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"Seu Bilo" e outros pais na ficção de Cyro Martins E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

Maria Helena Martins

 

Estávamos quase em agosto de 2000 e fui convidada pela Associação Brasileira de Psiquiatria do RS (ABP-RS) para falar sobre a Paternidade na ficção de Cyro Martins. Embora nunca tivesse pensado nesse tema, sabia da importância da personagem "Seu Bilo" na obra de Cyro Martins. O título me ocorreu de imediato. "Seu Bilo" é uma construção ficcional, a partir do pai de Cyro Martins. Em torno disso, há comentários do autor feitos a Abrão Slavutsky, em Para Início de Conversa (Movimento, 1990). Em vários momentos, Cyro discorre sobre a personalidade, indica em que narrativas aparece a personagem, seja como "Seu Bilo", seja com outros nomes e - principalmente - revela o motivo de sua criação. Enfim, a figura paterna e a personagem volta e meia retornam à conversa com Abrão:

"O retrato real que eu poderia fazer do meu pai acho que seria inferior ao da ficção e menos verdadeiro. Nos romances, a sua figura aparece em sucessivos cortes, de épocas diferentes, dele e minhas. A sua imagem aparece muito mais dinâmica nas páginas dos livros. Aqui [ ou seja, no depoimento] terei que fixá-lo parado, como num retrato. E qual dos Bilos será o mais autêntico? "(p. 74-5)

Esse comentário desperta a curiosidade de qualquer estudioso da literatura. É mesmo um achado para refletir sobre questões sempre presentes na investigação literária, tais como as dicotomias realidade/ficção, verdadeiro/não-verdadeiro. No caso, as palavras do escritor se nutrem da experiência de quem conhece meandros da criação e da alma humana; sabe das transformações que realizam, subvertendo intenções e parâmetros. Principalmente, se evidencia aí o significado de verossimilhança ou coerência interna, um dos aspectos decisivos para a caracterização de uma obra literária. Ou seja: o que importa não é o grau de semelhança com a realidade, mas quanto a figura criada e seu entorno são convincentes. Daí por que o "retrato real" poderia ser inferior ao ficcional, no dizer de Cyro Martins. Ficam também sublinhados por ele recursos, técnicas, dos quais o romancista faz uso para moldar a personagem e ambientá-la no contexto narrativo.

Noutro plano de leitura, o comentário instiga a averiguar relações entre o dito e o realizado pelo escritor, permitindo desenvolver um exercício de leituras contrastivas do discurso sobre a personagem e sua performance ficcional. Também remete às transformações que o imaginário e o tempo determinam nos registros da realidade, em sua leitura e subseqüente processo de criação artística.

Numa incursão mais ousada, podemos tentar um outro plano de abordagem, mais difícil, fluido e obscuro. Esse plano perpassa o discurso cotidiano e o literário, mas apreendê-lo é ainda um desafio para os estudos literários e da linguagem, pois acontece pela ausência de palavras, nas fendas das falas, no silêncio ou ainda no avesso das evidências, nas sombras ou atrás das "franjas do discurso". Quem dá conta disso, mais facilmente, na "vida real" são os de outro departamento - os da chamada área "Psi". Quem trabalha com a linguagem literária ainda carece de instrumental específico para esse exame.

As inúmeras maneiras de aproximação ao texto literário, para conhecer a personagem de ficção, se potencializam quando o criador, digamos, revela a criatura. A vantagem do acesso à reflexão do autor a respeito dela, está em que facilita verificar se ele cria uma figura convincente, digna de nota pelo leitor, em sua ficcionalidade, ou se fica no limiar do registro de uma história pessoal. Mais adiante, no mesmo Para Início... diz Cyro Martins:

"Penso que o transformá-lo [Seu Bilo] em personagem foi a maneira que encontrei de levá-lo a viver mais, atuando e falando nas minhas páginas. Procurei ser sempre fiel à sua maneira de pensar" (p. 74-5 - e 83-4). [O pai de Cyro Martins morreu aos 56 anos].

Já aqui se observa um avanço do indivíduo Cyro Martins sobre o escritor, indiciando-se as armadilhas que a opção pessoal pode apresentar ao romancista, independente do laivo poético e profundamente humano dessa revelação.

O fato de Cyro Martins se ocupar com a criação artística e abordá-la como objeto de estudo se torna subsídio importante para compreendermos um pouco desse passe quase mágico de transformar palavras sobre uma página em sensações, emoções, idéias, vida, enfim, transpondo os limites da prosaica realidade. Da mesma forma, importam as observações que ele faz no Prefácio de Sombras na Correnteza (1979), romance contextualizado na Revolução de 1923, em que salienta a "tessitura literária", o "nexo criativo" entre figuras e situações reais e imaginárias:

"Estão de tal maneira entrosados que, em muitas passagens fiquei um tanto perplexo, meio sem saber quem é quem, isto é, quem é fantasma e quem é gente de corpo inteiro. Como não se trata de memorial romanceado, muito menos de história, e sim de ficção, não interessa ao leitor entrar em detalhes de vida real de certos figurantes deste tablado."

Nessa observação, o romancista se desvencilha do indivíduo Cyro Martins, e suas possíveis confusões entre o real e o ficcional, com um argumento que indica seu conhecimento sobre interesses do leitor de romances, mais ligados à narrativa de ficção do que ao registro fiel de aspectos sócio-históricos e políticos, bem como auto-biográficos.

Enfim, o que venho dizendo aqui dá uma idéia da variedade de material à minha disposição para analisar "Seu Bilo" - e muito mais. Mas tudo tem um porém.

Entre a retomada de textos e conjeturas, rememorando a trajetória dessa personagem pelas tantas histórias, lembrei de passagens, suas poucas falas. Em contrapartida, foi tomando consistência a percepção de que essa figura se delineou para mim, muito mais pelo que eu ouvira de Cyro Martins falando de seu pai, do que através dos textos em que Bilo aparece. Mais: que criador e criatura, personagem e ser humano se articulam, para mim, como num jogo de espelhos.

Comecei, então, a me dar conta: era muito pai para pouca filha. Eu não teria o distanciamento suficiente para separar esse emaranhado de lembranças e fantasias, e escrever um artigo, uma resenha crítica. Além disso, " 'Seu Bilo' e outros pais na ficção de Cyro Martins", mais que um título curioso, é tema rico bastante para um ensaio. Quanto a mim, por ora, esse caso não serve para estudo; limito-me a dar alguns palpites.

"Seu Bilo" não é personagem onipresente, porém, suas discretas aparições geralmente trazem algo novo para a visão do leitor sobre as demais personagens ou a situação em que se encontram. Vai se firmando em Sombras na Correnteza( 1979), em Gaúchos no Obelisco (1984). Mas em O Professor (1988), fica mais perceptível um tipo de personagem secundária, porém capaz de mudar a direção dos acontecimentos. "Com muita ânsia de saber e por não saber!", acolhe o estranho e ébrio Lucílio Carava, talvez pelo tanto que contraste consigo próprio. Toma a iniciativa de "abrir o colégio", porque vê naquele homem a possibilidade de que ensine seus "filhos a clarear a cabeça" evitando se tornarem "bestuntas como os pais."( p. 22).

A essa altura, me permito divagar, já convencida da impossibilidade de realizar um estudo da personagem. Assim, vou pensando que quanto mais o tempo passa para Cyro Martins, mais o "Seu Bilo" se transforma em personagem. Mas reconheço heterônimos dele - aquelas personagens paternas com outros nomes - em textos mais antigos, como o "Seu Afonso", levando o filho para o Colégio dos padres: enquanto contém seu ateísmo convicto, idealiza uma "posição" para ele. ( Um menino vai para o colégio - 1942). E os outros pais, aqueles que não seriam à imagem e semelhança do Seu Bilo de verdade? Há para todos os gostos. Lembro as fíguras pícaras e multifacetadas dos tantos possíveis pais de Brandino, o "Principe da Vila" , aquele que nasceu empelicado (favorecido pela sorte), foi sempre paparicado; vira meio padre, meio profeta, cumpre os "deveres conjugais", mas se torna um pai ausente e demente. Também recordo o lastimável e patético pai em que se transforma o derrotado João Guedes, de Porteira fechada, talvez o maior anti-herói da literatura de Cyro Martins, protótipo do gaúcho a pé. Figuras paternas contraditórias, sofridas, dilaceradas são indubitavelmente as mais importantes em sua obra; ao mesmo tempo, as mais literárias e mais genuínas, no que revelam das profundezas humanas.

Ao contrastá-las com "Seu Bilo", este parece um sujeito comum. Um pai como muitos outros - os de verdade? É "oposicionista convicto", "genioso", "de muita cisma", " sabia puxar uma novidade de quem lhe interessava saber", "de pouca fala". Assim ele aparece em Rodeio (na ed. de 1982). No Prefácio, o autor já anuncia que o livro traz rememorações com caráter autobiográfico. Aí não só "Seu Bilo" está presente, como todo o núcleo familiar de Cyro Martins, nos tempos de Quaraí. E as "personagens" aparecem com seus nomes verdadeiros: Seu Bilo, Dona Felícia, Ivo, Alda, Iná, tio Poli, tio Arlindo. Narrando na 1ª pessoa, Cyro Martins se alarga em emoção - "lembranças, saudades e gratidões", diz ele. E a figura paterna assume uma dimensão diferenciada. Não por ser mais importante, mas porque seu perfil e suas ações são identificados pelo singelo "meu pai". Curioso: nesses relatos, ao contrário do que seria de se esperar, a emoção não compromete a qualidade literária. Ao contrário, revelam a segurança de quem domina o trabalho da palavra, a arquitetura da escrita, se permitindo abrir o coração sem transbordamentos. Mas também está consciente de que ali se dá "ao luxo" de "páginas muito sentidas, de tonalidade predominantemente evocativa". Assim como saberia que sua verdadeira literatura estava noutros textos. Possivelmente também soubesse que suas grandes personagens paternas eram bem outras que "Seu Bilo", como se vislumbra aqui.

 

Porto Alegre, 12 de agosto de 2000