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MOACYR SCLIAR, DUAS CORDIAIS E ÍNTEGRAS METADES*

 

                                                                             Fernando Neubarth**

 

Coordenamos, em conjunto com os amigos Blau Souza, Franklin Cunha e José Eduardo Degrazia, uma série denominada Médicos (pr)escrevem, nos anos de 1995 a 2001, e que reuniu escritos não científicos de profissionais de todo estado. Apesar de consagrado, Scliar esteve sempre presente, atencioso colaborador. No sétimo e último volume, em deliberada intenção de encerrar a série, procuramos homenagear os médicos escritores naturais ou ligados ao Rio Grande do Sul, então já falecidos, elaborando um registro de dados biográficos e chegamos ao surpreendente número de 260 autores num período de pouco mais de cento e cinqüenta anos. Só para citar alguns: Caldre e Fião, Ramiro Barcellos, Aureliano de Figueiredo Pinto, Dyonélio Machado e Cyro Martins. Desconhecia-se material publicado que fizesse essa ligação, mas há muitos exemplos também na literatura brasileira e universal de reconhecidos artífices dessa dupla militância.

 

A associação entre medicina e literatura, tem algo de quimera, é como um desses seres híbridos da mitologia. Simbiose entre limites de realidades por vezes duras, cruéis e a construção de outras histórias. Ao médico são reveladas, em geral de forma espontânea, esperanças, medos, desejos, angústias, dúvidas, segredos. E utiliza-se um método de trabalho que prioriza as questões fundamentais, o acesso ao cerne das aflições, a fim de bem desenvolver um enredo que leve à cura ou pelo menos ao conforto. A anamnese, a elaboração da história do paciente, é o instrumento técnico que conduz o fio de um relato por labirintos onde habitam sombras. Num primeiro momento busca-se a identificação do paciente, quem é o personagem, de onde vem, o que faz. O motivo da consulta, sua queixa principal, o conflito que o faz procurar ajuda. A partir daí, desenvolve-se o histórico dessa motivação, um relatório minucioso de outros sinais, sintomas, motivações paralelas, vida pregressa, social, familiar. Dependendo de tempo e espaço para o envolvimento, condições, circunstâncias ou mesmo urgência, teremos aí o conto conciso, a novela ou até o romance. Pode haver alguma verdade nisso, mas seria uma simplificação, há certamente muitos outros pontos de convergência

.

O desenvolvimento e as mudanças na prática médica nas últimas décadas e, em particular, neste início de milênio; os avanços científicos e tecnológicos; o reconhecimento de novos saberes e sua difusão quase que instantânea, graças aos novos meios de comunicação; um salto qualitativo nos métodos diagnósticos; a compreensão das bases genéticas; procedimentos menos invasivos; a realidade dos transplantes e novos tratamentos, transformando em meta possível a cura, em mais e mais situações onde antes restava a contemplação piedosa; vive-se cada vez mais e com melhor qualidade. É possível afirmar que a medicina nunca esteve tão senhora de seus objetivos: promover saúde, aliviar sofrimento, cuidar, salvar vidas. Mas por outro lado, o profissional de saúde enfrenta más condições de trabalho, a pressa parece ter se tornado condição, substituindo a capacidade de observação e o raciocínio pela solicitação de exames, fruto de uma cultura desinformada de que esses sempre aumentariam a certeza no diagnóstico, contribuindo para isso também os próprios pacientes, planos e instituições de saúde. Há muitos equívocos e uma motivação crescente na necessidade de resgatar o caráter humano à arte médica.

 

Se a medicina pode ter contribuído para motivar escritores, o inverso parece ser uma tática para transformá-la. Há um terreno comum, um território partilhado como assim o chamava Scliar, um forte aliado da proposta cada vez mais convincente de incentivar a leitura de textos literários pelos estudantes, buscando uma melhor compreensão dos sentimentos e dramas que a doença ou o temor desta provoca nos homens. Moacyr gostava de falar sobre isso.

 

Eu o chamava de rabi. Não por aparência, nem a barba era tão vasta. O jeito paternal. Síntese de médico da aldeia, mestre, juiz, conselheiro. A candura do olhar, no sempre guri, que sabia como irmão mais velho. Eu era o “doutorzinho”, sem viés pejorativo, sentia o afeto, no interesse comum, na atenção ao pretenso aprendiz. À solicitação de receitas, prescrevia sabedoria em pílulas: - Não perde energia em guardar idéias, as boas não fogem. Contudo, ele as aproveitava. Pragmático, constante, escrevia; mas nunca inconseqüente. Capricho na forma e conteúdo resultava natural. Deixa inegável legado. Mais do que isso, a lembrança do incentivador generoso, do imortal sem vaidade, que conhecia números que fazem as estatísticas da saúde pública, mas a noção de que em se tratando da vida, não são infinitos. Outra de suas pílulas: o conto parece opção para os que sabem que o tempo tem seu limite.

 

Moacyr Scliar sofreu um AVC no dia 16 de janeiro de 2011, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, quando se recuperava de uma cirurgia. Faleceu na madrugada de 27 de fevereiro, um domingo. Período de provação para a família e os amigos, os muitos amigos e admiradores. Um tempo de passagem, preparação, viagem pelo deserto da dúvida, dos sentimentos contraditórios, da sempre brutal constatação da ausência, de pontos finais em enredos que desejos pedem imortais.

 

Poucos souberam, mas é importante revelar. Dias de verão, boa parte da população no litoral, principalmente nos finais de semana, o Parque Farroupilha, a nossa Redenção, foi o ponto de encontro de um estranho grupo. Chegavam no avançado das horas, noite após noite, quando mesmo os mais tardios já haviam deixado os bares da Osvaldo, da Venâncio e a variada fauna cotidiana se resumia a alguns poucos representantes de cada espécie. Revelado isso, talvez alguns praticantes de caminhadas no alvorecer rememorem alguns galhos baixos quebrados, a grama pisoteada, marcas no areão dos caminhos que levam ao Recanto Oriental. Mas é pouco provável. Alguns plantonistas do HPS logo ali perto, até pela experiência de servidores antigos do pronto socorro, não terão dado grande importância às histórias de um ou outro bêbado que tivesse se aventurado no parque à noite. - Delírios, bobagens. Mas foi verdade.

 

Vindos de diferentes lugares, dos altos da Independência, da Floresta, Rio Branco, Auxiliadora, dos lados da Azenha, e mais além, da Cascatinha, de Viamão, passando a Agronomia, seguindo o riacho ao longo da Ipiranga, de lonjuras outras, insuspeitadas. Haveria quem amanhecesse com a impressão de ter escutado um tropel, sonhado com desfiles de gaúchos montados feito ginetes, acusado o inconfundível som dos cascos no asfalto, em algumas poucas ruas onde resiste o paralelepípedo e até no arenito e no basalto de algumas calçadas. De resto, os centauros eram quase absoluto silêncio.

 

Fabulosas criaturas, originários da Tessália, descendentes de Íxion e de uma nuvem, com cabeça, braços e peito de homem e o resto do corpo e as pernas de um cavalo, os centauros sempre foram tidos como violentos, arruaceiros, representantes das forças sombrias e desgovernadas da natureza. Não era o caso, talvez porque dentre estes, havia um que sempre foi considerado exceção: Quíron, filho de Fílira, que era filha de Oceano, e do Titã Crono que assumiu a forma de um cavalo para esconder sua traição da esposa Reia. Conhecedor das artes, da música, da medicina, da caça e da guerra, Quíron era um sábio. Quando morreu, Zeus o colocou no firmamento em forma de constelação. Foi o tutor de diversos heróis, Jasão, Aquiles... E também de Asclépio, a quem ensinou a arte médica. O aprendiz, que era filho de seu amigo Apolo, tornou-se tão versado que, ao ressuscitar um de seus pacientes, Zeus, incomodado pela ameaça ao monopólio divino da imortalidade fulminou-o com um raio. Asclépio, ou Esculápio para os romanos, tornou-se o deus da medicina.


Além de Quíron, outro centauro tinha fortes motivos para estar ali, entre os que se reuniram nas sombras do parque no coração de Porto Alegre, Guedali Tratskovsky, quarto filho de um casal de imigrantes russos, nascido no interior do Rio Grande do Sul, e que teve como tutor o próprio Scliar.


Os centauros do parque Farroupilha concentravam-se em pequenos círculos, a maior parte do tempo calados, um que outro comentário, em quase sussurro, a atitude de quem aguarda, espera. A vigília foi mantida ao longo dos quarenta e poucos dias em que o médico e escritor, não muito longe dali, inconsciente, preparava-se, aguardando sua própria redenção. 


Quando o desfecho se cumpriu, assim como vieram, os centauros se dispersaram. Ninguém mais os viu, embora exista quem assegure, e eu acredito, que restou um, ainda jovem, brincalhão, que faz trotear em giros e pinotes, em bons fins de madrugadas, os cavalinhos do carrossel do pequeno parque de diversões.


Humanista perfeito e homem simples, em Moacyr Scliar uniam-se a medicina e a literatura. Para bem praticá-las, a premissa básica, tanto para uma ou outra, será sempre a cordialidade, o interesse pelo paciente/personagem, pela construção/desconstrução/recriação de sua história e seu destino. E é a cordialidade que desperta a esperança que faz girar a vida.

 

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*Fernando Neubarth é médico e escritor                                       

 

** Texto publicado originalmente na Revista VOX, Porto Alegre, IEL/CORAG, ano 1, nº 1, p.16-18, 2011)