DEPOIS DE UMA TARDE SOMBRIA | Imprimir |

A frase de Edward Lorenz, que resume e ilustra o chamado "Efeito Borboleta" da meteorologia e das Teorias do Caos, pode ser enunciada assim (salvo equívoco de minha memória): "Uma borboleta bate suas asas na China e faz nascer uma tempestade no Brasil". Ou será o oposto? Não sei, mas pensei nela agora há pouco, a propósito da visita que desencadeou (ou apressou) a chegada do movimento psicanalítico ao Rio Grande do Sul. Cyro Martins descreve essa visita numa conferência, depois incluída em seu livro Caminhos, e que acabo de reler, reproduzida numa publicação recente da Fundação Mário Martins. O Correio a entregou na data em que meu pai faria aniversário, numa dessas coincidências que, por instantes, parecem vir carregadas de alguma ordenação secreta. Relendo-a, tive a impressão de achar, na prosa precisa de Cyro, o mesmo vislumbre indicador das influências do acaso. Cyro conta como, num consultório montado fazia pouco, dois psiquiatras se debatiam em dúvidas - ele e seu amigo Mário, colegas de turma, vindos da mesma região da Fronteira com o Uruguai (Quaraí e Livramento) e compartilhando, sem parentescos, do mesmo sobrenome. Seu trabalho ali era escasso e repleto de incertezas. De vez em quando lhes "caía um psicótico para internar", além de uns "poucos neuróticos, em geral graves, que os clínicos, cansados de tanto apanhar" , encaminhavam. "Não sabíamos o que fazer", Cyro confessa; "como convencer um fóbico, pela persuasão, de que ele deveria enfrentar sem temor o escuro"? Ou um "obsessivo de que ele não precisava voltar vinte vezes para verificar se chaveara bem a porta"? Ou , ainda, um "paranóide, de que era pura desconfiança sua achar que o vizinho o espiava dia e noite "? Conversavam muito sobre essas dificuldades e, tentando descobrir melhores instrumentos para o tratamento de seus clientes, estudavam Freud. E seguiam, "enquanto os tempos não mudavam", utilizando a insulinoterapia e os eletrochoques em seus pacientes do Hospital São Pedro e do Sanatório São José. "Na realidade, os tempos não mudariam enquanto nós não mudássemos", Cyro conclui.


Foi então que ocorreu a visita. Cyro a descreve: "Mas no inverno de l943, numa tarde sombria, dessas que tornam mais curtas as esperanças da gente, nos apareceu no consultório um senhor argentino oferecendo a assinatura da Revista de Psicoanálisis, flamante, e nos deixou os dois primeiros números. No primeiro, em artigo bastante detalhado, Arnaldo Rascovsky expunha para os psiquiatras da América Latina a possibilidade de formação psicanalítica em Buenos Aires".


Fico pensando: Buenos Aires, mas não esta de hoje, de excursões de fim-de-semana, e sim aquela capital estrangeira ainda distante, numa época de comunicações difíceis e viagens trabalhosas - e em tempos de uma guerra em que o Brasil já entrara enquanto a Argentina permanecia neutra. Ali, no ano anterior, havia sido fundada a Associação Psicanalítica Argentina - resultante de um encontro entre dois psicanalistas chegados da Europa e um grupo de estudiosos de psicanálise. Reunido em torno de Arnaldo Rascovsky (da Neuropsiquiatria do Hospital das Crianças) e de Enrique Pichon Rivière (da Psiquiatria Infantil do Hospício de Las Mercedes) e de suas esposas, Matilde e Arminda, o grupo pelejava por aprender psicanálise em leituras e estudos, no final dos anos 30. E somente a chegada de Cárcamo e Garma iria abrir-lhes a oportunidade do aprendizado vivenciado na análise pessoal.


Relembro: Celes Ernesto Cárcamo e Angel Garma, seguindo trajetórias diferentes, haviam vindo da França em 1938 e 39. Cárcamo , argentino, morara em Paris, onde se analisara com Paul Schiff, analista de origem judaica que depois se engajaria na Resistência francesa. Garma, espanhol, vivera na infância em Buenos Aires, onde suas irmãs haviam permanecido; estudara com Marañon em Madrid e fizera análise com Theodor Reik em Viena. A guerra empurrara ambos de volta à Argentina e sua permanência tornara possível a análise ao grupo de interessados. Assim, as tempestades da guerra na Europa haviam propiciado o surgimento, nos confins meridionais da América, de uma instituição psicanalítica - da qual a publicação da Revista fora conseqüência natural. E, trazida pelo vendedor, ela abria aos dois psiquiatras gaúchos uma possibilidade imprevista até aquele momento. Lembro então que, anos mais tarde, em seus diálogos com Abrão Slavutsky, Cyro recordaria o episódio da visita com maiores detalhes. Apanho o volume de "Para Início de Conversa" e vou lendo:


..."Estávamos eu e o Mário no consultório, num intervalo, conversando, quando se apresentou um senhor muito bem apessoado, de 'habla castellana'. Andava visitando os psiquiatras e trazia como oferta, para assinatura, o primeiro número da Revista de Psicoanálisis . Por intermédio desse primeiro número ficamos sabendo que já era possível a gente se analisar e fazer a formação psicanalítica com todos os efes-e-erres requeridos sem sair para muito longe, tanto mais que o longe, na época, estava interditado pela guerra. Buenos Aires ficava à mão de semear. Aquela visita provocou um impacto em nós ambos. Eu fui o mais atingido porque, na ocasião, me achava impossibilitado de fazer qualquer plano de me afastar de Porto Alegre, devido a doença grave em pessoa da família. O Mário não. Leu e releu aquela revista e concluiu que iria para Buenos Aires. A primeira e fundamental providência foi escrever para Garma pedindo hora. A resposta foi positiva. Levou aproximadamente um ano em preparativos, inclusive precisou licença do exército, pois o país estava em guerra. Essa foi a conseqüência transcendente daquela visita, aparentemente uma simples formalidade comercial. No entanto, seus efeitos ultrapassaram os limites do consultório daqueles dois jovens psiquiatras, de escassa clínica e até então de futuro incerto . Naquela tarde foi plantada a semente do movimento psicanalítico em Porto Alegre."


A leitura faz com que se ative em mim aquele núcleo de magia que repousa, resistente, no cerne mais primitivo de nossas mentes e a visita parece vir revestida de um certo ar de destino. E me distraio imaginando: e se o vendedor não chegasse, se sua mensagem se extraviasse... Não apenas a chegada da Psicanálise ao Rio Grande tomaria uma outra forma, mas também as vidas de Cyro e Mário seriam diferentes - além da minha...


Agora , a curiosidade me leva a querer conhecer a matéria que lhes causara impacto. Procuro o primeiro volume da Revista e leio sua Apresentação inicial. Depois de enfatizar o fato de ser a primeira publicação em língua castelhana destinada à difusão da ciência psicanalítica, ela aponta para suas origens clínicas: "A psicanálise nasceu como uma necessidade terapêutica para interpretar e aliviar os sofrimentos de um determinado setor de pacientes. Sua evolução posterior a levou a ampliar o campo de suas atividades médicas e, de sua matéria inicial, constituída por psiconeuróticos, foi se estendendo no sentido de dar uma interpretação mais profunda aos mecanismos mentais que ocorrem na psiquiatria. Por outro lado, aspectos até então insuspeitados da medicina interna passaram a ser campo fértil para suas investigações. Disso surgiu a Medicina Psicossomática, hoje em plena evolução"... Outras aplicações da psicanálise são também expostas: "Embora o desenvolvimento da psicanálise se estenda a todas as questões da atividade humana relacionadas com a conduta do homem e suas motivações inconscientes, atualmente foram concretizadas de modo definitivo muitas possibilidades apenas entrevistas em seu início. Desse modo, sua contribuição à medicina, à criminologia, à antropologia, à sociologia etc. têm linhas definidas de ação." Prossigo a leitura e verifico que, coerente com sua proposta, a Revista publica quatro artigos. O primeiro, de tema antropológico e latino-americano ( muito adequado para essa inauguração) é uma conferência de Cárcamo: "A Serpente Emplumada - Psicanálise da Religião Maia-Asteca e do Sacrifício Humano". Seguem-se um artigo de Garma sobre a Interpretação dos Sonhos e duas traduções, uma de Franz Alexander ("Aspectos Psicológicos da Medicina"), e outra de Melanie Klein ("Primeiros Estágios do Conflito Edípico e da Formação do Superego"). E, por fim, após várias resenhas de livros e artigos, encontro o relato das atividades da Associação, com seus Seminários, seus Cursos e estágios nos serviços hospitalares de Rascovsky e Pichon Rivière, destinadas a "favorecer a criação de associações semelhantes nos países irmãos de Espanha e América" - determinante maior do impacto experimentado pelos dois psiquiatras em seu consultório porto-alegrense.


Cyro tentaria, mas somente poderia atender plenamente ao chamamento algum tempo mais tarde. Mário pôs-se a caminho, talvez também impelido pela necessidade de elaborar o luto pela morte recente de seu pai , após a perda anterior de duas irmãs e da mãe. Não dispunha de economias; conseguiu, porém, que o Estado continuasse a pagar seus vencimentos de médico enquanto fazia seu curso. E haveria também o empréstimo da Fundação Muñoz, que fornecia aos candidatos estrangeiros uma pequena bolsa, a ser paga quando retornassem a seus países. Com esses recursos, partiu em l944. Sua esposa Zaira e seus dois filhos seguiram logo - minha mãe, minha irmã Júlia e eu... E agora me vejo invadido por lembranças: o trem para Montevidéu, a viagem até Colonia, o navio que nos levou a Buenos Aires, a pensão na Calle Lavalle, num tempo em que essa rua não era ainda um passeio de pedestres. Ocupávamos um aposento que uma pesada cortina de veludo gasto dividia em dois. Outros hóspedes da pensão - argentinos do interior, ingleses, bolivianos - tinham também crianças, nossos companheiros de passeios nas praças da Costanera. Enquanto nossos pais iam descobrindo o Inconsciente, em suas análises e estudos, íamos todos descobrindo a Cidade-Grande e suas modernidades , aquela "Buenos Aires que antes se desgarraba en arrabales hacía la llanura incessante", dos versos ainda desconhecidos de Jorge Luis Borges. Mas isso já é outra história, que pode tomar o perigoso rumo casimiriano de "Meus Oito Anos" ... Afasto as recordações desse tempo de vida modesta e dinheiro escasso, mas iluminado pela riqueza das descobertas - e vou buscar na História da Associação Psicanalítica Argentina ("Cuentame tu vida") de Jorge Balán alguns dados mais sobre a instituição naqueles anos.


Verifico que a Revista saiu às ruas "quase por artes de magia", com 5000 exemplares e nenhum apoio de entidades oficiais. Sua sobrevivência era assegurada pela Fundação criada por Francisco Muñoz, um imigrante espanhol sem pretensões intelectuais, cuja alfaiataria crescera e se transformara numa próspera empresa de roupas feitas (não esqueci seu slogan : "Casas Muñoz, donde un peso vale dós"). Muñoz a instituíra por gratidão, pois um tratamento com Pichon Rivière havia curado seu gerente e grande amigo de uma agorafobia que o prostrara. Mais tarde, a Fundação forneceria "empréstimos de honra" aos candidatos estrangeiros.


Balán também cita Maurício Abadi, para quem, na APA daqueles primeiros anos, "tinhamos a idéia de ser uma grande família, onde todos eram solidários". Segundo Balán, "tratava-se de uma instituição absorvente em extremo: ainda que seus membros não morassem nela, o lazer e o trabalho estavam interligados em seu funcionamento". A psicanálise era vista, nas palavras de Balán, como " um projeto de transformação do indivíduo e da Sociedade e não apenas como uma disciplina científica ou profissão". A coesão interna era reforçada pela resistência do meio pois, conforme o historiador, "a psicanálise prosperava à sombra da cena pública dominada por um estado reacionário no campo da família e dos costumes; sustentava-se na privacidade dos consultórios. Uma classe média modernizada acorria a eles." Seria essa a instituição que acolheria os brasileiros ( Mário, Lemmertz e Cyro, vindos de Porto Alegre, e Alcyon Bahia, Walderedo e o casal Perestrello, do Rio de Janeiro).


Vou lendo e recordando conversas ouvidas dos adultos, uma ou outra visita a algum analista com filhos, um almoço comemorativo no Rio Tigre com os Langer e os Rascovsky... Dias bons, sucedidos depois por tempos de escassez, dificuldades e inevitáveis frustrações. Nada se constrói sem sacrifícios, reflito. E torno a pensar na visita daquele senhor de "habla castellana" - como se fosse uma encarnação do Destino batendo à porta do consultório no inverno de 43. Mas logo encontro, no "Para Início de Conversa", o próprio Cyro apressando-se a descartar as determinações fatalísticas e respondendo a Slavutsky: "Costumo dizer que o destino é nosso. Nós o predispomos e cumprimos." E retorno à racionalidade: mais cedo ou mais tarde, o movimento psicanalítico chegaria a Porto Alegre... E, quanto aos dois psiquiatras, existia neles uma vocação desejando realizar-se e a Revista trazida pelo vendedor apenas a havia posto em marcha...


Volto à Teoria do Caos: os sistemas dinâmicos estão caraterizados pelo intercâmbio contínuo. Com ventos vindos da Europa, o ar se movera em Buenos Aires e seus efeitos tinham terminado por causar mudanças em Porto Alegre. Alguma tempestade? Não, somente chuvas que, na tarde sombria, haviam caído sobre o solo seco e feito crescer esperanças até então curtas - e que, hoje, mais de meio século depois daquela visita, aqui estão, crescidas, determinadas a aliviar o sofrimento psíquico de tantos, agregadas em várias instituições de ensino, estudo e pesquisa. Como este CELP Cyro Martins para o qual escrevo agora, relembrando o início de uma caminhada que já dura 57 anos. E que põe em minha memória novamente os versos de Borges: "Esos caminos fueron ecos y pasos, mujeres, hombres, agonías, ressurrecciones, dias y noches, entresueños y sueños"....


Roberto Bittencourt Martins
é Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise - RJ


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