X Jornada CELPCYRO

img banner

Informe CELPCYRO

Cadastre-se e receba nosso INFORME
Nome
E-mail*
Área de Atuação

Redes Sociais

  • Twitter
  • Windows Live
  • Facebook
  • MySpace
  • deli.cio.us
  • Digg
  • Yahoo! Bookmarks



Imprimir E-mail

Aspectos históricos


Ao ser convidado pelo Dr. Facundo, Presidente da Fundação Universitária Mário Martins, para realizarmos uma atividade conjunta daquela instituição e do CELP Cyro Martins, na qual abordaríamos aspectos vinculados à função paterna e sua interface com psicoterapia e literatura, senti-me grato pela oportunidade de expressar referências que vêm de minha história pessoal e profissional. Creio que provavelmente também foram compartilhadas por muitos dos presentes ao evento, visto que Mario Martins e Cyro Martins, que dão nome às duas instituições, tiveram trajetória compartilhada em muitos momentos, influenciando inúmeros profissionais e, em decorrência, uma infinidade de pessoas que se trataram com eles.


Antes de abordar aspectos da importância dos modelos objetais paternos no desenvolvimento de uma abordagem psicoterápica, convém conhecermos as origens de nossa formação profissional.


Fui buscar no Novo Dicionário Aurélio (ed. 1975) a definição de pai, e o próprio exemplar do dicionário, velho e manuseado, herdado de meu pai, me levou a muitas lembranças pessoais, de quando o via incansavelmente escrevendo seus textos ou dedilhando em sua máquina de escrever. Recordo que em minha adolescência resolvi fazer um curso de datilografia - os mais jovens talvez nunca tenham usado uma máquina de escrever, mas era o must do período - , com intuito de auxiliar na datilografia dos trabalhos de meu pai. Doce ilusão de que, com a impulsividade da adolescência, teria a disciplina necessária para passar horas e horas naquele trabalho. Pois, mesmo os adultos, se intrigavam com sua capacidade de clinicar e ao mesmo tempo ter tanta produção literária e científica. Ele, por sua vez, costumava referir que escrevia no "rabo das horas".


Mas deixemos o devaneio da mente e suas lembranças para retomar o nosso rumo... Entre os vários significados do dicionário sobre a palavra pai, fiquei com as duas seguintes, por estarem ligadas ao nosso tema: Homem que deu ser a outro; Criador, fundador, instituidor (de uma doutrina, uma escola artística ou científica, uma instituição).


Talvez a origem do desenvolvimento científico trazido por aqueles dois personagens de vulto de nossa história médica e psicoterápica possa ser melhor entendida a partir de alguns resgates históricos de suas vidas, que para mim começa a sedimentar-se por uma circunstância que inevitavelmente os ligou. O relato é de Cyro Martins (está em A Dama do Saladeiro -.Movimento, 1ª ed. 1980):


Onze e meia da manhã do dia da formatura. Mário Martins e eu colamos grau na secretaria, perante o velho Sarmento. Velhos amigos e companheiros de estudo, descemos, no entanto, a escadaria da Faculdade com as vistas voltadas para miras diferentes, as minhas longínquas e incertas, as dele mais próximas e definidas. Até nem me lembro sobre o que falamos àquela hora daquele dia de dezembro de 1933. À noite a turma colaria grau no salão nobre, na estica, de linho-branco, afinal vitorioso. Não era por orgulho ou outras diferenças que nós, Mário e eu, não compareceríamos incorporados aos colegas para receber o ambicionado canudo, mas simplesmente por pobreza, bem compreendida e aceita com naturalidade. O custo do linho branco ultrapassava longe as nossas nenhumas posses, por mais que cavoucássemos no forro dos bolsos.


A partir daí o rumo de ambos teve uma separação de alguns anos, cada um retornando a seus rincões fronteiriços (Mário, para Livramento e Cyro, para a pobre e pequena Quaraí- onde exercitaria "a clínica dos três pês: parentes, pobres, putas. Era uma medicina precária, carente dos recursos da capital; precária, mas rica de ensinamentos e de tipos humanos.")


Na seqüência da vida, dois pontos marcaram profundamente os seus rumos profissionais, do que provavelmente nenhum dos dois naquele momento tinha a idéia da dimensão, tampouco no que seus desenvolvimentos pessoais implicariam para várias gerações de psiquiatras, psicanalistas e psicoterapeutas. Sem dúvida, objetos paternos de identificação de grande importância. E não esqueçamos do objetivo maior de ambos: ampliação de sua capacitação profissional para melhor tratar seus pacientes.


O primeiro fato que julgo de extrema significância foi nos idos de 1937 quando, num bafejo da sorte (em contraste com a desgraça nacional do Estado Novo, segundo Cyro), houve o concurso público para sanitarista e psiquiatra do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Ambos candidataram-se, foram aprovados e nomeados psiquiatras, o que resultava estarem oficialmente autorizados a abrir consultório "na rua da Praia, quiçá na Galeria Chaves", e oferecer à população os seus préstimos como especialistas em doenças mentais.


A segunda situação de vida que trouxe um nova perspectiva, foi quando, segundo Cyro Martins,no inverno de 1943, numa tarde sombria, dessas que tornam mas curtas as esperanças da gente, nos apareceu no consultório um senhor argentino oferecendo a assinatura da "Revista de Psicoanálisis", que em artigo de Arnaldo Rascovsky expunha para os psiquiatras da América Latina a possibilidade de formação psicanalítica em Buenos Aires. Resumindo, Mário foi o primeiro psiquiatra latino-americano a topar a parada.


"Retornou em 1947, para iniciar aqui uma nova etapa existencial, de extraordinária relevância, não apenas para ele, mas para todos nós, para a medicina de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul e do Brasil. E da nossa cultura em geral, se considerarmos as dimensões que adquirem os conhecimentos psicanalíticos na seqüência em cadeia das diferentes áreas do saber." ( Palavras proferidas nesta mesma Fundação, em 19/03/1988, quando da palestra "Mário Martins - Psicoterapeuta")


Através da análise, das supervisões, dos seminários e do que captavam os seus observadores no São Pedro, Mario foi transmitindo aos colegas mais jovens, ávidos da nova ciência, um tipo de relação médico-paciente totalmente novo em psiquiatria, e em nosso meio, tornando-se, assim, o implantador da psicanálise em Porto Alegre. Da mesma forma sua esposa, Zaira Martins, que também fizera formação em Buenos Aires, se tornaria a pioneira em psicoterapia infantil entre nós.


Mais tarde (1955), retornava de Buenos Aires Cyro Martins. Reunindo-se com Mário Martins, José Lemmertz, Celestino Prunnes, formaram um grupo pioneiro com os seus discípulos de primeira hora, David Zimmermann, Ernesto La Porta, Paulo Guedes, Roberto Pinto Ribeiro. Portanto, este grupo inicial sob a batuta de Mário Martins foi lutando em diversos estágios de crescimento, desde o seu engatinhar como grupo de estudos até chegar à maturidade e ser reconhecido, pela Associação Psicanalítica Internacional, como sociedade.


Minha brevíssima história não poderia deixar de citar a grande influência dos ensinamentos de Mário Martins na criação e na orientação doutrinária do curso de psiquiatria "Melanie Klein", onde, por um processo transgeracional, tive a oportunidade de fazer a minha formação psiquiátrica inicial, vinte anos após o seu início. Tive o privilégio de conhecer a maioria desses personagens da nossa história, pela circunstância de ser filho de Cyro Martins, que fez muito dessa história, incentivando ao crescimento todos que o cercaram. Ele e Mário tornaram-se modelos de formação para muitos profissionais.

Já se vai quase meio século desde que aqueles pioneiros vieram desenvolver idéias e abordagens terapêuticas psicodinâmicas em nosso meio e que, de um pequeno grupo, se ampliou para diferentes agrupamentos, com seus líderes e correntes diversificadas. Meu pai costumava me falar que o crescimento inevitavelmente leva a rompimentos e diversificações de rumo. A competitividade da natureza humana, associada à busca de poder para um regozijo narcisístico, acaba nos impelindo a tais procedimentos.


Vou ampliar nossa temática para o processo psicoterápico, onde a interação do terapeuta com o paciente resulta ser de fundamental importância no processo evolutivo do indivíduo.


Assim como anteriormente busquei uma definição de pai, aqui também me socorro de outro livro herdado, coincidentemente em edição de 1975. Trata-se do Dicionário Crítico de Psicanalise, de Charles Rycrof, onde busquei uma definição genérica de Psicoterapia: Qualquer forma de "cura pela fala" (em todas as formas de psicoterapia, uma ou outra das partes fala e, na maioria, ambas o fazem). A psicoterapia pode ser individual ou de grupo, superficial ou profunda, interpretativa, de apoio, sugestiva, com as três últimas diferindo na intenção subjacente às intervenções do terapeuta.


Sabemos nós que tal termo foi se alastrando e se banalizando a ponto de que já há alguns autores que chegam a identificar cerca de mais de 300 métodos ditos psicoterápicos oferecidos. Os instrumentos e técnicas são variados, alguns com certo rigor científico e, na sua grande maioria, apostando no poder mágico e na sedução que isso implica para o alívio do processo de sofrimento do ser humano.


Cyro Martins, em "Do Mito a Verdade Científica" (ensaio de 1956, incluso na segunda edição de O Mundo em que Vivemos - Movimento, 1998, identifica a psicanálise (e eu ousaria incluir por meu livre arbítrio a psicoterapia de orientação analítica- ou seja, a que busque ampliar o autoconhecimento e a liberdade interna do paciente) como uma forma diversa dos demais processos terapêuticos. Refere que toda a Psicoterapia não analítica cabe dentro do rótulo de Psicoterapia repressiva. A repressão é o mecanismo de defesa primordial, utilizado pelo homem desde a infância. Consiste, em síntese, em afastar da consciência todos os pensamentos, desejos, fantasias e impulsos que não se harmonizem com as normas educacionais recebidas pelo indivíduo. Cyro enfatiza esse processo psicoterapêutico, busca reforçar a consciência moral do indivíduo, propiciando maior interesse pela vida, pelo trabalho, pela comunidade, pela família, pela religião, etc. Através do apelo ao senso comum, à sugestão e à persuasão, a um autocontrole, à supressão pura e simples de pensamentos e desejos anti-sociais. Neste aspecto, as terapias cognitivas-comportamentais (inexistentes quando foi produzido tal texto), tão em voga nos últimos tempos, colidem nos fundamentos. Entretanto, temos que convir quanto à necessidade de adequar os processos psicoterapêuticos às possibilidades sócio-emocionais do indivíduo, bem como à psicopatologia da qual é sofredor e à necessidade de intervenções psicofarmacológicas.


Mas, para um seguimento importante de pessoas, a indicação de uma terapêutica analítica é liberativa. Ou seja, há uma busca do levantamento da repressão, permitindo o reconhecimento consciente dos desejos reprimidos, não se empenhando em dirigir as energias psíquicas, que se liberaram, para logros específicos. Postula porém que, uma vez livres essas energias, o amente não era uma linha reta, mas sim uma estrada muito sinuosa. Dessas figuras da vida que assumem papéis preponderantes em determinadas etapas de cada um de nós, Dr. David, também a mim honrou e enterneceu ao me convidar para ir junto com ele e sua esposa Dra. Aida Zimmermam, em 1987, ao museu de Freud em Londres (quando lá eu residia). Numa agradável tarde outonal (sem chuva, surpreendentemente) tomamos um chá, ouvimos uma orquestra de Câmara e convivemos com a nata dos psicanalistas ingleses no evento. Naquele momento, me veio a lembrança de meu pai que tanto admirava os trabalhos de Freud e que, da longínqüa Quarai, conseguiu, com a sua sede de saber, ampliar seu olhar para o mundo e aprofundar sua incursão na mente humana. Talvez então eu tenha podido entender melhor o quanto de sua emoção, relatada quando retornou do Congresso Internacional de Psicanálise na Áustria (creio que no inicio dos anos 70), em que, emocionado, cumprimentara Ana Freud.


O que tais lembranças têm a ver com o nosso tema? Penso que tudo. Pois é justamente na capacidade da absorção da empatia do momento emocional do paciente que reside um dos aspectos fundamentais do processo terapêutico. Ou seja, a sintonia fina da relação terapêutica poderá ser ajustada com um silêncio receptivo, um sorriso encorajador, enfim, a capacidade de como terapeutas assumirmos uma postura respeitosa com as dores, temores e conquistas de nossos pacientes. Muito dos quais nunca foram aceitos com as suas diferenças ou, pior que isso, foram tratados hostilmente e com pouco caso.


A trajetória de um processo terapêutico e o processo evolutivo do homem assemelham-se, quanto ao desamparo inicial da vida, ao acidentado transcorrer evolutivo na busca incessante e assustadora da ampliação da autonomia. Fica aqui mais uma vez a influência paterna em mim próprio, retomando mais uma citação de meu pai: " a infância humana é um período demasiado extenso em relação à duração média da vida, período no qual contrasta a intensidade dos impulsos instintivos, dos desejos e das fantasias...período de frustrações inevitáveis por parte daqueles de quem a criança mais depende, a quem mais ama e mais odeia, é nessa etapa da evolução psicossexual do homem, nessas precoces experiências da relação interpessoal com os pais que, em conjunção com as causas endógenas da ansiedade, encontramos as raízes da maneira de ser e reagir do homem doente e do homem chamado normal."

De uma certa forma, o processo psicoterapêutico vai repetir o movimento de ambivalência que inevitavelmente estabelecemos com os nossos objetos amorosos. Evidentemente que se, na historia da pessoa o objeto paterno tem dificuldade em assumir e executar as funções paternais de delimitar ou orientar o seu rebento, este torna-se mais inseguro quanto ao controle de sua impulsividade instintiva. Segundo Theodore Lidz, poucas coisas são tão importantes para os filhos como a autoconfiança e segurança dos pais. Ou seja, que estes não se vejam "escravizados" ou "sacrificados" pelos filhos, o que inevitavelmente reverte a carga afetiva para o lado rancoroso e agressivo. Todos esses movimentos emocionais se estabelecerão em qualquer processo psicoterapêutico, o que vai diferenciar é a forma com que se irá abordar o paciente. Entretanto, é fundamental para todos que se preocupam e trabalham com o alívio do sofrimento e ampliação do bem estar humano que tal fenômeno esteja presente.


Para encerrar esta breve charla, citarei um poema do nosso poeta imortal, Mario Quintana, que sintetiza o foco da vida:


A arte de viver
É simplesmente arte de conviver
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!


Cláudio Martins
Mestre em Psiquiatria (Unviversity of London)
um dos fundadores do CELP Cyro Martins e seu coordenador de Saúde Mental