Bases Psicodinâmicas da Delinqüência | Imprimir |

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Os estudiosos da conduta delituosa, conforme o enfoque predominante psicológico ou sociológico, tendem a enfatizar, de modo exclusivo, a importância decisiva do seu ponto de vista. Entretanto, creio que não se deva fazer, desse aspecto do estudo do homem, questão fechada, em nenhum sentido. De tal forma, junto ao que ficou dito acima a influência perturbadora que exercem determinados fatores ambientais sobre o desenvolvimento das aptidões para lidar com o semelhante.

O ato delituoso resultará de a pessoa delinqüente se encontrar, como o suicida, em meio a uma crise? A crise consistiria numa tensão emocional que tão só no ato criminoso encontrasse sua válvula de escape específica?

Se é verdade, como afirma Dostoiévski, que "na consciência dos criminosos há um fundo ignorado de bondade e de justiça", o ato delituoso deve estar muitas vezes impregnado de ambivalência, expressando-se na impossibilidade do crime perfeito. Baseados neste fator ideal e nos sentidos de culpa, que por ventura existem, é que se pode esperar, de alguns casos, a recuperação. São indivíduos que odeiam, porque foram envenenados de ódio desde pequenos, mas que também querem amar. Aí, nesse recôndito, talvez se esconda o fundo ignorado de bondade e de justiça. O crime seria, nalguns casos, a dramatização do extremo desespero a que pode arrastar o estado anímico de carência. O criminoso, à medida que reincide no delito, vai se fixando nessa técnica de alívio da angústia.

Clinicamente, o ato de delinqüir, nas suas diferentes gradações de gravidade, corresponderia às múltiplas formas dos equivalentes epilépticos até a brutal descarga da grande crise.

Também, às vezes, a conduta delinqüente pode ser a manifestação de um propósito de chamar a atenção dos demais para fugir da vala comum do anonimato e desses casos o sentimento destrutivo predominante seria a inveja. Algo semelhante ocorre em certas condutas suicidas exibicionaistas e fracassadas. Nesses casos, devemos supor, há um desejo de obter ajuda.

'As vezes uma mensagem desse teor nos chega cifrada, através da análise e da psicoterapia analítica de psicopatas não propriamente delituosos.

As características psicológicas profundas da delinqüência estão catalogadas, hoje, graças às investigações de autores muito sérios.
Os menores delinqüentes, por exemplo, raramente apresentam sintomas neuróticos. São de manejo difícil, mas procuram conquistar a atenção e os sentimentos de pena dos circunstantes, assim como só excepcionalmente apresentam dificuldade de aprendizagem escolar em relação a certas matérias, o que, no entanto é freqüente, nas crianças neuróticas, devido à inibição intelectual de causa afetiva. O que lhes é comum, a menores neuróticos e menores delinqüentes, é a instabilidade da atenção. Conseqüentemente, atrasam-se na escola. O menor delinqüente devaneia menos, pois está dominado pelas tendências a dramatizar suas fantasias em ações. Quanto à conduta sexual, as diferenças mais significativas que se registram entre menores delinqüentes e menores neuróticos dizem respeito às perversões manifestas, mais comumente observadas naqueles. No referente à formação da personalidade, o que se aponta com mais freqüência nos delinqüentes é a distorção do superego.

De ordinário, os menores delinqüentes sofrem pressões ambientais mais traumatizantes que os neuróticos. E ainda ressalta o fato de terem passado, muitas vezes, um bom tempo de sua infância recolhidos a instituições, do gênero reformatório. Os neuróticos provêm de lares que aparentam uma relativa estabilidade, enquanto, entre delinqüentes, o habitual é que provenham de lares totalmente destruídos. Os pais de menores delinqüentes dão mostras de instabilidade temperamental ou mesmo de tendências ou atuações anti-sociais francas. Os pais de crianças rotuladas como neuróticas são em geral neuróticos manifestos. Os laços emocionais entre filho e pai, entre filho e mãe, assim como os dos pais entre si, são de hábito conturbados no caso de delinqüentes, muito mais do que nos lares de onde provêm os jovens obsessivos fóbicos. Curiosamente, porém, assinalam alguns autores, não se verificam diferenças de vulto no trato entre os irmãos, quer consideremos um ou outro dos grupos comparados.

A conduta leviana, incoerente, dos pais, influi de modo nocivo na estruturação da personalidade da criança que poderá vir a ser um psicopata delinqüente. Também importa mencionar aqui a proporção de menores perturbados da conduta que foram amamentados pela mãe é insignificante e, quando o foram, o desmame se deu precocemente. Com os conhecimentos que possuímos hoje acerca da formação da personalidade, é fácil compreender que esses fatores negativos estão no núcleo dinâmico e genético do problema que ora nos ocupa. A base de toda a situação psicopática-delinqüente é um impulso, devido à carência das funções de adaptação aloplástica do ego. Entretanto, como a confusão é freqüente, importa salientar que impulso e compulsão são diferentes. A compulsão caracteriza o ato obsessivo, mandato interior para fazer algo sentido como desagradável, por doloroso, cruel ou repugnante. Na prática clínica, os atos compulsivos podem às vezes com fundir-se com os impulsos, principalmente se estes estão sobrecarregados de culpa.

A delinqüência, que se impõe como expressão mais ostensiva da psicopatia, é um transtorno psíquico essencialmente evolutivo, que atinge o processo de personificação. Em conseqüência, há um déficit do sentido de realidade, de sentimento de identidade, da noção do esquema corporal e da capacidade de síntese do ego. A adaptação à realidade, não obstante a fachada de lucidez, é uma pseudo-adaptação, decorrente da falta de integração adequada no nível afetivo e da inaptidão a aprender com a experiência. E sobre isso somem-se as deficiências de abstração, o que leva o psicopata delituoso a incorporar experiências concretas sem seu correspondente valor simbólico. Portanto, se não vivencia o significado efetivo de muitas situações existenciais, importantes, consegue apenas verbalizar suas emoções e tem extremamente comprometido o processo do pensamento. Com efeito, pensar implica retardar a ação, esperar o momento apropriado para a gratificação desejada.

Como explicar, então, as habilidades mentais e motoras que caracterizam a maioria dos delinqüentes, a ponto de escaparem impunes de inúmeros roubos, assassínios, embustes, etc? É que, como salientou Edgardo Rolla, esse "indivíduos fizeram de sua forma de viver um tipo de especialização da coordenação motora estriada, e conseqüentemente da coordenação do pensamento, que lhes permite cometer com o máximo de impunidade as ações fundamentais características do psicopata".

Acentuarei ainda que, na psicopatologia desses indivíduos, se evidencia uma outra peculiaridade do psiquismo, que é a perturbação de função sintética do ego, da qual depende a integração dos impulsos e o seu aproveitamento para o desenvolvimento da personalidade. Daí o déficit de auto-crítica, a desconsideração da realidade e a sempre possível eclosão criminosa.

Um dos aspectos do nosso tema, que talvez seja o que mais empolga no momento, é o da delinqüência juvenil cujo substrato psicopatológico pode consistir em qualquer tipo de psicopatia. Duas séries de fatores objetivos, convergindo para os sentimentos da infância e seus privilégios, de um lado, e de outro, a expectativa ansiosa do futuro, contribuem para o quadro complexíssimo que configura a crise da adolescência. Nessa crise, de ação e de expressão, o jovem corre atrás de suas definições: a sexual e a de identidade. As expressões fenomenológicas dessa etapa subordinam-se às defesas antidepressivas. Nesse jogo defensivo, recorrem à mentira, à má-fé, às identificações projetivas maciças e, mais gravemente, às crises de despersonalização. A atividade desses jovens psicopatas, que facilmente caem no delito, tanto em casa como na escola, no trabalho, nos locais de diversão, tende a ser predominantemente negativa, tanto do ponto de vista da produtividade quanto da ética. Procedem de lares carentes de figuras parentais apropriadas para uma boa identificação. São pais de caráter muito infantil, desejosos de transformar os filhos em seus protetores, nos diferentes níveis emocionais. O resultado de tal relacionamento com os pais é desastroso. Sem modelos maduros, esses jovens são capazes de desenvolver as qualidades que levam naturalmente ao equilíbrio adulto. Crescem, se é que se pode chamar a isso crescer, na dependência de mecanismos de repressão maciça e de negação dos instintos, o que os isola da realidade. Incrementando-lhes o narcisismo e as fantasias de onipotência, fonte de suas defesas antidepressivas. Como lhes faltam pais para uma relação interpessoal salutar, tampouco podem adquirir confiança em si mesmos, o que constitui um pré-requisito indispensável para desenvolver o espírito de independência e socialização. É que não puderam tornar próprios, assimilados, os controles externos. E mais, para neutralizar a angústia que lhes provoca essa impotência, negam seu valor como norma de vida. Tudo isso interfere negativamente na compreensão da realidade, que tentam manejar magicamente. O fracasso dessa defesa tem uma das primeiras manifestações na ansiedade que lhes provoca a escolha profissional, devido à incapacidade para renunciar. Escolher então assume o significado, não de aquisição, mas de perda de algo. Muitas de suas ações agressivas tomam aspectos de substitutivos de sintomas psíquicos. Haja vista a esfera de genitalidade. Como a conduta genital se expressa em todas as atividades, o fracasso de identidade sexual no psicopata manifesta-se em todos os campos da conduta humana.

A delinqüência exprime o distúrbio da personalidade resultante do conflito crônico com os pais, com as pessoas que são ou representam autoridades, com a sociedade em geral. O comportamento desses indivíduos atesta o fracasso mais flagrante da luta defensiva contra os impulsos, contra as premências reivindicantes.

A pesquisa das raízes do verdadeiro sentido desse distúrbio do existir levou os estudiosos do assunto a considerá-lo multidisciplinar, epigenético. Portanto, será um enfoque errôneo pôr demasiada ênfase num só fator dominante da personalidade delituosa. As séries complementares do desenvolvimento dos indivíduos - instintos, família, costumes comunitários, sistema sócio-econômico - todos amalgamados determinam vicissitudes de caráter e de conduta dificilmente reversíveis. Temos aí, referidas de relance, as ciências básicas do homem: a Biologia, a Psicologia, a Ecologia, a Antropologia, e a Sociologia. Quando ocorre uma falha na interação dessas séries complementares, o que pode sobrevir é o transtorno no engajamento pessoal, dificultando a colaboração coletiva a favor das transformações do ambiente, que se faz através das influências renovadoras. E então o indivíduo - ante a angústia de sentir-se ameaçado de marginalização, se a comunidade o abandona impiedosamene à sua imaturidade psicológica, deixando-o entregue à indigência de seus recursos naturais de aprendizagem para a vida - ou reagirá destrutivamente contra a sua organização comunitária ou se retrairá como unidade social e se apagará no autismo. Noutras palavras: ou se extravia no crime, ou se desagrega na psicose.

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Cyro Martins.
In:Caminhos - Ensaios psicanalíticos. Porto Alegre, Movimento, 1993, p. 87-93.
(Texto originalmente publicado na Revista Brasileira de Psicanálise.
Rio de Janeiro, vol.25, n.1, p.164-175, 1991.)


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