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PSICANÁLISE E CULTURA E-mail
Humanismo Médico - Artigos

Roberto Bittencourt Martins *  


O tema é vasto e permitiria várias abordagens. Poderia considerar a inserção da psicanálise em nossa cultura, incluindo desde o linguajar cotidiano com termos como “complexos” e expressões como “nem Freud explica”, até a influência da psicanálise e seu aparecimento em obras literárias, artísticas, e noutras ciências humanas... Essa abordagem, porém, não me parece a mais adequada ao espírito deste momento.

Outro caminho consistiria numa tentativa de interpretação psicanalítica da cultura brasileira. Para tal, lembraria Freud em o Malestar na Civilização (Vol. XI, S.E. Bras., pág.134), quando observa - “a inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor, com justiça, que ela está presente nos outros”-, para concluir que: “Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida, as paixões instintivas são mais fortes do que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços superiores a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem”...

Nesse esforço, a cultura vai sendo criada, estruturada pelos mitos que constrói e pelos modelos de identificação que estabelece. E poderíamos pensar na cultura brasileira como aquela que tem como Ideal do Ego um ser humano afetivo, alegre, hospitaleiro, caloroso, sentimental... - cuja maneira afável seria rompida apenas, no partidarismo lúdico do esporte, no apaixonamento coletivo por um clã ou time, ou pela pátria “em chuteiras”, raquetes ou volantes... Nesse patriotismo à brasileira, não seriam cultivados no imaginário coletivo os mitos dos grandes heróis guerreiros fundadores – Bolívar, San Martin, O’Higgins, Washington e tantos outros... Seríamos mais propensos a mitificar mártires derrotados, alguns de vida obscura, como Tiradentes e Zumbi dos Palmares, outros nem tanto, como Getúlio, que teriam sacrificado a vida e dado seu sangue pelo povo brasileiro... Contudo, se houver alguma verdade nessa mitificação do Mártir (aqueles “pais primevos” , descritos por Freud, e que são sacralizados tempos após terem sido maltratados e mortos pela violência) e do Homem Cordial, movido por sentimentos, sabemos também que a cultura está em permanente transformação, sob o influxo dos mais diversos fatores... E assim, a influência do modelo do brasileiro impulsionado por sentimentos (como um Ideal de Ego vigente em nossa cultura) parece estar sendo diminuída e modificada em prol de outros modelos antagônicos . Não precisaria lembrar aqui o poder de criminosos, capazes de governar, até do interior dos presídios, seus domínios , exércitos de bandidos, e de sentenciar inimigos à morte e ao esquartejamento ou às chamas com a frieza do governo de Dona Maria, a Louca, ou da Santa Inquisição... Também não seria necessário recordar aqui o assassinato do candidato de nosso Instituto, abatido em Copacabana quando dirigia seu carro presumivelmente para um evento da Sociedade no ano passado... Falar no caráter sentimental do brasileiro neste momento de nossa história seria talvez uma violência... E, para evitá-la, reproduzo aqui um dos trechos finais do capítulo “Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna” de João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais (História da Vida Privada no Brasil, Vol. 4, págs. 656-658):

“Chegamos enfim ao paradoxo: o tão decantado individualismo leva ao esmagamento do indivíduo como pessoa. Isto é, à perda de qualquer horizonte de vida fora da competição selvagem, implacável, diuturna, do narcisismo que aparece no culto do corpo, na obsessão pela saúde, no medo da velhice, no pânico da morte, na identificação com todos os que conseguiram se subtrair, pela fama, ao rebanho”...

Se tais constatações forem verídicas, a cultura brasileira está falhando em cumprir suas funções de colocar os limites necessários para conter a quantidade de agressão existente entre nós. Como, aliás, em todo o mundo globalizado... O que nos conduz de volta ao que escreveu Freud na conclusão de “O Malestar na Civilização”: “Os homens... não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros até o último homem. Sabem disso e é daí que provém grande parte de sua inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade”. E, depois de trazer sua expectativa de que “o eterno Eros descobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos mortal adversário”, Freud indaga: “Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?”. Essa última frase foi acrescentada quando a ameaça de Hitler já começava a se evidenciar.

E talvez seja aplicável hoje também e não apenas para a cultura brasileira quanto para todas as outras. Pois a civilização, agora “globalizada” pode estar sendo novamente assombrada pelo fantasma de Hitler, de uma “...land über alles”, com lemas orwellianos e a volta da vigência de uma só lei, mais primitiva, a do mais forte. Reconheço que a abordagem que tentei desenvolver aqui parece haver conduzido apenas a um beco sem saída pesado, escuro e recente demais para ser analisado em suas conseqüências. Assim, parece conveniente deixar a indagação de Freud no ar ( e nas areias desérticas do Iraque), e apontar para um terceiro caminho – que nos leva, inclusive, até a década em que Freud lançou sua pergunta.

O tema pode agora levar-nos para um aspecto mais restrito, na tentativa de relembrar alguns dos primeiros encontros da psicanálise com a cultura brasileira – e, por conseguinte, sul-riograndense também. O foco se volta para uma antiga revista cultural - Rumo - que foi publicada em Porto Alegre de fevereiro a março de 1936 (pelo menos, de acordo com os quatro números iniciais que herdei de meu pai). Com capas e ilustrações de Nelson Boeira Faedrich e João Vianna, ela era dirigida por Aparício Maciel, médico precocemente falecido (por volta dos anos 40, creio) e, que era segundo presumo, o factótum da publicação. Num dos múltiplos interesses que “Rumo”, pode suscitar aqui, está o fato de encontrarmos entre seus colaboradores, os nomes de dois futuros pioneiros da psicanálise gaúcha – Celestino Prunes e Cyro Martins -, além de dois precursores da psicanálise, Porto Carrero e Galeno Jasson Pianta. Sem falar em familiares de atuais analistas gaúchos, como Ney Messias (com poesias e prosa poética) e Ernesto Pellanda (que faz uma crítica elogiosa de Os Ratos, recém editado).

A revista se define, na primeira apresentação, como “uma tentativa, a primeira de seu gênero publicada no Rio Grande”... num momento em que a literatura do Norte se acha em plena e fecunda madurez”. E define seus propósitos: “Queremos contribuir com o nosso esforço para esse movimento renovador que só agora se iniciou no sul”. Afirma ainda : “Já se lê no Brasil. E a tendência de leitores novos num país que desperta é ler coisas úteis, atraentes, que informem do mundo e dos caminhos do mundo”. Tais propósitos, ela procura cumpri-los, alternando pequenos artigos com notas informativas, tais como o obituário de Pavlov, a saudação aos 80 anos de Freud, matéria relativa a Gandhi etc... Transcreve também artigos de autores estrangeiros então contemporâneos, como Aldous Huxley, Bernard Shaw, Ortega y Gasset, Romain Rolland, Sinclair Lewis, Stephan Zweig e Emil Ludwig. Este, famoso por suas biografias (Bismarck, Beethoven e outras), denuncia em seu artigo as atividades anti-semitas já então prevalentes na Alemanha e finaliza seu texto com um alerta de espanto: “Ninguém protestará contra tais absurdos? E é esse país que convida o mundo para enviar seus melhores jogadores para a disputa das Olimpíadas de 1936?”

A revista dirigida por Aparício Maciel é assumidamente anti-nazista e anti-fascista – além de anti-integralista, como o próprio diretor declara numa de suas notas. E o artigo de Romain Rolland tem título de antevisão profética: “A paz é fatal para Hitler”. A contribuição dos autores brasileiros é também expressiva: o Embaixador Gilberto Amado, o médico Peregrino Júnior, Hermes Lima, Rachel de Queiroz e Jorge Amado, que saúda a obra de dois recentes romancistas do sul (Dionélio Machado e Érico Veríssimo). O poeta Murilo Mendes talvez bem resuma com irreverência o espírito da revista, em seu número 1:

“O poeta fascista
sai para rua aos gritos exaltando a guerra
mas ao voltar para casa
leva uma surra formidável da mulher
e fica manso como um cordeiro”.

Os colaboradores da terra são, é claro, em grande número, alguns já famosos, outros que o serão: Augusto Meyer, Viana Moog, Mário Quintana, Pedro Wayne, Telmo Vergara, Carlos Reverbel, Valdemar Rippol, Hamilcar de Garcia, J. Nogueira Leiria e Rivadávia de Souza – o qual, em “Variações em torno de um pogromzinho”, repudia a “baderna” feita por “uns rapazinhos histéricos do integralismo” na Avenida Oswaldo Aranha, e cuja repetição seria impedida pela polícia. Essa enumeração sumária pode dar alguma idéia do teor da revista, que, de modo bastante eclético, traz também informações sobre artes, ciência, música, cinema. (Aparício Maciel, por exemplo, escreve “Chaplin, poeta romântico”, e ainda sobre um Congresso Médico que lhe rende polêmica nos números seguintes).

Quanto aos futuros analistas que colaboraram em Rumo, Cyro Martins focaliza a revolução de 1893 e os diários do médico Ângelo Dourado que acompanhou Gumercindo Saraiva. E, noutro texto, já prenuncia o tema de seus romances de “O gaúcho a pé”: “os cavalos não relincham mais. Acabou-se a égua madrinha”... “Mas persiste o homem, sem o ambiente que o emoldurava”... “desambientado, inerme e triste, vagabundo sombrio”. Já o futuro psicanalista Celestino Prunes (cujo artigo abre o primeiro número da revista) examina um tema relativo à Medicina Legal (matéria da qual seria Professor posteriormente). Trata da eutanásia trazida à evidência por um projeto de lei que uma Sociedade Britânica de Eutanásia Voluntária levara ao Parlamento Inglês. Celestino Prunes conclui sua crítica bem humorada: “A verdade é que o homem, preso inelutavelmente à vida, não poderá se libertar dela com a frieza burocrática dos requerimentos selados na forma da lei, com a mesma naturalidade de quem prepara os papéis de casamento”.

Todos esses dados e citações pretendem trazer alguma luz sobre o momento cultural vivido pela intelectualidade de então. Na revista estão incluídos também dois artigos a respeito da psicanálise – da autoria dos precursores Porto Carrero e Galeno Jasson Pianta. Este último, em “O Complexo de Oedipus e o amor à pátria”, revela uma visão idealizada e simplificadora, mas pode dar-nos alguma idéia a respeito do que se esperava da psicanálise na época e de um certo sensacionalismo com o qual era apresentada. Diz Galeno Pianta: “Freud, rasgando a polpa enganadora que encobre o inconsciente, com o bisturi penetrante da psico-análise, nos abriu as portas de um novo mundo. Mundo em que vivem os aspectos terríveis de ódios recalcados. Mundo em que sopra a aragem das ilusões desfeitas”... “Mundo, enfim, onde jaz todo o lodo pútrido das aberrações humanas. Tudo isso Freud nos mostrou. E mais ainda. Freud nos mostrou que era desta parte do homem que brotam as mais sublimes manifestações da arte, da ciência e da filosofia.”

Em continuação, o artigo passa ao Complexo de Édipo que Leonardo da Vinci teria sublimado ao criar a Gioconda. E termina tentando dissecar o amor à pátria, que é visto, em suas origens, como o amor ao lugar em que nascemos, e como “sublimação de uma tendência inconsciente que o filho tem de se relacionar sexualmente com a própria mãe”. A alma do homem possui “de um lado, o sublime e o admirável. Do outro, o pavoroso e o repulsivo.” Aqueles que são contra Freud são identificados pelo autor como “fuinhas”, as quais “por viverem nas trevas, não enxergam a luz”.

A psicanálise, abordada numa linguagem enfática, surge revestida de um caráter chocante, que talvez tenha contribuído para criar ou exacerbar resistências e descrenças. Já o segundo artigo, transcrito de publicação carioca, do famoso neuro-psiquiatra J.P.Porto Carrero, “O Domínio da Psychanályse” também preende afirmar o valor da nova ciência. É, porém, mais modesto e realista em suas afirmações, talvez como resultado da maior experiência clínica e de maior conhecimento de seu autor. São divididos três domínios da psicanálise. O Domínio Terapêutico é aquele onde melhor se pode observar as idéias de Freud, seja na cura das neuroses (fobias, obsessões, histerias) e psicoses de introversão e dissociação. Contudo, Porto Carrero não considera que a psicanálise seja capaz de curar todos os males psíquicos. Em alguns casos apenas poderão ser explicadas as causas dos sintomas. Doenças endócrinas também terão de ser pesquisadas e tratadas concomitantemente. E o tratamento é longo, nunca menos de seis meses, mais de um ano”... Quanto ao Domínio Pedagógico, é baseado na observação clínica que demonstra a relação entre sintomas e os fatos da infância.

Uma educação sexual bem dirigida “em que não se oponha punição nem ameaça, mas em que não se incentive excitações perigosas” poderia fazer, em grande parte, a profilaxia das neuroses. “Feita de maneira oportuna, leal, dosada, sua programação deveria ser dada “pela curiosidade demonstrada com as perguntas infantis”.

Apesar da sensatez demonstrada nesses dois domínios, quando chega ao terceiro, o Domínio Moral, os conceitos de Porto Carrero passam a impregnar-se de um viés quase messiânico. Porto Carrero parte de uma pergunta – “Muita gente me pergunta se, depois de psicanalisado, o indivíduo se tornará cínico: pois “a psicanálise se aplica em destruir o sentimento de culpa e o sentimento de inferioridade”. Assim, “sem culpa nem remorso, o indivíduo poderia agir sem freios contra o interesse social”. Mas, contrapõe o autor, “o psicanalisado sabe bem que pode sublimar seus impulsos primitivos, dar-lhes expressão consentânea com a moral, ou seja, com o que é habitual no meio e na época em que vive”... E “passa a ser bom porque não vale a pena ser mau. Não lhe é necessário temer a culpa nem as sanções leigas ou religiosas. Passa a ser sereno, equilibrado, tolerante, indulgente. Ele tem a consciência perfeita do que vale: das suas capacidades e dos seus pontos fracos”. “Não o intimidam os maus êxitos, os esforços frustrados, as agressões do meio; não lhe tiram o sono os triunfos alheios, que não lhe causam inveja, mas apenas lhe trazem estímulo e ensinamento”...

Transcrito da Revista Contemporânea do Rio de Janeiro, o artigo, neste trecho final, retrata bem as fantasias colocadas nos efeitos idealizados da psicanálise . E, se unirmos algumas noções trazidas pelos dois artigos, teremos o perfil de uma psicanálise que revela “todo o lodo pútrido das aberrações humanas”, mas que pode transformar os indivíduos analisados em seres não só desprovidos de neuroses como também imunes às paixões da cólera, do desânimo e da inveja.

Algumas observações podem ser feitas a partir desse antigo encontro entre a psicanálise e a cultura brasileira, esta representada pela revista porto-alegrense de 1936. Por um lado, podemos verificar que a psicanálise está presente e integra esse contexto de combate ao totalitarismo nazista, fascista e seu tragicômico sucedâneo nacional, o integralismo. Por outro, poderemos notar que a própria psicanálise está sendo então vista como capaz de transformar o analisando num paradigma de fortaleza psíquica. Nisso, aliás, está coerente com as circunstâncias de seu tempo. Não esqueçamos que , em 1936 , estamos nas vésperas do Estado Novo (de 1937) e nas antevésperas da II Guerra Mundial. E que a psicanálise poderá estar recebendo então os conteúdos idealizados e onipotentes que defendem os seres humanos dos sentimentos de profundo desamparo e impotência.

Psicanálise e Cultura... o tema, como assinalei, é vasto. E poderíamos, por exemplo, comparar aqueles momentos de encontro inicial com outros, posteriores. Como aquele, relatado por Jacques Zimmermann (no Jornal da Sociedade Brasileira de Psicanálise, em Agosto de 2002), sobre a primeira sessão analítica realizada em Porto Alegre no dia 24 de fevereiro de 1947... Nesse dia, segundo o relato, o primeiro analisando veste seu melhor terno, almoça no melhor restaurante e, desse modo preparado, ruma ao consultório do analista que trouxera de Buenos Aires a nova técnica... Lá chegado, após os primeiros minutos de idealização em que se assenta na cadeira do analista, toma seu lugar no divã e começa a tremer... A análise começa então seu curso e o analisando será um dos fundadores da primeira sociedade psicanalítica gaúcha... Nesse instante inicial de contato com o método psicanalítico propriamente dito podemos ainda vislumbrar a mesma mistura de idealização e negação utilizadas como defesas para as angústias despertadas pela psicanálise – e já entrevistas em seus encontros com a cultura brasileira de seu tempo, conforme, por exemplo, o caráter de sua presença em “Rumo”.

Retornando desses momentos iniciais, podemos voltar agora ao dia de hoje, em que mais uma vez temos de refletir sobre o perigo de que todo o desenvolvimento cultural humano seja aniquilado pela soma de agressividade, narcisismo, onipotência e auto-destruição presentes em nossa vida psíquica e na civilização que criamos.

 

Rio de Janeiro, 24 de abril de 2003

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