Imprimir

Joana Bosak de Figueiredo, junho de 2008


A arte deve ser como um espelho que revela nossa própria face.”

 

Jorge Luis Borges

 

A retomada clara ao mote proposto por Borges em “Kafka e seus precursores” (1951) tem aqui uma importante razão de ser. Se Borges nos apresenta Kafka criando seus pais literários, penso aqui em Cyro Martins como o talento individual que cria uma nova tradição (Eliot, 1919). Por outro lado, o grande precursor de Cyro Martins parece ter sido Alcides Maya, que em Tapera e Ruínas Vivas (1911-12) já nos apresentava temas queridos e recuperados pela prosa trabalhada de Martins.

Ao trazer o tema da orfandade e da falta de rumo, Cyro Martins me evoca, necessariamente, dois talentos individuais dessa tradição: o argentino Ricardo Güiraldes, provável precursor, com seu quixote dos Pampas, Don Segundo Sombra (1926), e Barbosa Lessa, com Os Guaxos (1959), premiado melhor romance pela Academia Brasileira de Letras em 1961.

Entre precursores reais ou imaginários – posto que a relação é o leitor que estabelece, como no princípio intertextual: a relação é produtiva, não estática ou dada a priori – e sucessores tão visíveis como ficcionais, Cyro Martins se constitui como uma grande fronteira na literatura regional do Rio Grande do Sul e como representante dessa no espaço platino. Retoma o gaúcho em sua inteireza cotidiana, apesar de o centauro estar pela metade: o cavaleiro não mais existe e mesmo a última lembrança desse passado recente e tão distante, o arreio, é penhorada pela dureza da vida - são órfãos da própria gauchidade, ou melhor, eis que o conceito novamente se ressemantiza. O gaúcho como homem do campo real perde seu elo com a realidade, ele, que nunca foi patrão ou proprietário perde o direito de estar naquela terra que pensava sua. Perdida a terra, perdem-se, sucessivamente, o cavalo, os arreios e, por último, a esperança.

O órfão, ou melhor, o bastardo, havia sido parte da temática de Ricardo Güiraldes, aristocrata portenho que escolhe ser gaúcho na literatura e em momentos da vida. Mas o órfão de Güiraldes se converte em gaúcho e, posteriormente em proprietário e homem letrado. Embora herdeiro do dono da estância, o verdadeiro testamento de Fabio Cáceres é dado por Don Segundo, a sombra de todos os gaúchos, com a sabedoria, a calma e a paciência que o gaúcho teve de desenvolver literariamente para sobreviver no mundo dito civilizado. Depois de Martin Fierro, havia que pacificar-se. Don Segundo é isso: o gaúcho que faz as pazes com a sociedade. Mestiço, representa não a si mesmo: mas a coletividade difusa de seus paisanos e de todo um país híbrido em busca de uma identidade histórica plasmada no tempo. A herança de Don Segundo para Fabio e todos os gaúchos é a certeza de que o ser gaúcho é algo imaterial que nos acompanha já independentemente do destino social: agora até o patrão pode ser gaúcho. Ser gaúcho longe de ser um crime, é agora, algo que se carrega na alma.

Leitor da tradição nativista, Barbosa Lessa, em Os Guaxos, retoma o tema da orfandade. Para ele, a história do Rio Grande do Sul, com todas as suas batalhas, foi escrita por homens guaxos: o guaxo e o gaúcho mesclam-se, é o ser sem eira nem beira, o pária social, o criminoso, o contrabandista; que com o passar do tempo, com o cercamento dos campos, com a paz, tornam-se posteiros, peões, domadores, alambradores. O guaxo de Barbosa Lessa é o gaúcho a pé sem idealização de Martins, são os homens e mulheres do campo, em sua vidinha cotidiana, repleta de afazeres domésticos e campeiros, aqueles que ainda não foram engolidos pela cidade.

Mas se é para a cidade ou para os arrabaldes – como quer Borges – que os gaúchos se acabam indo, eis que o substrato anterior pode continuar existindo na alma, se não na lida. É nas orillas – antes Palermo, agora já bairro semi-central de Buenos Aires - das cidades que o gaúcho aparece, e aí temos a figura de um contista como Aldyr Garcia Schlee, outro fronteiriço que, dentro de seu tempo nos apresenta cenários despidos de glamour campeiro: os antigos gaúchos são, agora, os vizinhos empobrecidos, que lutam por uma galinha para a refeição do dia.

Schlee, que estuda, conhece e traduz a fronteira na fronteira, nos aproxima o gaúcho como ele se mostra nos interiores de sua nova realidade; não julga, nos dá a conhecer as pequenas misérias de seus cotidianos.

E mesmo nos lugares e situações mais imprevistas surgem sucessores de Cyro Martins: o Gaucho Insufrible (2003), de Roberto Bolaño, é, a meu ver, uma espécie de Guedes às avessas, com seu campo estilizado, onde não há mais gado e quase cavalos, apenas coelhos, frutos de uma nova (ir)realidade. Nesse caso, o protagonista, Héctor Pereda, viúvo, pai dedicado e “advogado inatacável”, volta, já entrado em anos à sua terra de origem. Encontra seu rancho tapera e, aparentemente em delírio, só vê uns poucos coelhos à sua volta e paisanos que vão surgindo aos poucos. A realidade não existe mais, só a que a literatura e nossa memória vão criando e retro-alimentando. Não há nada além de texto e vazio.

O livro-poema Gaiteiro Velho, de Fausto Wolff (2003), mostra, também, principalmente em Missões, esse novo gaúcho: um gaúcho, que como Orlando, é imortal e já tem idade para conhecer o outro lado: quando fez 203 anos, achou que já era a hora de pendurar as esporas e depois de ter corrido o mundo, conhecido venturas e desventuras humanas, volta para sua terra, rememora seus feitos de homem do mundo – é um gaúcho cosmopolita, como o posterior de Güiraldes e o próprio Güiraldes – e na sua rememoração reencontra-se consigo mesmo e novamente se vê piá, última lembrança.

Mas ataquemos por outra frente: em Ramilonga, de 1997, Vitor Ramil retoma sua Estética do Frio através dos poemas musicados de João da Cunha Vargas, além de composições próprias. Ramilonga é sua própria milonga, uma milonga que transcende o milênio. Indo ao Pampa é a volta a essa paisagem, pensando no ano 2000. Deixando o pago nos mostra também a rememoração.

Como pensa Ruben Oliven (1992) parte – gaúchos, campos, cavalos - e todo – paisagem, Prata, Brasil - são, fundamentalmente, cernes na construção de nossa identidade gaucha e andarenga. Hoje, nada mais cosmopolita do que gaúchos desfilando em passarelas européias e o tango eletrônico encontrando-se com a milonga em Vuelvo al Sur de Gothan Project.

Tudo é possível para o gaúcho depois de Cyro Martins e seus sucessores, até a sua sobrevivência.