X Jornada CELPCYRO

img banner

Informe CELPCYRO

Cadastre-se e receba nosso INFORME
Nome
E-mail*
Área de Atuação

Redes Sociais

  • Twitter
  • Windows Live
  • Facebook
  • MySpace
  • deli.cio.us
  • Digg
  • Yahoo! Bookmarks



PORTEIRA FECHADA: literatura e cinema  E-mail
Revista Eletrônica CELPCYRO-Vol 2 - ISSN 2177-6598 - Artigos

< Sumário - Volume 2 - Segundo Semestre - 2011



 

 

 

PORTEIRA FECHADA: literatura e cinema[1]

 

 

Maria Helena Martins e Guilherme Castro[2]

 

 

1. Um romance fronteiriço (Maria Helena Martins)

 

 

Trânsito, deslocamento, passagem são palavras indicativas da dinâmica característica de expressões estéticas que atravessam fronteiras, superam limites de tempo e espaço, fogem a padrões, ainda que construídas em contexto circunscrito, espacial e temporalmente datado. A proposta é apresentar o romance Porteira Fechada[3], de Cyro Martins, como exemplar desse tipo de criação, digamos, fronteiriça. Até por conta da temática e das origens do autor, a fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul com o Uruguai.[4]

Essas palavras – trânsito, deslocamento, passagem e várias suas correlatas - enfeixam  semanticamente  os títulos  da  chamada “trilogia do gaúcho a pé”: Sem Rumo (1937), Porteira Fechada (1944) e Estrada Nova (1953)[5]. Essa trilogia, assim nomeada pelo principal editor de Cyro Martins, o também crítico literário Carlos Appel, constitui o que mais tem sido destacado na obra do autor – o registro ficcional de um período histórico do Rio Grande do Sul, que assinala mudanças sócio-econômicas refletidas principalmente na vida campeira, de proprietários de terras e dos trabalhadores do campo. Enfim, uma diáspora gaúcha, obrigando os habitantes da campanha a debandarem para a cidade buscando a sobrevivência, tanto econômica quanto social e política.  Assim, sem perspectivas, desgarrado dos pagos, surge o “gaúcho a pé” de Cyro Martins. Um gaúcho pobre, anti-heróico, despilchado e sem cavalo, antítese da figura mítica, o chamado “monarca das coxilhas”, literariamente formatada por poetas do Partenon Literário e alimentada até hoje pela imaginação romântica.[6] Assim se firmou e difundiu a imagem do homem do pampa, prevalecendo seu culto até nossos dias, em especial, nos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) espalhados mundo afora.

Á revelia das preferências dos tradicionalistas, Porteira Fechada se tornou  best seller; João Guedes, o protagonista, passou a ser visto como  protótipo do “gaúcho a pé”, o qual dizem alguns ter sido “o avô do sem terra”, numa referência ao participante do Movimento dos Sem Terra (MST).

 

Cyro Martins, que tinha apego especial a suas personagens, sorria manso quando ficava sabendo disso. Era homem de esquerda, mas acima de tudo era um humanista. Desacreditava em campanhas de desmistificação e na desmitificação do gaúcho. Mas tinha urgência em mostrar a debacle do homem e do mundo da campanha -  um, se vendo enxotado para a marginalidade urbana, outro, sofrendo os impactos das transformações sociais e tecnológicas. Entretanto, o que confere ao romance a sua atemporalidade e, em última instância, seu valor literário, é a coerência interna do texto, destacando-se a linguagem e o profundo e genuíno retrato da miséria humana que revela, sendo realista e humanitário. A empatia do autor por suas criaturas decadentes é sem comiseração.

E aqui deparamos outro aspecto decisivo na construção de Porteira Fechada – o contexto sócio-histórico e existencial que descortina mostra vivamente falta de alternativas. O sistema produtivo vigente (pecuária e agricultura), em desmanche, desestabiliza os antigos proprietários de terra, cujo padrão de comportamento e  viés político-partidário é reacionário, retrógrado, típico dos “donos do poder” ( apud Raymundo Fahoro). E esse mesmo sistema alvoroça novos fazendeiros, em busca de mais terras, enquanto arrasa os despossuídos. Assim,  de uma aparente oposição entre uns e outros, patrões e empregados,   emerge a ambigüidade e a ambivalência de visões de mundo e de relacionamentos, em que prevalecem contradições, hesitações, vicissitudes, esperanças e ilusões. Enfim, características presentes em qualquer ser humano e que transparecem nas personagens masculinas e femininas, nos fazendeiros e nos posseiros. Então, Porteira Fechada, como toda a “trilogia do gaúcho a pé”, é mesmo “a representação ficcional do Rio Grande do Sul”, como afirmava Sandra Pesavento; é “romance documental”, no dizer de Décio Freitas –para referir dois proeminentes historiadores sul-rio-grandenses de saudosa memória.

Esse romance terá possivelmente nascido como um profundo clamor por justiça social diante da miséria testemunhada pelo autor. Como jovem médico se iniciando na profissão, atendia a clientela dos três Ps, como dizia: pobre, parente e puta. Em grande parte constituída por egressos da campanha. Isso foi nos idos de 1930, em sua terra natal, a fronteiriça Quaraí, lindeira com Artigas, no Uruguai.

No caso da Trilogia, fica evidente o desabafo esperançoso do homem político.   Contudo, se especialmente Porteira Fechada tem sido mais vista por alguns críticos e leitores como obra engajada,   por certo ela chegou até nossos dias  por sua condição literária.

A história da literatura é pontuada por obras com tais características que se tornam exemplares de quanto uma criação pode ser produzida  e usada com finalidade não artística e, apesar disso, subsistir esteticamente. Não diria que o comprometimento social e político do autor tenha se sobreposto ao fazer literário, nesse romance. Mas, ainda que intencionalmente tivesse sido assim, o resultado superou a intenção. Aliás, esse é o único dos vinte e tantos livros que escreveu no qual jamais mexeu sequer numa vírgula para as sucessivas reedições ( em 2010, na 16ª.). Algo surpreendente, para quem sempre procurava aprimorar seus escritos.

Esse quadro me lembra outra obra sul-rio-grandense muito significativa: Antônio Chimango[7], poemeto campestre e sátira política gaúcha, de Amaro Juvenal (pesudônimo de Ramiro Barcellos). Surgiu  em 1916, em edição clandestina e por décadas passou de boca em boca, oralmente,  como panfleto político contra o Presidente do Estado, Borges de Medeiros, que se eternizava no poder. Ficou muito mais conhecido por esta última faceta, mas sobreviveu ao momento histórico-político que lhe deu origem pelo valor literário inquestionável do texto. No caso, o livro compõe-se de dois tipos de versos que se alternam, um  em tom nostálgico-romântico, que configura o que o autor chama de poemeto campestre, e outro, em tom de ironia amarga, que configura a sátira política. A antinomia, no caso, não impede que os dois tipos de versos se entrelacem e interajam harmonicamente no decorrer das seqüências narrativas que formam, apesar  de diferenciadas na impressão, que as separa,  no conteúdo e no visual.

Voltando à Porteira Fechada, diria que a coerência interna é arrematada pelo trabalho da linguagem. A propósito, um dos gargalos da literatura regionalista sul-rio-grandense tem sido a transposição do linguajar local para o texto literário. Não raro resulta artificial, não convence nem quando na fala de personagem típica. Um dos ganhos de Cyro Martins é que sua ficção, principalmente devido à própria vivência pessoal do autor, incorpora a linguagem fronteiriça, inclusive na sintaxe, conferindo autenticidade ao escrito. Esse é um dos aspectos que identificam sua literatura como regionalista  mas não gauchesca. Outro, está no fato de tratar do gaúcho como homem comum e não, como herói, “centauro dos pampas”, como a gauchesca preconiza. Sem dúvida, aqui  se encontram outros indicadores de criação fronteiriça: o autor usa recursos formais ( contexto, temática, linguagem) semelhantes a um padrão literário existente, mas rompe com o cânone ao subverter expectativas quanto à visão de mundo que expressa o texto.

Vejamos uma amostra da narrativa de Cyro Martins: trecho de Porteira Fechada em que João Guedes recorda como, transtornado, matara um capão  (carneiro castrado) para obter algum  dinheiro:

 

Estavam ali reunidos, num boliche de fim de rua da cidadezinha, quatro indivíduos que se emborrachavam juntos quase todas as noites e que não eram amigos. A noite estava abafada e os seus rostos mais pesados que habitualmente.

Havia qualquer coisa grave suspensa sobre eles. Mostravam-se mais ensimesmados que em qualquer ocasião. Mas nenhum deixava transparecer a causa das suas apreensões. Cada qual vivia para si o seu drama.

Guedes, o homem de olhar bom, barbudo e encurvado, que se achava sentado defronte ao capitão, meditava na sua história, no destroço da sua vida. Cada anoitecer o encontrava mais desgraçado.

Ele não contava o princípio da sua decadência pelo dia em que se mudara pra cidade. Datava-o do dia em que, indo a trote pela estrada, evitando as pedras para poupar o cavalo, sem avistar ninguém, nem no corredor nem nos campos, os seus olhos ardidos do solaço deram com um rombo no aramado. Perto, viu uma ponta de ovelhas esparramadas na encosta duma coxilha. Quase sem pensar, deu de rédeas ao cavalo e entrou na invernada. Contou uma pontinha de ovelhas, entre as quais as suas vistas campeiras destacaram logo um capão lanudo e gordo. Repontou-as no rumo dum baixo, onde corria uma sanga de barro. Ariscas, algumas sentavam. Deixava que se escapassem, como um refugo proposital. Por fim, sobraram o capão e uma ovelha velha. Foi aí que cerrou perna, esquecido de tudo.

A ovelha logo debruçou entre as macegas, estafada. Mas o capão tinha graxa e gambeteava com agilidade, forçando-o a bruscas esbarradas. Queria atropelá-lo contra um barranco. Lastimava-se de não trazer consigo um laço. Não desanimava, porém. Pelo contrário, encarniçava-se cada vez mais, embora começasse a sentir canseira e a notar que o montado se esfalfava. E nessa teimosia foi correndo sanga abaixo, como nos tempos de guri arteiro, e ziguezagueando, até chegar ao ponto em que o animal apenas troteava. Boleou-se do cavalo, então, e saiu num frenesi, errando manotaços na lã crescida e crivada de flechilha do capão rome[8]. Enraivecera-se. Por nada desistiria da caça. Num dado momento o animal meteu as mãos num buraco e caiu. Ele, correndo muito perto, rolou por cima e não teve tempo de agarrá-lo. Desesperado, apedrejou-o, como que apedrejasse um bicho desprezível. Acertou-lhe na cabeça. O capão testavilhou e rodou logo adiante. Suado, exausto e furioso, João Guedes arrancou da faca e sangrou-o como quem sangrasse um inimigo.

Quando se viu na estrada, à noitinha, carregando a presa atravessada na garupa e sentindo a ardência no peito, dor na lagarta das pernas e suor gelado na testa, horrorizou-se do que fizera e jurou jamais repetir semelhante façanha. Entretanto, instigado pelas próprias necessidades e pelo conluio encorajador com o Fagundes, recaiu uma e outra vez, até o flagrante em que foi preso.

Fazia agora dois meses que se achava em liberdade, porém se considerava mais prisioneiro que nunca. Tinham sido dois meses terríveis, esses. Perdera a filha, vendera o cavalo, vendera os arreios, Maria José secava dia a dia, passavam fome. Na véspera, percorrera a cidade à cata duma changa qualquer. Tratara a limpeza dum sítio por oito mil réis. Compreendia que não era serviço pra um homem da sua idade e no seu estado. Talvez caísse no meio das ervas... Depois disso, qual seria o seu próximo passo? [9]

Finalizando este esboço de estudo, cabe ainda uma observação. Cyro Martins deixou a fronteira, definitivamente, em 1937 e só voltou lá em 1974. Porteira Fechada é de 1944, quando a  memória visual e afetiva reavivavam então experiências recentes. Ocorre que foi no  período de quase 40 anos de distância dos pagos que ele escreveu grande parte de sua obra, e com esse mesmo elã. Daí uma pergunta que muitos leitores e estudiosos fazem: como, passados tantos anos, ele conseguia recriar a paisagem, o ambiente, o linguajar, a vida da campanha e da fronteira com o frescor e autenticidade de quem convivia ainda em tal universo? Talvez a resposta esteja numa de suas considerações sobre o escritor e sua arte:

 

É assim que vemos o artista, o escritor, como órgão social, cuja função precípua consiste   em elaborar e transmitir, esteticamente, experiências subjetivas e impressões sensoriais provindas  do mundo exterior, mas transfiguradas pela projeção. [10]

 

 

2. Porteira Fechada, o filme (Guilherme Castro)

 

Aqui apresento o Projeto Cinematográfico, LM, ficção, adaptado do romance de Cyro Martins, Porteira Fechada, da trilogia do Gaúcho a Pé, roteirizado e dirigido por mim e produzido por Okna Produções, de Porto Alegre.[11]

Mesmo que desenvolva atividade de pesquisador e professor, minha fala é a de realizador cinematográfico. Dada a ambientação do texto literário e filme, cabe ainda me apresentar como descendente de raízes da fronteira sul do Brasil com o Uruguai. Esse ambiente de grandes fazendas gaúchas, campos pouco habitados, lida com gado, politização, violência e cultura intensas me é muito familiar.

Interesso-me por Cyro Martins, pois o conheço desde cedo, não apenas por tê-lo estudado no colégio, mas pela presença anterior de livros do autor em casa, quando criança. Meus pais o liam, e creio que a presença de livros na estante da sala é a primeira e mais forte relação que criamos com a literatura. Assim, livros entram em nossa vida, nas memórias mais afetivas que temos.

Claro que a decisão de levar Porteira Fechada ao cinema é bem posterior e tem outros motivos (cf. adiante).

 

Para que se entenda o filme:

Sinopse: No interior do Rio Grande do Sul, no segundo quarto do século XX, João Guedes, Maria José e os filhos, antigos e pequenos arrendatários, são expulsos de sua casa, quando o campo em que vivem e trabalham é comprado pelo fazendeiro em expansão. Os Guedes rumam para a cidade, onde precisam sobreviver e se adaptar à nova vida; mas este é um mundo no qual não encontram lugar para si. Ao fim, João Guedes, velho, pobre, tornado ladrão de gado, cai morto num caminho da cidade; Maria José reúne forças, levanta-se e segue a vida com os filhos.

 

Contexto e premissa: No pampa gaúcho predomina a paisagem de imensos e ventosos campos. Também nessa região, entre os séculos XIX e XX, o rendimento da pecuária manteve prósperas cidades de casarios imponentes, com intensa vida social e cultural. Nas fazendas, em contraste, encontramos a vida rude da lida campeira. São ambientes naturais e humanos ainda muito característicos no extremo sul do Brasil, nas fronteiras com o Uruguai e Argentina. No filme, o panorama histórico e social é forte; o pano de fundo é um mundo agrário abalado por transformações que se acentuam a partir dos anos 30: a modernização leva à expulsão do homem do campo.

 

Por que fazer o filme Porteira Fechada?

Mesmo sem ser especialista em literatura, a visão que tenho do romance Porteira Fechada destaca a qualidade e clareza do texto e trama, que desenvolvem ações externas e internas, dramas objetivos e subjetivos, muito caros ao cinema.

Contribui na adaptação a premissa e contexto histórico e social fortes, relevantes, necessários de serem reconhecidos. O gaúcho de Cyro pertence a uma história e cultura campeiras, onde vive o homem comum. São personagens com textura, verticalizados, constituídos de modo muito pertinente ao contexto histórico. (Com o romancista crítico, de acurada sensibilidade social, no texto transparece o autor psicanalista) Os personagens são dotados de sentimentos e emoções complexas e coerentes, alimentadas e interagindo com as experiências históricas e sociais vividas.

Para o filme, a força dramática é motivação importante; é uma situação humana limite: o peão João Guedes morre por ter-lhe sido tirado o direito a um lugar no mundo - esse fato merece ser compreendido em suas diversas implicações: quando o mundo fecha as portas às pessoas.

Interessa-nos, ainda, a costura de todas as situações, movimentos e ações - todos os personagens vivem crises com relação aos seus posicionamentos no mundo; a crise social e política, que é pano de fundo, atinge a vida de todos, isso constitui uma obra com unidade de tema - cada elemento reforça a ideia central. Todos os personagens estão em trânsito, procuram se reposicionar num mundo em crise.

A profundidade dos personagens é o que possibilita uma narrativa visual elaborada em detalhado desenho de planos e som, poucas falas, sendo rico em situações intensas e subtextos - são aspectos formais que nos motivam para a construção do filme.

Literatura e cinema são diferentes, aqui não vou me deter nesse tema bem conhecido, mas coloco a ideia de que fazer cinema é tornar visível o invisível, pois essa linguagem trabalha com exterioridades que deixam entrever o interior. O critério buscado, e por isso também fazer o Porteira Fechada, é um olhar muito próximo dos personagens.

Direção por narrativa visual: três seqüências, como exemplos da ênfase no uso da imagem e som de forma intensa, muitas vezes com poucas falas:

A mudança: “(...) Na tapera dos Guedes já não há mais nenhum animal de criação, e a horta foi toda colhida. A família termina de arrumar as tralhas numa carroça, carregam malas velhas e trouxas de roupas, e partem. No primeiro dia de viagem os campos ainda são amplos. Depois, as cercas farpadas ficam mais próximas. Passam por pequenas casas, juntas, precárias, figuras sombrias, tristes, observam a família Guedes chegar (...) .”

Nota de direção: No campo, o ambiente é aberto, amplo, muito silencioso, onde a vida é de pobreza e trabalho. Nessa viagem, a evolução do sentimento dos personagens se revela pela variação de contextos e paisagens. Quando se aproximam da cidade: no primeiro plano, a cerca de arames farpados, ao fundo, os Guedes passam de carroça.

Na casa da prima: “(...) as meninas riem. João Guedes entra, mas ninguém lhe dá atenção. Ele sai para o pátio dos fundos. Querubina e Maria José percebem o movimento. Ao lado da cacimba, João Guedes pega a alavanca da bomba d’água, começa a bombear. Chega o serviçal Tião, o afasta, e passa ele a bombear. João Guedes sai de lado, acende um cigarro. Do pátio, se ouve o vozerio e risadas alegres de dentro da casa. Joãozinho vem pra fora e fica ao lado do pai... ...Dentro da casa, no quarto de Maria Inês, num ambiente feliz e descontraído, as primas Joana e Clara vestem as roupas novas e se mostram umas as outras, as mães aprovam. Agradecendo pelos presentes, as meninas levantam-se e beijam Querubina.

No pátio da casa, João Guedes em silêncio. Dentro, as luzes e conversas animadas. Escuta que Oscar chegou. Depois de um tempo aparecem as crianças correndo na porta dos fundos: “Pai, pai, uma casa!” (...)”.

Nota de direção: Na casa fina e elegante da prima Querubina, inicia o desajuste dos Guedes na cidade; a casa é grande, mas fria e cerimoniosa. João Guedes é rechaçado, se coloca no pátio, mas ali também não tem lugar. Cena com ênfase no ponto de vista de João Guedes, com subtexto e ação sutil; os planos têm profundidade, há foras de campos, e valorizado o uso do som.

No baile no bolicho do Capitão Fagundes: “(...) O bolicho está movimentado, gaiteiros e percussionistas tocam música animada e alta, os homens bebem e estão expansivos. Casais dançam. Num canto, a família Guedes, Rita no colo, os pais sem tirar os olhos das moças, que chamam a atenção de rapazes em volta. Um toma coragem, se aproxima e tira Joana para dançar. Ela olha para Maria José, que olha para João Guedes, que demora um pouco, e consente, contrariado. Joana e o rapaz dançam sob os olhos vigilantes de João Guedes. Aos poucos o baile fica mais movimentado, a música mais alta, o casal se mistura aos outros e se afasta da vista de João Guedes; após um tempo de ansiedade, o pai, nervoso, vai atrás deles e, na lateral do bolicho, interrompe o início de um beijo. Joana corre para junto da mãe. O rapaz sorri e sai caminhando. A família Guedes, ofendida, se retira do baile. As meninas na frente, humilhadas, João Guedes muito bravo(...)”

Nota de direção: na periferia, muito pobre, vivem a decadência em um casebre mal arranjado; no bolicho do capitão Fagundes, homens entregues à cachaça. A cena do baile: predomina a música, não se escuta a voz dos personagens, é construída por ação, contexto e movimento. Determinante para o futuro da personagem Joana. Valorizada a música do baile e narrativa visual.

 

 


[1] Apresentar conjuntamente no JALLA 2010 nossas  leituras de Porteira Fechada,  que se resumem neste texto, pareceu-nos uma excelente oportunidade para desenvolver  leituras contrastivas, ensaiando uma prática que me parece muito rica. Também, para expor, simultaneamente, diferentes leituras de um texto, tendo em vista  diferentes finalidades: esboçar um estudo literário e realizar um filme. Tudo indica que ambas podem se iluminar mutuamente. Como se verá ao ler o texto que segue e que se divide em duas partes, a primeira escrita por Maria Helena Martins, sobre o livro de Cyro Martins, filmado por Guilherme Castro, a segunda, por este, sobre seu filme.

[2] Maria Helena Martins, Centro de Literatura e Psicanálise Cyro Martins- Celpcyro.

Guilherme Castro-Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS e Universidade Luterana do Brasil-ULBRA

[3] MARTINS, Cyro. Porteira Fechada. Porto Alegre, Movimento, 2010 (16ª.ed). 1ª. ed.1944.

[4] Cyro Martins (1908-1995) nasceu em Quarai (RS). Desde adolescente se interessou pela literatura, começando a escrever  contos e artigos. Formou-se em Medicina em Porto Alegre e retornou à terra natal para clinicar. Aos 26 anos  teve seu primeiro livro publicado ( Ed. Globo, Porto Alegre): Campo fora (contos). Retorna a Porto Alegre e se especializa na Medicina ( Neurologia, Psiquiatria, Psicanálise),   no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Ao mesmo tempo, publica ensaios científicos, artigos de crítica literária e ficção. Seus contos e romances , inicialmente com predominância de características regionalistas , revelam a vida campeira e de cidadezinhas fronteiriças. Com essa marca, entre outros, escreveu a chamada “Trilogia do Gaúcho a pé”. É também extenso o rol de suas novelas e romances urbanos, onde se destaca seu realismo e profunda compreensão da condição humana. Saiba mais sobre sua obra no site www.celpcyro.org.br .

[5] Esses três romances estão sempre sendo reeditados ( principalmente pela Ed.Movimento, de Porto Alegre) , havendo inclusive uma edição especial, organizada por Flávio Aguiar,  comemorativa do centenário de nascimento do autor ( 2008), publicada em parceria pela CORAG/Território das Artes/CELPCYRO.

[6]Em 1868, em Porto Alegre, foi fundada a Sociedade Parthenon Literário por um grupo de liberais e republicanos, salvo poucas exceções, presididos pelo intelectual Apolinário Porto Alegre. Segundo Guilhermino César: no  Parthenon, inicialmente predominaram as concepções artísticas de fundo romântico, voltadas sobretudo para as terras da campanha ( In História da Literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Globo, 1955.).

[7] JUVENAL,Amaro ( pseud. de Ramiro Barcellos). edição clandestina, 1916. Após os anos de repressão política passou a ter sucessivas edições regulares, sendo publicado até hoje.

[8] Capão rome, isto é, da raça Romney Marsh

[9] MARTINS, Cyro. Porteira Fechada. Porto Alegre, Movimento, p.117-118. 11ª. ed.

[10] MARTINS, Cyro. A Criação Artística e a Psicanálise. IN: O mundo em que vivemos. ( ensaios). Porto Alegre, Movimento, 1983 (1ª. ed), p.67.

[11] Muito obrigado, especialmente ao gentil convite que me fizeram Maria Helena Martins e Ligia Chiappini.