seus últimos anos de vida que escreve sua obra maior (1919-1926), na qual rebusca uma Argentina ainda existente, mas atemporal, que tanto poderia ser visualizada no final do século XVIII, como em todo o XIX e ainda no XX.


Entretanto, a inserção de Güiraldes em movimentos de vanguarda se dá ao iniciar na colaboração do periódico Martín Fierro, já em suas últimas edições. Segundo Alfredo Blasi, a grande contribuição de Güiraldes não é a esse movimento, mas ao que irá fundar: o inicialmente “editorial” Proa, que se transforma em revista com projeção internacional e com a contribuição de diversos intelectuais argentinos hoje reconhecidos, como é caso de Oliverio Girondo, Pablo Rojas Paz, Jorge Luis Borges, além de colaborações internacionais, como a do teórico e tradutor francês Valery Larbaud.


Durante todo o período de escritura de Don Segundo Sombra (1919-1926) esteve Ricardo Güiraldes ligado a movimentos literários vanguardistas no Rio da Prata. Para Blasi, Don Segundo Sombra e os primeiros livros de Jorge Luis Borges foram o resultado mais proeminente do vanguardismo literário naquela época na região platina. O movimento acaba sendo chamado posteriormente de “martinfierrismo” e seus componentes de “martinfierristas” e dele farão parte não só Güiraldes, mas também sua esposa, Adelina del Carril, a qual demonstra ser uma interlocutora importante a toda a sua obra e principalmente cooperativa em sua profícua correspondência com o escritor francês Valery Larbaud, divulgador de Güiraldes na Europa.


As vanguardas literárias no Rio da Prata concentraram-se em torno de seu movimento inicial, o periódico Martín Fierro. O grupo que aí orbitava considerava Buenos Aires como uma sociedade de aparências e propunha, ainda que sem métodos melhor trabalhados, uma nova sensibilidade e uma nova compreensão, a partir do Manifesto de Oliverio Girondo, um dos “martinfierristas”. O periodista Iturburu pede uma renovação artística, de indagação, de busca. Tais idéias teriam, também, tido inspiração na conferência que proferiu José Ortega y Gasset em Buenos Aires, no ano de 1916.


No Martín Fierro, uma das discussões aparentes é a respeito do descontentamento em relação à “neutralidade” do candidato Hipolito Irigoyen à presidência da República, o qual não teria, segundo os periodistas, um projeto nacional. Entretanto, em 1925, Güiraldes e Adelina del Carril dão início a um novo percurso periodístico: a fundação da revista Proa, com a contribuição de vários dos antigos “martinfierristas”, inclusive Borges.


Segundo Blasi, “el panorama del movimiento vanguardista en el Río de la Plata reconoce básicamente dos órganos de expresión: el periódico Martín Fierro y la revista Proa”. No decorrer de seu um ano de diretor da revista Proa “Ricardo tiene en claro una misión continental que su revista há de cumprir y sueña com que Proa signifique un ‘foco central de juventud en lengua española’” e a quer distinta de Martín Fierro, com um novo fôlego.


Nesta época Güiraldes e os de Proa são leitores vorazes das revistas da nouvelle critique francesa: Nouvelle Revue Française, Commerce e Navire d’Argent, nas quais Güiraldes chegará a publicar em algum momento a partir da intervenção do amigo e cúmplice Valery Larbaud, que vê Proa como algo que “situará” o continente latinoamericano ante a audiência européia. Os colaboradores de Proa percebem na Nouvelle Revue Française críticas ao positivismo que serão assimiladas e palavras de ordem tais como: “critiquer c’est partager, partager a tout ce que j’aime” e “sentir et comprendre”, nas quais a relação intuitiva com a obra era o mote, sem que houvessem teorias ou métodos aparentes. Em 1925, em Buenos Aires, já não se discute a importância e a vitalidade de Proa.


GÜIRALDES, LA PORTEÑA E A ESCRITURA DE DON SEGUNDO

La idea de modernidad es un subproducto de la concepción de la historia como un proceso sucesivo, lineal e irrepetible. [...] La historia es imprevisible porque su agente, el hombre, es la indeterminación en persona.” Octavio Paz

O “aislamento” de que Ezequiel Martínez Estrada nos fala em Radiografía de la Pampa é um elemento basilar na obra de Güiraldes. Se Martínez Estrada aproxima-se em sua narrativa de um estilo à maneira de Euclides da Cunha em Os Sertões, com a descrição de paisagens e estudos geoclimáticos, para justificar os aspectos do homem do pampa, o próprio gaucho, esses elementos estão muito bem especificados e tornam-se mesmo personagens na narrativa de Güiraldes.


Em 1926, após incessantes pedidos de Adelina para que se afastasse da efervescente atuação de Proa e retomasse a escritura de Don Segundo, iniciado em 1919, Ricardo aceita “isolar-se” em La Porteña, a estância de seus pais, em San Antonio de Areco, província de Buenos Aires, a fim de finalizar sua obra maior.


Os momentos de escritura são freqüentemente interrompidos por períodos de convalescência (Güiraldes é asmático, fuma muito e tem uma saúde bastante debilitada) e de entretenimento nas “lidas” rurais. Durante os meses em La Porteña (março a maio de 1926), Ricardo tem uma vivência campeira, convivendo com peões e mateando com “los reseros”. Güiraldes ainda pinta (“Me gustaría pintar momentos”), monta, doma uma potra, toca “la guitarra”, entre diversas atividades físicas, artísticas e campeiras.

É nesta época que Güiraldes, segundo ele mesmo e Adelina del Carril, não escreve Don Segundo, mas vive-o com intensidade: “No he trabajado esta tarde, pero esto no me mortifica porque de la conversación con los reseros puedo servirme para Don Segundo Sombra. En todo caso me pongo en ambiente.”


            No diário que produziu à época, um dos melhores documentos para compreender o processo de criação de Don Segundo, Güiraldes cita várias vezes Don Segundo Ramírez, sua fonte de inspiração para o arquétipo de gaúcho exemplar, muito embora Ernesto Sábato não necessite de tais “provas”:

Un crítico argentino, que pretende utilizar a Marx como maestro, sostiene que el Don Segundo Sombra de Güiraldes no existe, que es apenas la visión que un estanciero tiene del antiguo gaucho de la provincia de Buenos Aires; lo que es más o menos como acusar a Homero de falsificador porque exhaustivos registro llevados a cabo en las montañas calabresas y sicilianas no han dado com un solo cíclope. (...) Por ahí andaba todavía el modelo que empleó Güiraldes para inventar su personaje. Creo que se llamaba Segundo Ramírez. Los astutos administradores de la fama lo exhibían a los turistas extranjeros. Evité la tristeza de conocerlo, pero aun así puedo asegurar que era un mistificador, porque el auténtico don Segundo es el mito imaginado por Güiraldes, que misteriosamente reveló un secreto de la condición pampeana. Inmortal como todos los mitos.

Já para Adelina del Carril, “Es una obra de mucho carácter y muy criolla, com la exaltación de todas las cualidades gauchas” e “Don Segundo es todo el alma de una raza. (...) Es la esencia de la Pampa com su grandeza, belleza y monotonía.”


Em setembro de 1926 Don Segundo chega a Paris e tem duas edições esgotadas de dois e cinco mil exemplares respectivamente. A recepção que à obra faz Valery Larbaud na França é altamente elogiosa, bem como o artigo de Leopoldo Lugones no jornal La Nación. Há críticas negativas também; Güiraldes é considerado por Paulo Groussac como alguém que “esqueceu o smoking por cima do chiripá” Entre as críticas elencadas por Blasi, uma é especificamente interessante:

Ramón Cisneros, viejo capataz de La Porteña me decía: ‘Tan bien que está el libro señora, el gaucho como es, el gaucho trabajador y honrao, no como en el Martín Fierro, el matrero, pendenciero, este es el gaucho de güena ley sencillo y trabajador... y cuando pelea es porque no tiene outro remedio, pa defenderse si señora el gaucho como no es más... Ricardo hablnado com Don Segundo le explicaba que hay cosas en el libro que ni el las hay dicho y hecho. No es así?”

Mais do que a visão de críticos literários, a opinião acima reproduzida mostra a recepção da obra pelo “próprio” gaucho focalizado, e suas ideias sobre a figura do gaucho e de Martín Fierro como um gaucho malo. Já para Lugones, Don Segundo vai além de Martín Fierro, dando uma nova visão sobre o gaucho dentro dessa tradição “ilustre”.


A SÍNTESE: DON SEGUNDO E A CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE

Para o crítico Ramiro de Maetzu, existem motivos para o “reaparecimento” do gaucho na literatura argentina em tal momento e que corroboram as noções defendidas por Martínez Estrada ao configurar o homem “de la Pampa”:

Hay una razón patética para que esse libro se haya escrito ahora, en estos años. El gaucho ha creado la Argentina. Ha abierto paso a la civilización en el desierto. Ha ido com el ganado adonde no había antes más que caza. Ha preparado el advenimiento del arado. Y a medida que su misión queda cumplida, se siente condenado a desaparecer.”

Faz sentido o que fala Maetzu, ainda que em crítica à obra de Güiraldes, porque o mesmo é perceptível em relação ao gaúcho riograndense, revigorado pela literatura quando correu o risco de perder-se no processo de urbanização e modernização do estado. Para Rodríguez-Alcalá, foi numa época de crise moral do mundo (o período pós-Iª Guerra Mundial) que Güiraldes compôs sua maior obra, e isso fazia parte de um resgate do “velho mito nacional e à sua elevação a uma dignidade limpa já das impurezas do passado”. Enquanto o mundo desmoronava na Europa e as ilusões eram perdidas fazia-se fundamental à sobrevivência latinoamericana encontrar suas raízes e delas extrair um ser que reunisse as qualidades necessárias para se forjar uma identidade nacional que viesse a ser aceita pela população.


Seguem-se as críticas a Güiraldes e o debate entre os autores. Leopoldo Marechal e Amado Alonso defendem que Don Segundo é uma obra de arte e que deve ser analisada como tal, não como algo que reproduza uma realidade, seja local, regional ou argentina. A discussão chega ao Brasil através de Jorge Schwartz, em “Don Segundo Sombra: uma novela monológica”, na qual o autor reafirma a inadequação de Güiraldes, usando o smoking por cima do chiripá.


Ver-se-á que muitas dessas críticas feitas são, segundo Rodríguez-Alacalá ad hominem, não constituindo argumentos para julgar ou valorar a obra em termos estéticos e/ou históricos. O fato é que Güiraldes não era considerado um autor sério por seus compatriotas, sendo visto como apenas um burguês escrevendo sobre algo que não conhecia.


Estudos póstumos, baseados em cartas trocadas entre Güiraldes e seus amigos escritores desmentiram uma série de ideias a respeito do escritor enquanto vivo: sua imagem era de um “cajetilla”, um afrancesado; mas seus escritos acabaram por denotar uma forte consciência nacional, um sentimento de nacionalidade que ficará marcado em Don Segundo através da idéia de “pátria”. Portanto, eis aí um paradoxo a respeito do escritor:

Que un cajetilla adornado com las prendas mencionadas [músico, bailarino exímio de tango, cantor, pintor, afora escritor e poeta mediano] pretendiera, a la vez, acaparar para sí la fama de intérprete de su pueblo, convertiéndose en el heredero del máximo poeta nacional, era una avilantez imperdonable! La literatura no es ni debe ser oficio de ahitos aristócratas holgazanes, millonarios blasés, saciados de placer! (...) Por outra parte, pensarían las almas envidiosas: Qué puede entender un hombre rico de cosas de podres?Cómo aceptar que la altaburguesía terrateniente engendre un hombre de latras que tome por tema a um proletario de la Pampa? Absurdo!”

Tais “contradições” são elucidadas através da leitura da correspondência de Güiraldes com vários amigos, nas quais se percebe que Ricardo estava “profundamente desilusionado de Europa”, “que la patria argentina era en él un gran amor y una hondísima preocupación”, “que él veía en el gaucho el único tipo de hombre argentino com fuerte personalidad” (grifos meus)e, finalmente, “que él creía que no podía esperarse de Europa una ética inspiradora; que esta ética la tenían en la Argentina en las virtudes del hombre de la Pampa”.


Para outros autores, como Da Cal, só sendo “hijo del patrón” (uma das grandes críticas de que sofria Güiraldes) e tendo viajado, conhecido outras sociedades e a cultura ocidental é que Ricardo Güiraldes teria um distanciamento suficiente para poder construir a figura do gaucho como representante da nacionalidade argentina. Portanto, o fato de ser bem nascido a partir daí não se configura mais como um fator desabonador, mas justamente o contrário: qualifica o autor como alguém que tem a visão de duas realidades distintas:

Güiraldes, hijo de estanciero, tempranamente alijado del medio [vai com os pais a Paris muito cedo, com cerca de dois anos e volta a Argentina falando o francês e o alemão], viajado y cosmopolita, empapado en paisajes extraños y embebido de vida y literatura ajena, regresa a la Pampa. Pero sus viajes y su cultura, en lugar de destruir en él al campero, contribuyen a afirmarle la certeza de que el cimiento de su personalidad, humana y literaria, residía en el poso literario de su niñez. Vuelto al medio, su cosmpolitismo fue el vigoroso agente catalizador de esta reacción, porque le permitió mirar a lo suyo com ojos parcialmente enajenados por la visión de otras tierras y otras vidas; y com ello la posibilidad de ver lo próprio en espetáculo, en una amplia perspectiva, com distancia suficiente; pero sin estar del todo fuera, sintinéndolo aún como próprio.”

A partir de então, a vida de Güiraldes passa a ser vista como legitimadora de sua construção literária e identitária e não como um assunto escrito por quem não estivesse apto, do pondo de vista de suas vivências, a fazê-lo.


Outro dado de Don Segundo em relação à transformação pela qual passa o gaucho após o (gaucho) Martín Fierro é colocado por Rodríguez-Alcalá, ao referir-se à crítica de Borges, que busca o épico em Güiraldes: “Recuerdese que Don Segundo no es un gaucho cuchillero y que cuando hay un duelo a muerte en la novela, los duelistas no son los heróes del libro. Al revés que Martín Fierro, Don Segundo no há matado nunca.”


Essa afirmação de Rodríguez-Alcalá nos traz a uma conclusão primordial para a constituição da nacionalidade argentina. Segundo Leopoldo Lugones, na crítica talvez mais “canônica” que se faz a Don Segundo Sombra, na dialética de valoração que assume a constituição do gaúcho argentino, o Facundo de Sarmiento (1845) seria a tese, o Martín Fierro de Hernández (1872) seria a antítese e, finalmente, Don Segundo de Güiraldes (1926), seria a síntese.


A construção da identidade nacional argentina em Don Segundo Sombra pode ser encontrada no fato de que Fabio Caceres (o narrador), convertido em gaucho sem cultura seria incompleto como símbolo da Argentina do século XX, “educada para afrontar las incertidumbres del porvenir”. Mas, para Rodrígues-Alcalá, a síntese como o é o livro de instituições do humano com o nacional na consciência argentina, o afilhado de Don Segundo deveria ser culto, ou seja, “síntesis él mismo del hombre del campo y del hombre de la ciudad. Con el personaje de Güiraldes, la oposición estabelecida por Sarmiento entre ciudad y campo, desaparece”.


Güiraldes acaba ele mesmo sendo o símbolo desta argentinidade contemporânea à época em que escreve. Se for verdade que desmonta a oposição secular argentina encontrada por Sarmiento em Facundo, então encontra o caminho da construção de uma identidade menos conflituada e mais orgulhosa.


Se Don Segundo é cíclope, como quer Sábato, e se Güiraldes consegue, como quer Lugones, obra muito maior que a escritura de um livro (já que acaba por constituir-se na identidade nacional argentina e, por que não, em um símbolo latino-americano), conseguiu o autor pôr um fim à dicotomia que cinde as nações latino-americanas em civilização versus barbárie? Seria Don Segundo o representante de nossa “raza cósmica”? Talvez, agora, a barbárie seja outra, ou não.




¹ Parte da ementa da disciplina sobre Pensamento Social Latinoamericano, do Programa de Pós Graduação em História da UFRGS, no semestre 2002/1, ministrada pelos professores Dra. Claudia Wasserman e Dr. Cesar Guazzelli e que deu origem a este artigo.
² Diz-se guacho ou guaxo o animal de estância que perde a mãe e em geral é alimentado por pela mão humana. É o órfão rural, principalmente no linguajar da vivência e da literatura platinas.



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