MÁRIO ALVAREZ MARTINS* | Imprimir |

David Zimmermann**


Mário Martins tinha 39 anos de idade e estava retornando de Buenos Aires, onde fora realizar sua formação psicanalítica, quando o conheci na vetusta Divisão Pinel do Hospital São Pedro, em março de 1947. Eu havia concluído meu curso de Medicina no fim do ano anterior e namorava a possibilidade, então remota, de me tornar psiquiatra e psicanalista.

Mário Martins impressionou-me por certos traços marcantes de sua personalidade. Sua presença impunha respeito e consideração, mas, ao mesmo tempo, criava uma atmosfera de compreensão e receptividade em relação aos sentimentos e necessidades das outras pessoas. Sua integridade e coragem despertavam a sensação de confiança.

Convivemos durante quase trinta e cinco anos. Foi um conhecimento lento e progressivo; no início, observando seu trabalho em psiquiatria de orientação psicanalítica; depois, durante minha análise. Posteriormente, como colega e amigo, fui descobrindo suas características e capacidades especiais.

Mário surpreende pela independência de pensamento: avaliava os conceitos teóricos com bom senso, elasticidade de ponto de vista e, seguidamente, com bom humor. No trabalho clínico, apresentava especial capacidade para pinçar detalhes que, muitas vezes, pareciam inocentes ou insignificantes, mas, quando bem analisados, permitiam reconstruir aspectos importantes do paciente e aprofundar a compreensão de seus conflitos inconscientes. Era realmente invulgar sua sensibilidade para distinguir o essencial do secundário, passo importante na passagem do salto intuitivo à compreensão das associações livres do paciente. Este entendimento, no entanto, tinha sólida base e podia ser facilmente demonstrado no material veiculado pelo paciente.

Sempre me chamou a atenção seu desejo e aptidão para harmonizar tudo que fosse possível, especialmente nos grupos de psicanalistas, tarefa que não era fácil. Superava situações tensas pela capacidade de reconhecer seus próprios erros. Mário tinha consciência de que esse procedimento não era algo natural em sua pessoa, dependia de esforço continuado, de auto-educação, verdadeiro desafio que sempre aceitou bem.

Dotado de uma personalidade integrada, nele não se podia separar a pessoa do médico, nem tampouco o psiquiatra do psicanalista. A ótica da integração de aspectos biológicos e psicológicos pode ser depreendida de seu trabalho clínico e percebida em suas contribuições científicas. Em seus artigos sobre a epilepsia, os aspectos somáticos e psíquicos não estão dissociados, funcionando unitariamente. O mesmo sucede na contribuição sobre a menstruação, onde hormônios e fantasias (e sonhos) são visualizados como um todo, movendo-se e integrando-se harmonicamente. Mário não separava, juntava.

Mário Alvarez Martins nasceu em Santana do Livramento de família de classe média, único filho varão de uma prole de quatro. Sua família foi marcada por mortes prematuras. Perdeu não só um primo como uma irmã, quando criança, fato que enlutou sua mãe por muitos anos. O ambiente de pesar de seus familiares determinou-lhe especial interesse em estudar o luto e a depressão.

Iniciou seus estudos na Faculdade de Medicina de P. Alegre em 1928, sem preocupações econômicas. Com a crise mundial de 1930, seus pais perderam tudo e Mário passou a ter dificuldades econômicas.

Desde cedo, manifestou grande interesse pela psiquiatria e estudo da obra de Freud. Este estudo era realizado com um colega de pensão, Lino de Mello e Silva. Freqüentemente apareciam, na “república”, outros colegas, entre os quais cabe destacar: Cyro Martins, Mário Quintana e Carlos Tettamanzy.

Concluído o curso médico, em 1933, devido a importante problema de saúde na família, Mário retornou a Santana do Livramento. Lá começou a clinicar provisoriamente. Tinha, no entanto, a noção de que, em sua cidade natal, não poderia realizar o trabalho e os progressos que desejava. Por isso, procurou local para clinicar na Serra. Foi para Boa Esperança, hoje Colorado, Município de Carazinho, onde foi muito bem recebido, exercendo a atividade de médico geral. Levou para a psiquiatria a experiência, o raciocínio e o desempenho clínico adquiridos no exercício da medicina.

Desde o tempo de estudante namorou, à moda antiga, Zaira Bittencourt, com quem se casou em 27 de março de 1938, em Bagé. Um ano depois, nascia Roberto, o primeiro filho.

Mário esperava uma oportunidade para retornar seus estudos iniciais de Psiquiatria, em Porto Alegre ou, talvez, em São Paulo. Em novembro de 1937, houve uma mudança no governo, tendo sido aberto concurso de psiquiatria para o Hospital São Pedro. Regressou com a família a Porto Alegre e começou a preparar-se para as provas com mais três colegas, durante um ano, com o Professor Décio Soares de Souza. Dedicou-se ao estudo da Psiquiatria com afinco e estabeleceu as bases de seu treinamento psiquiátrico. Aprovado no concurso, realizado em moldes de livre-docência, foi logo nomeado e convidado também para ser médico residente no Sanatório São José, onde passou a morar com sua família. Nessa atividade, já aparece Mário Martins como um psicanalista de orientação compreensiva. Ele não se limitava aos tratamentos tradicionais da época. Conversava com os pacientes, procurava entender suas dificuldades e seus problemas, bem como os dos familiares. Essa residência durou aproximadamente dois anos. Embora com características diferentes, próprias para a época, esta talvez tenha sido a primeira residência em psiquiatria no Brasil. No fim deste período, nasceu Júlia Tereza.

Por volta de 1942, através de um vendedor de livros, recebeu o 1º número da, então, recente Revista Argentina de Psicanálise. Descobriu que em Buenos Aires havia analistas desde 1938, e que havia possibilidade de realizar formação analítica com Angel Garma ou Carlos Ernesto Carcamo. Seguiu-se a troca de correspondência com Gama e sua intenção foi bem aceita. [ leia relato do episódio por Cyro Martins e retomada por Roberto Bittencourt Martins]

Mário e Zaira resolveram economizar o que podiam e, em fins de 1944, Mário viajou para Buenos Aires. Três meses depois, Zaira e os filhos o seguiram. Foram muito bem recebidos em Buenos Aires, não só pelas características pessoais do casal como também pelo fato de ter sido o primeiro estrangeiro a buscar formação psicanalítica na Argentina. Cativaram com sua simpatia todo o grupo inicial de psicanalistas dos quais se tornaram amigos.

Mário ficou encantado com a Psicanálise, à qual se dedicou com grande entusiasmo. Ambos tiveram a fortuna de conviver, receber ensinamentos e supervisão coletiva e individual de um grupo de pioneiros - Angel Gama, Carlos Ernesto Carcamo, Luiz Rascovsky, Arnaldo Rascovsky e Enrique Pichon-Rivière - pois Zaira também realizou formação analítica, especializando-se em psicanálise de crianças.

Em Buenos Aires, a vida era interessante e agradável em muitos sentidos, mas não era fácil. Os pacientes de supervisão pagavam honorários realmente

simbólicos. Não havia muitos pacientes na época, nem outras fontes de recursos a não ser a bolsa proporcionada pelo Hospital São Pedro. Receberam empréstimo da Fundação Muñoz para Desenvolvimento da Psicanálise, que depois foi pago integralmente.

Durante a estada em Buenos Aires, Mário trabalhou no Hospital de las Mercedes e surpreendeu Pichon-Rivière com seus consistentes e sistemáticos conhecimentos da psiquiatria. Deixou um nome muito bom tanto no meio psiquiátrico quanto no psicanalítico.

O casal Mário Martins, ao retornar a Porto Alegre, teve de enfrentar novamente a dificuldade de instalação e, principalmente, o problema de isolamento profissional. É que, para preservar a neutralidade do casal, não podiam conviver exatamente com as pessoas mais interessadas e envolvidas na psicanálise.

No dia 2 de fevereiro de 1947, Mário iniciou o exercício da psicanálise em nosso meio. Desde o começo, interessou-se pelo futuro da psicanálise em nosso Estado. Foi procurado e aceitou vários médicos psiquiatras para análise pessoal, marcando assim o início da formação psicanalítica no Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, Zaira introduzia, em nosso meio, a análise de crianças sendo responsável pelo ensino e formação das novas gerações de analistas de crianças de Porto Alegre.

Mário retornou também às suas atividades no Hospital São Pedro, na Divisão Pinel, onde vários colegas assistiram a sua maneira de se aproximar do doente mental. Este modo de abordar o paciente psicótico tinha, obviamente, orientação psicanalítica, mas também algo muito particular de Mário Martins. Ele transmitia ao paciente o sentimento de que podia falar, relatar as idéias confusas que não entendia e expressar seus sentimentos contraditórios, por mais estranhos ou difíceis que fossem. O doente era aceito e compreendido de fato. Acredito que esse foi o maior impacto que Mário causou no modesto e singelo ambiente da Divisão Pinel. Vários médicos e estudantes se decidiram pela especialidade, sendo difícil determinar se pela atitude de Mário ou pela própria psicanálise, porque as características de sua pessoa e a psicanálise estavam completamente fundidas e, através dele, foram lançadas as sementes da profunda modificação que sofreu a assistência ao doente mental e o ensino da psiquiatria no Rio Grande do Sul e no Brasil.

Mário tinha genuíno interesse pelo paciente psiquiátrico e estava sempre aberto a idéias e a novas formas de atendimento úteis aos doentes. Incentivou os colegas a várias iniciativas, cabendo mencionar, entre outras, a Psiquiatria infanto-juvenil, a Psicoterapia Analítica de Grupo e a Praxiterapia.

A pesquisa clínica, tanto em Psiquiatria quanto em Psicanálise, deve a Mário Martins não só o seu início como a criação de um modelo de investigação em nosso meio. O exemplo disso é o já mencionado trabalho sobre Epilepsia, realizado em extensão, com material de pacientes psicóticos e, em profundidade, com material psicanalítico.

Em 1949, com a chegada de José Jaime Lemmertz, de Buenos Aires, foi possível iniciar o ensino sistemático, através de seminários, da teoria e técnica psicanalítica. Ao mesmo tempo, também começaram a ser realizadas as supervisões coletivas e individuais. Em ambas as atividades, Mário Martins não só participou ativamente como imprimiu sua maneira peculiar de realizar o ensino/aprendizagem de psicanálise.

Estas atividades foram desenvolvidas em pequeno grupo, com 6 a 7 pessoas, durante oito anos aproximadamente, em um ambiente que se poderia chamar de doméstico. Com a fundação do Centro de Estudos, em 1956, outra iniciativa de Mário, que o deixou muito satisfeito, o ensino deixou de ter o caráter intimista para ter caráter institucional.

A transformação do Centro de Estudos, não oficial, em Grupo de Estudos e mais tarde Sociedade, componente da Associação Psicanalítica Internacional, foi difícil e conturbada, principalmente pelos vaivéns, avanços e recuos de alguns analistas do grupo de patrocinadores. Essa realização teve, no comando, a competência, firmeza, prudência e sabedoria de Mário Martins, que pôde tolerar as frustrações dos desentendimentos porque confiava na Psicanálise, no seu futuro, e tinha certeza de que era uma ciência que ficaria e se desenvolveria.

O reconhecimento como “Grupo de Estudos” ocorreu graças à eficiente cooperação de Luiz Guimarães Dehleim da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, em 1961, durante o 22º Congresso Psicanalítico Internacional realizado em Edinburgo. E Mário Martins teve a grata satisfação de assistir, juntamente com Zaira e alguns colegas, ao reconhecimento da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre pela Associação Psicanalítica Internacional, na Sessão Administrativa presidida por Maxwel Gitelson durante o 23 Congresso, realizado no Edifício do Parlamento em Estocolmo, Suécia, na quarta-feira, dia 31 de julho de 1963. Mário viu, assim, coroado de pleno êxito seu esforço continuado de 20 anos, realizado com dedicação e renúncia que uma atividade pioneira exige.

Tornou-se o primeiro presidente da Sociedade de Porto Alegre, cargo que ocupou novamente em outras oportunidade. Foi também incentivador e Presidente da Comissão encarregada de estruturar e fundar a Associação Brasileira de Psicanálise, da qual foi posteriormente Presidente.

Seria necessário muito tempo para relatar o quanto a Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre deve a Mário Martins, em especial a sua estruturação, que a tornou conhecida e citada internacionalmente como exemplo. Em muitas situações difíceis, constituiu-se em elemento esclarecedor e harmonizador, apontando novas soluções de equilíbrio.

Durante vários anos, foi o Diretor do Instituto, orientando-o com discrição e bom senso. Sua maior contribuição, entretanto, foi na análise de candidatos, na supervisão e no ensino da psicanálise. Incentivava os jovens colegas a estudar e escrever trabalhos científicos, ajudando-os inclusive a redigirem suas contribuições. Mas seu encanto maior era a própria psicanálise e, às vezes, tinha esperança de que ela pudesse contribuir decisivamente para termos um mundo melhor, com mais compreensão entre as pessoas.

Mário herdou de sua mãe o amor pela literatura. Ela não só conhecia como fazia poesias no estilo de Alceu Wamosy, algumas das quais foram publicadas em Jornais de Santana. Mário lia muito, apreciava e acompanhou o movimento renovador da literatura brasileira. Colecionou as publicações de vários amigos e colegas de juventude - Mário Quintana, Cyro Martins, Lino de Mello e Silva (os dois últimos, também psiquiatras e psicanalistas) e de Érico Veríssimo.

Fazia poesias mas nunca quis divulgá-las, talvez por timidez ou porque não as considerava de valor. Publicou apenas um ensaio de crítica literária. Foi em agosto de 1939, no “Jornal do Estado” no qual apareceu, sob o pseudônimo de Mário Alvarez. Trata-se de revisão crítica da produção literária de Cyro Martins com o título do seu último livro “Enquanto as Águas Correm”. Nesse sentido, cabe lembrar o especial carinho e orgulho que tinha em relação às capacidades literárias de Roberto, seu filho.

Entusiasmado pelo conhecimento em geral, tinha interesse em estar em dia com tudo que representava cultura e valor humano; mesmo trabalhando arduamente durante o dia, lia e estudava à noite e nos fins de semana, mas ainda encontrava tempo para receber seus familiares e amigos.

Mário não dava importância e tinha até certo rechaço pelas formalidades; cultivava a vida simples e despretensiosa, de acordo com os hábitos da vida dos gaúchos da região da fronteira.

Quando o conheci, Mário utilizava o bonde como meio de transporte diário para ir ao trabalho no Hospital São Pedro. E essa simplicidade nunca foi afetada em qualquer sentido. Tanto que, na ocasião de sua formatura, a turma de doutorandos ficou de decidir, pelo voto, entre dois trajes para a solenidade: linho-branco ou casaca. Cyro Martins, amigo e colega do curso de Medicina de Mário, descreve bem este episódio muito significativo na vida de ambos, em A Dama do Saladeiro (1980, pág. 47): “Onze e meia da manhã do dia da formatura: Mário Martins e eu colamos grau na secretaria, perante o velho Sarmento. À noite a turma colaria grau no salão nobre, na estica, de linho-branco, afinal vitorioso. Não era por orgulho ou outras diferenças que nós, Mário e eu, não compareceríamos incorporados aos colegas para receber o ambicionado canudo, mas simplesmente por pobreza, bem compreendida e aceita com naturalidade. O custo do linho-branco ultrapassava longe as nossas nenhumas posses, por mais que cavoucássemos no forro dos bolsos”.

As únicas homenagens que recebia bem eram as devidas ao seu trabalho pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e pelo Hospital Psiquiátrico São Pedro. Essas instituições receberam de Mário o que tinha de melhor: seu trabalho e capacidade criativa. Era querido por todos no Hospital São Pedro, muito especialmente pelas auxiliares de enfermagem, que o tinham na conta de verdadeiro amigo.

Mário foi uma presença marcante. Na maioria das situações importantes da vida, sempre teve posições muito definidas. Assim, antes e durante a II Guerra Mundial, era rigorosamente antifascista, antinazista e defendia a democratização do país.

Mário possuía a rara capacidade de despertar nas outras pessoas o que elas tinham de melhor: a bondade, a integridade e a consideração pelos sentimentos dos outros. Era bondoso, mas não bonzinho, apesar de certa timidez. Não tinha hábito de fazer rodeios. Era crítico rigoroso, direto, imparcial tanto consigo próprio como com as outras pessoas. Não tolerava a indiscrição e sentia especial aversão por quem revelava intenções maldosas e intrigantes.

Numa visão mais abrangente, considerava fundamental a integridade, a moralidade e a ética do psicanalista, preocupando-se muito com a possibilidade de “diluição” da Psicanálise, à qual se dedicou inteiramente.

As contribuições científicas de Mário Martins revelam um pesquisador clínico por excelência. Tinha como ponto de partida o material fornecido pelo paciente e, assim, suas formulações teóricas foram

realizadas a partir da realidade interna e externa deste. Em seus trabalhos não se permitia, porque não lhe agradava, a simples divulgação ou especulação, sem o fundamento proporcionado pela observação ou pesquisa. Vale ressaltar seu talento para captar o inconsciente de maneira direta, eis por que seu pensamento psicanalítico se expressava em estilo simples e exato. Este modo de sentir, pensar e se expressar decorre da conjunção de vários fatores, como uma sólida vocação médica, uma formação clínica, embasamento psiquiátrico e, sobretudo, uma intensa inclinação humanística. Foram essas características e capacidades de Mário que determinam, como me parece, que suas construções teóricas fossem formuladas parcimoniosamente, apoiadas na observação e compreensão do paciente. Nas suas contribuições publicadas, sobressai uma maneira rigorosa de pensar e, na redação, chama atenção o estilo simples, elegante mas sobretudo preciso.

O trabalho “Contribuição ao Estudo Psicanalítico da Epilepsia” pode ser considerado um exemplo modelar de investigação clínica sistemática, pesquisa que teve seis anos e meio de duração. Combinou muito bem dados de duas fontes que se complementam e enriquecem: uma em extensão, considerando que o material foi obtido através de entrevistas psiquiátricas, com orientação analítica, e, a outra, em profundidade, tendo em conta que o material procede de tratamento psicanalítico padrão.

Partindo da compreensão do papel epileptógeno das situações traumáticas em pessoas em tratamento analítico. Mário confirma o ponto de vista em muitos pacientes epiléticos hospitalizados: os traumas psíquicos atuais desencadeiam a ação de traumas antigos e precoces, sempre vinculados ao Complexo de Édipo.

Esta pesquisa trouxe contribuições importantes, ao revelar que o centro da patologia é constituído pela cena primária destrutiva, seguindo-se os mecanismos da descarga crítica, as várias técnicas defensivas, a elaboração das angústias intensas, bem como as diversas formações neuróticas, psicóticas e perversas e, finalmente, os fenômenos de restituição e reparação.

Em “Aspectos Técnicos no Tratamento Psicanalítico da Depressão”, são estudadas certas dificuldades na elaboração do processo de luto. Este pode se apresentar “como um processo enquistado, cujo conteúdo é um objeto que não se desintegrou e no qual resta algo de vida”. No exemplo clínico citado, um sonho de uma moça, estava retido no objeto perdido, na mãe, precisamente toda sua genitalidade e maternidade das quais obviamente a paciente não podia prescindir porque empobreceria seu Ego, comprometendo suas funções, afetando sua identidade. A análise deste sonho é um exemplo significativo do trabalho analítico: a importância que deve ser dado aos detalhes aparentemente insignificantes.

Em “Mania e Onipotência”, Mário “traça um quadro evolutivo unitário da onipotência e da mania, estudando as inter-relações existentes entre ambos”. Embora o tema abordado tenha sido predominantemente teórico, em verdade está estreitamente relacionado aos fatos clínicos consignados na bibliografia psicanalítica e, como sempre, apoiados na sua observação e experiência clínica.

Ao mesmo tempo, este trabalho representa um desenvolvimento e complementação da pesquisa anterior, que trata do “Tratamento Psicanalítico da Depressão”. De fato, na conclusão, ao se referir ao triunfo maníaco, diz que continuará a existir profundamente no paciente a depressão e culpa, além do empobrecimento do seu ego, identificado como um objeto morto.

“Psicodinamismos e Fantasias Inconscientes da Menstruação e da Ovulação” - certamente a mais importante das três contribuições não publicadas - é outro trabalho que pode ser considerado de pesquisa clínica exemplar. Por outro lado, consiste num relato de tratamento psicanalítico comum, de fácil e agradável leitura. Por outra parte, trata-se também de uma investigação densa de conhecimentos, focalizando ângulos novos e surpreendentes. Mário foi descobrindo sua paciente e, ao mesmo tempo, foi revelando o tema da Menstruação e da Ovulação. Suas descobertas aprofundam-se à medida que verifica a decisiva importância dos conhecimentos inconscientes para a paciente. Durante a exposição, mantém continuamente o que pode ser chamado a “beleza do desafio do desconhecido e a satisfação da descoberta” que é a característica fundamental do trabalho analítico.

Lentamente vai se armando o “quebra-cabeça” e cada aspecto da paciente vai sendo compreendido: cada sintoma, problema ou conduta, a menstruação e seus tabus, a dismenorréia, a menorragia, as variações de intensidade do fluxo menstrual, as fantasias sobre a evolução, a fobia pelas aranhas, os conceitos e temores sobre a masturbação, as fantasias de coito, gravidez e parto, as concepções sádicas sobre a vida genital. Tudo vai se tornando claro, e cada detalhe ganha novo sentido e dimensão quando colocado no devido lugar dentro do contexto da paciente. O mesmo sucede quando discute a ação dos hormônios, mas não se trata de simples correlação destes com os fenômenos psíquicos; ao contrário, os hormônios despertam as fantasias inconscientes, no psiquismo; os quais, por sua vez, têm um papel de estímulo necessário ao desenvolvimento do processo hormonal.

“Transferência, Acting-out e Situações Traumáticas Primitivas” é um trabalho relativamente curto no qual Mário expõe sua conclusão, muito importante para o trabalho analítico, sobre as fontes de origem da transferência. Esta é constituída pelas situações traumáticas primitivas. Tal estudo partiu de suas observações sobre acting-out durante o tratamento analítico, incluindo os pontos de vista de Freud e M. Klein sobre o tema. O acting-out representa a intensificação excessiva, por estarem em jogo situações traumáticas primitivas, contidas na neurose de transferência, as quais “exigem uma descarga para fora do campo do tratamento analítico”.

Na contribuição “Fatores Psicológicos nos Mecanismos de Ação Terapêutica do Eletrochoque” Mário relaciona os efeitos das crises convulsivas provocadas com os das crises epiléticas espontâneas. Discrimina e salienta os seguintes fatores terapêuticos do eletrochoque: (1) liberação de tensões instintivas, (2) modificações dos conteúdos da crise (cena primária com intensos impulsos sádicos - crime, morte, suicídio, assassinato) e (3) o processo de recuperação que se segue à convulsão, com o restabelecimento da respiração, das funções corporais e psíquicas, vivenciadas como recuperação do Ego, experimentado como reconstituição e reparação dos objetos agredidos.

Mário Martins sempre exigiu demais de si mesmo. Tinha extremo cuidado e realizava seus estudos com muita exatidão, razão por que não publicou, o que poderia ter feito, especialmente seus estudos sobre índios brasileiros, mentalidade primitiva e etologia. Anotou muito, mas, mais tarde, devido à doença que o acometeu, não podia mais escrever. Sofreu ao se dar conta do que lhe estava acontecendo, sentindo verdadeiro luto pela perda lenta mas progressiva de suas capacidades intelectuais. Tinha conhecimento daquilo que estava se passando em sua pessoa, pela impossibilidade de concluir os trabalhos sobre antropologia, destacando-se a pesquisa da evolução da mentalidade humana, à qual se dedicou por um período de mais de quinze anos.

Com o falecimento de Mário Martins, o Rio Grande do Sul e o Brasil perdem um dos mais estimados e admirados pioneiros da Psicanálise da América Latina. Aqueles que o conheceram experimentaram genuíno sentimento de perda pelo desaparecimento de um mestre e amigo verdadeiro.

Mário Martins teve uma vida feliz, especialmente através dos estreitos laços afetivos mantidos com sua família. Zaira foi sua companheira em tudo e também em todas as vicissitudes da atividade psicanalítica. Roberto e Tanira, Júlia Tereza e Luiz Carlos Tettamanzy deram-lhe oito netos. Além destas satisfações, sempre estava rodeado dos demais familiares e bons amigos que apreciava e recebia bem.

Para concluir, poderia dizer, como muitos outros colegas, que sempre vou sentir grande reconhecimento por ter tido o privilégio de tê-lo como analista, professor, colega e amigo, por tantos anos.

Gramado, janeiro de 1983


AGRADECIMENTOS

Reconhecimento pelas sugestões e contribuições pessoais de Zaira Bittencourt Martins, Roberto Bittencourt Martins e Cyro Martins.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Martins, Cyro (1980). A Dama do Saladeiro. Porto Alegre. Editora Movimento.

MARTINS, Cyro (1981). Enquanto as Águas Correm. Porto Alegre, Editora Movimento.

ZIMMERMANN, David (1981). “In Memoriam - Mário Alvarez Martins (1908-1981)”. Rev. Bras. Psicanál. 15:325-329.


NOTAS

1. O grupo inicial era constituído de Mário e Zaira Martins, José Jaime Lemmertz, Paulo Luis Vianna Guedes, Ernesto M. La Porte e David Zimmermann. Mais tarde, em 1951, juntou-se Gunther Würth a este grupo.

2. Além de Mário e Zaira estiveram presentes na Sessão Administrativa ao Congresso Paulo L.V. Guedes, J.M.S. Wagner e David Zimmermann.

3. Na 2ª edição do romance, pela Editora Movimento, ocorrida em 1981, Cyro Martins (pág. 11-18) incluiu o mencionado ensaio crítico, chamando a atenção para o “sentimento poético diante da vida, cultura literária e visão abrangente de dramas individuais ...” de Mário Martins.

OBS.: Tanto quanto possível, procurou-se manter nas contribuições a forma original dada pelo autor. Dos seis trabalhos que compõem este livro, os três primeiros foram publicados e os três últimos apresentados em reuniões científicas.

* Apresentação a  EPILEPSIAS E OUTROS ESTUDOS PSICANALÍTICOS. Mário A. Martins*