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O HUMANISMO EM TEMPOS DE OUTUBRO E-mail
Humanismo Médico - Artigos

 

                                                  Roberto Bittencourt Martins*

 

Releio o texto de Cyro Martins sobre a necessidade de repensarmos nosso entusiasmo pelos milagres da técnica que, por mais fabulosos, não devem obscurecer nossa tomada de consciência do humano - ou seja, dessa "unidade mente-corpo denominada homem". E recordo sua concepção de um novo humanismo que, abrangendo os mais variados ramos do conhecimento , inclua também a "investigação em profundidade das emoções básicas do homem" empreendida pela psicanálise.

Depois, deixando momentaneamente de lado as reflexões de Cyro, distraio-me com a leitura do jornal do dia. Lá estão as costumeiras notícias sobre massacres e guerras que hoje privilegiam a velha Sérvia, estopim e berço da Primeira Guerra Mundial. Em manchetes ainda maiores, deparo-me com as severas investigações a respeito do namorico , nunca genitalmente consumado, entre o presidente da mais poderosa nação do mundo e uma jovem estagiária deslumbrada. Abandono a matéria , que parece demonstrar em todos os seus diversos aspectos a imaturidade dos adultos, e descubro que o telescópio espacial Hubble , chegando aos limites de suas potencialidades, acaba de captar imagens de galáxias de l2 bilhões de anos , jamais antes vislumbradas. Leio o que declara o astrônomo Robert Thompson, chefe da pesquisa : "Chegamos à fronteira do Universo". E assim verifico que as fotos retratam quase o momento em que o "big-bang" inicial fez nascer nosso Universo. Minha ignorância se indaga se existirão outros universos além deste que estamos conhecendo.

E, para neutralizar um certo espanto diante do descomunal, parto para uma nova notícia. Vinda da Inglaterra, ela relata o uso de um antidepressivo - a paraxetina - nas chamadas fobias sociais, nas quais o indivíduo manifesta ansiedade em "situações simples, como conhecer pessoas novas, ir a festas etc."; 55% dos pacientes que a utilizaram mostraram melhoras em seus sintomas - o que ocorreu também com 34% daqueles que tomaram o placebo... Essa nova informação traz à minha lembrança o artigo de um psicanalista holandês, lido e citado há algum tempo.

Em "Os tempos modernos e a psicanálise", já em l979, Van Leeuv indagava se as tendências da sociedade neste final de século não seriam contrárias à psicanálise. Questionava ele então se, num mundo cujas dimensões se haviam expandido tanto e onde o afluxo de informações causaria uma espécie de congestionamento, esse acúmulo não produziria uma certa superficialidade, constituindo-se num obstáculo contra experiências emocionais mais profundas e o pensar independente. A essa idéia de Van Leeuv, eu acrescentara outro dado : a tecnologia moderna tornara possível ao homem contemporâneo receber mais informações em um único dia de sua vida do que aquelas obtidas por seus antepassados durante uma existência inteira. Felações na Casa Branca, conflitos balcânicos, fotos dos confins do Mundo, fobias sociais - tudo isso se aglomera e confunde em minha mente. Os meios de comunicação expandiram nosso universo mental até pontos nunca imaginados - e, no entanto, reflito, continuam a existir as ansiedades diante do novo e do outro.

Van Leeuv notava ainda uma crescente tendência à fuga das relações humanas ; as pessoas pareciam desejar as descargas rápidas, a excitação e as explosões violentas de emoção e de impulsos instintivos, sendo crescente a dificuldade para relacionamentos a longo prazo. Em tal panorama, penso logo, é compreensível a demanda pela substância que, de modo indolor e com efeitos rápidos, aplacaria a angústia ante o contato humano. Para Van Leeuv, o predomínio da premência das descargas rápidas estaria fundamente inserido no contexto de nossa época, na qual as invenções tecnológicas possibilitam alterações instantâneas e substanciais em nosso meio com o mero pressionar de um dedo sobre alguns dos muitos botões que nos rodeiam. E’ o que irei fazer daqui a pouco, penso eu com meus botões; em breve estarei digitando o texto que será imediatamente enviado ao endereço de outro estado pelo e-mail da Internet. Mas continuo especulando: até que ponto o funcionamento de todos esses dispositivos estará sendo tomado como um modelo único por nossas mentes ? Tanto mais que parecem concretizar fantasias arcaicas de onipotência do pensamento, em que a mente controla todas as coisas e dirige de modo mágico os acontecimentos do mundo.

Lembro agora algumas idéias do historiador Eric Hobsbawn a respeito da incapacidade do homem de aprender com a História, o que o levaria de volta à idade das trevas. De acordo com Hobsbawn, a tecnologia avançada das sociedades de consumo produziria um modo de perceber o mundo como se estivéssemos insulados num eterno presente, nele valendo apenas aquilo que está sendo visto nas imagens da televisão. Desfazendo as conexões orgânicas entre passado e presente, o avanço tecnológico criaria uma ruptura e faria com que grande parte das pessoas vivessem na ilusão desse presente infindável. E aqui , torno a pensar nos achados da Hubble : estamos no aqui-agora e também nas fotografias que acabam de mostrar o que ocorre ou ocorreu, há l2 bilhões de anos , nas fronteiras do Universo.

Surge então em minha mente o artigo de um psicanalista pioneiro. Em "O retardamento da Idade da Máquina", Hanns Sachs focaliza um período da Antiguidade Clássica em que a ciência produzia invenções que, apesar de suas possibilidades, eram apenas utilizadas em atrações circenses ou brinquedos. As condições sócio-econômicas , garantidas pela Pax Romana, eram favoráveis às invenções e o escravagismo se tornara escasso e dispendioso. Sachs indaga então por que os contemporâneos dos Césares, de Augusto a Marco Aurélio, não realizaram mais inventos e por que, quando o faziam, não conseguiam dar-lhes outras aplicações, fora do lazer dos jogos. Em sua hipótese, teria havido uma repressão ao impulso inventivo, proveniente da repugnância do homem daquela época ao uso das máquinas. Proveniente de um conflito psíquico, essa aversão teria feito com que temessem os engenhos mecânicos, que neles produziam um sentimento de pavor à sinistra estranheza das máquinas. Penso agora em incas e astecas que, embora conhecessem a roda, somente a empregavam em brinquedos. E me pergunto o que estará diante de nossos olhos e que, tomados por inexplicável inibição do pragmatismo, não estamos conseguindo usar ?

Contudo, a partir do humanismo da Renascença , passamos a viver em tempos culturais de sentido oposto àqueles examinados por Sachs. Desvencilhando-se das repressões que o tolhiam, o processo criativo acelerou-se, juntamente com a aplicação de suas invenções. E o século que vemos findar caraterizou-se por uma avalanche de inventos que revolucionaram profundamente a vida humana, ampliando-a e trazendo resposta para enigmas até então insolúveis.

Sei, no entanto que, se a ciência aumenta a auto-estima da espécie humana, ela causa também graves injúrias a seu narcisismo. Podemos ter idéia da época em que apareceram neste pequeno planeta os primeiros espécimes humanos e até mesmo conhecer a alteração genética que, por translocação cromossômica , separou nosso ancestral dos demais primatas. Esses e outros conhecimentos nos dão, porém, consciência plena de nossa condição frágil, efêmera e vulnerável. E nos fazem também conscientes do ímpeto destruidor de nossa agressividade que , entre revoluções e guerras, teria organizado a matança de cerca de 200 milhões de pessoas desde l9l4, segundo os cálculos de Brzezinski. E concluo : é dentro de cada ser humano que se encontra a Esfinge capaz de devorar-nos a todos.

" Diante disto, o que fazer?" - ecoa, noutro contexto, a voz de Cyro em seu texto. E passo a uma outra notícia, certamente mais reconfortante : o Prêmio Nobel pela primeira vez atribuído a um escritor de nosso idioma. Ilustrando o pensamento de Saramago, leio suas sugestões para o próximo milênio. Apesar da importância de todas, detenho-me apenas em algumas:

" Viver como sobreviventes, isto é, compreender, de fato, que os bens, as riquezas e os produtos do planeta não são inesgotáveis. Acabar de vez com a fome no mundo, porque isso já é possível. Desenvolver para trás, isto é, fazer aproximar da primeira linha de progresso as cada vez maiores massas de população deixadas à retaguarda pelos modelos de desenvolvimento atualmente em uso. Reduzir a distância que aumenta em cada dia entre os que sabem muito e os que sabem pouco."...

E ainda: "Racionalizar a razão, isto é, aplicá-la de modo simplesmente racional." Penso nas dificuldades da realização de uma proposta de enunciado aparentemente tão simples e retorno ao humanismo psicanalítico de Cyro. Pois para aplicar a razão de modo simplesmente racional, parece imperativo o conhecer-se o irracional. Isto é, o Inconsciente - a matéria dos sonhos de que somos todos feitos , como já nos afirmou Shakespeare, com sua genial perspicácia. Conhecê-lo será essencial para que possamos , ao menos, tentar dirigir-nos às metas sugeridas por Saramago. Para não sermos devorados pela Esfinge, precisamos saber quem somos - nas diferentes idades e em nossas diversidades - durante a vida e ante à morte . Compreendendo as motivações de nossas angústias, ao invés de fugirmos delas, poderemos tomar o rumo das sugestões de Saramago. Afinal, somos todos passageiros , e indissoluvelmente ligados, da mesma aeronave que vai girando no espaço.

Abandono, enfim, a leitura do jornal de hoje e penso na contribuição possível da psicanálise. O noticiário fala a favor da aceitação do "desafio da complexidade dos problemas que assoberbam os povos" assinalado por Cyro. Revejo as metas de Saramago e retomo o texto da oração que Cyro dirigiu aos físicos em l983: "Nós, estudiosos, como agentes do futuro, temos deveres e privilégios. Estes são prerrogativas de quem chega na frente. Os deveres se referem ao destino coletivo. O destino não se enfrenta de olhos fechados, submissos à fatalidade da tragédia grega. Cabe-nos, nesta encruzilhada da conjuntura mundial, enfrentar a esfinge com um sistema objetivo de pensamento e ação , para que possamos planejar o futuro previsível." Levanto, vou até a janela e avisto, na calçada, um menino que brinca, encantado, movendo as pedras de um jogo, para lá e para cá, por meio de um controle remoto.

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* Roberto Bittencourt Martins é médico psicanalista e escritor