O PRINCIPE ATRAVESSA AS FRONTEIRAS DA VILA* | | Imprimir | |
LÉA MASINA O Príncipe da Vila, de Cyro Martins, é um livro insólito, se comparado às demais obras literárias do autor. Sem romper com a poética dominante nas narrativas anteriores, esse pequeno romance registra uma radical mudança com relação à perspectiva do narrador. Este, ao mesmo tempo em que aponta para os aspectos geográficos e culturais da campanha gaúcha, seus usos e costumes, centra-se na alma das personagens, solidarizando-se com seus anseios e o seu sofrimento. Pode-se supor, nesse sentido, que o texto concilia a temática telúrica, originária das vivências do autor, com a profissão de médico psicanalista, que Cyro exerceu por longos anos. A escuta, que desenvolveu no exercício profissional, e a competência para ouvir coisas difusas, possibilitou-lhe narrar a loucura em progresso, culminando com a morte trágica de Brandino. A síntese entre a narrativa de cunho regional e a criação de dramas humanos, por sua vez, nesse livro não acontece de imediato: Cyro dá voz às personagens para que, num tom de charla , situem o leitor numa pequena cidade da fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Esse espaço fronteiriço constrói-se no relato dos hábitos da campanha, nas histórias das guerras e seus revolucionários de lenços brancos ou colorados. No entanto, a visão desse mundo em dissipação procede do olhar intermediário do narrador, que se situa num espaço intervalar entre o que é dito e o que é sentido pelas personagens. Com isso, a velha dicotomia crítica entre o “show” e o “tell” perde sua razão de ser: ao contar, a voz do narrador completa os percursos da personagens, costurando os elementos da intriga para torná-la o fio condutor do romance. Além disso, há as escolhas do escritor em que o inusitado opera: de imediato, a história de Luzia, a mãe de Brandino, contraria as regras provincianas da comarca. A grande seca de 1886, que prolonga a ausência de seu marido , retendo-o na estância, possibilita a ela ter inúmeros e furtivos amantes que virão, mais tarde, a desejar a paternidade de Brandino. E assim, num meio social em que “homem só trata de coisas sérias, engorde de boi, tropeadas, safras, esquilas, carreiradas, jogatinas, peleias e putaria”, Brandino é excepcional : desligado da realidade, mimado pela mãe, pelas irmãs e por tantas paternidades potenciais, ele repele as práticas rudes da campanha e dedica-se às práticas do espírito, a escrita , a leitura e, sobretudo, à capacidade de imaginar e inventar histórias. Há, ainda, a figura do galo cantor, com as reflexões sobre o ser galinha, e a importância dessas presenças no universo de Brandino. Desse modo, podem-se construir algumas hipóteses de leitura a partir da concepção de personagens movidas pela intenção do escritor de inserir na obra as marcas da sua subjetividade. Nesse sentido, tudo indica que Cyro desejou criar uma obra literária fluída, que não estivesse presa às amarras ideológicas da geração de 30. Essa, como se sabe, privilegiava a documentação social e a referencialidade telúrica, fundamentada nas ideologias nacionalistas redirecionadas para as regiões brasileiras a partir do Modernismo de 1922. Em 1982, quando escreveu O Príncipe da Vila, já haviam decorrido quase cinqüenta anos da publicação de Campo Fora (1934), quase quarenta da publicação de Porteira Fechada (1944) e quase trinta de Estrada Nova (1954), os três livros que formaram a “trilogia do gaúcho a pé”. A fisionomia intelectual do escritor já fora plasmada, eis que sua obra denunciava as questões relacionadas ao latifúndio e ao êxodo rural, revigorando na literatura a figura do gaúcho pobre, expulso do campo, a engrossar as fraldas de miséria das cidades. Com isso, Cyro já completara o projeto literário da sua geração que, no Rio Grande do Sul, se desenvolvera sem rupturas, dando prosseguimento à valorização do nacional, apreendido pelo viés de uma consciência sociológica de natureza política. Assim, ao publicar, em 1982, O Príncipe da Vila, Cyro Martins tinha consciência de que construíra sua obra em alicerces sólidos, até porque nada é mais sólido do que a terra enquanto definição de espaço. Quase meio século de experiências literárias permitiram-lhe abrir mão do registro espacial como prioritário à criação de romances. O espaço, por sua natureza concreta, engessa e estratifica, ao passo que é fluente e líquido o movimento das personagens. É ele, portanto, que possibilita um deslocamento maior da visão de mundo, uma ultrapassagem da lógica naturalista tradicional e dominante, aumentando as possibilidades do escritor de dar forma às suas inquietudes. Disso resulta a subjetivação da experiência, que pode ser reconhecida quando se supera a rigidez binária da crítica modernista. Essa subjetivação, marcada pela presença do narrador-autoral, ocorre em O Príncipe da Vila, rompendo os limites da verossimilhança tradicional e mostrando o sofrimento de uma alma em conflito. Na prática interpretativa, há palavras que se impõem e saltam às vistas do crítico, obrigando-o a considerá-las porque são raras, ou porque se repetem, insistentes, como a demarcar o espaço ou a sugerir o percurso a ser seguido. Em O Príncipe, Cyro emprega, por diversas vezes, a palavra picardia. De origem espanhola, picardia significa “pirraça”, “desfeita”, “desconsideração”. Ou, o que é melhor, “ação do pícaro”. Esse, por sua vez, é um sujeito ardiloso, astuto, velhaco, fino, astuto, sagaz, constando uma ressalva no dicionário para o uso literário da palavra: “tipo de personagem travessa, bufona, ardilosa, que vive de expedientes, à expensa das várias classes da sociedade”. Brandino não corresponde, na íntegra, a essas definições. Embora o considerassem um “empelicado”, que recebia favores de muitos, esses benefícios, porém, resultaram da picardia materna. O processo psicológico da personagem é outro e aponta para o trágico da existência humana, eis que culmina em loucura e morte. Por outro lado, a origem espanhola da palavra picardia reforça o caráter fronteiriço da narrativa, que transcorre numa localidade próxima a Quarai, cidade natal de Cyro Martins. Mas a palavra encontra-se no discurso do narrador e afeta a leitura quando deixa ler a intenção do escritor de romper com o natural e o previsível. Trata-se de contar a história de uma personagem fascinada por coisas ínfimas e também, no sentido oposto, por coisas infinitamente grandes, como a astronomia por exemplo (p.70). Sua atração pelo abismo e pelo mistério pode ser interpretada como uma atualização da consciência do autor, o que não tem relação com biografia ou premeditação. Nesse sentido, picardia aponta para o problema agudo da obra que é o de opor-se à vocação humana para a tragédia. Trata-se, pois, da expressão literária de um “pensamento indeterminado” que domina o romance. Como diz Antoine Compagnon, ao abordar questões de autoria e subjetividade em literatura, a intenção corresponde às estruturas profundas de uma visão de mundo, a uma consciência de si e a uma consciência do mundo através dessa consciência de si, ou ainda a uma intenção em ato [1] . Desse modo, através de Brandino, chega-se a Cyro Martins e à sua ânsia de compreender os desvãos da alma. Para ele, o homem é o problema e as histórias que cria sobre os homens são tentativas de conhecê-los e ampará-los em sua fragilidade trágica. Assim, embora a significação de um texto nunca esgote as intenções do autor, cabe formular outra hipótese interpretativa: a de que existem em Brandino os conflitos criativos que Cyro Martins vivenciou e conheceu. Ao narrar o próprio pensamento, Cyro oferece ao leitor uma planta baixa dos processos criativos seus e alheios, iniciados nas vivências provincianas da pequena Quarai, quando apenas em Alegrete tinha livraria. Essa confluência, na personagem, das inquietações da adolescência, quando as mulheres representavam (...) um continente exótico, por desbravar, obrigando-o a passar por elas como se pertencesse a outra espécie desbravar, e da inquietude intelectual, eis que sua cabeça girava sempre em torno dos poucos livros que lera e apreciara (p.78) sedimenta a hipótese de que a fluidez e a atemporalidade de Brandino resultam de sua insaciável sede de abismo (p.72). Os fluídos não fixam o espaço nem prendem o tempo. [2] Ao dispor de uma memória fora do comum que lhe permite refugiar-se no mundo das histórias inventadas, Brandino ilustra o escritor em pleno processo de criação. O impulso criador pertence à ordem da liquidez, ele flui e se esvai, espraia-se e ultrapassa os limites espaciais, que são concretos. Porém, as histórias de aparições e outros medos, que ele conta e reconta nas estâncias e também à peonada, abancada em cepos de cortiça e mateando (...) ouvindo as peripécias do causo sem pestanejar, as caras indiáticas afogueadas pelos reflexos das labaredas (p.72) são fortes indícios de tragédia. Segundo o narrador, nem todos esses causos espelhavam a alma gaucha : o que une essas histórias é a curiosidade e o assombro. Além do humor e da picardia dos relatos, há nessas narrativas o gosto por agregar, por criar um espaço fluído e fronteiriço onde a imaginação pode correr solta; no plano da ficção, ocorre uma espécie de catarse, um exorcismo da consciência que liberta o narradoor da angústia de retornar à estância do Paraíso , à família, aos seus fantasmas. Dentre as histórias que Brandino contava, duas se destacavam pela importância, podendo ser narradas nas versões familiar e galponeira. A primeira era a história do galo Príncipe, morto por um raposão que invadira o galinheiro e que Brandino esmagara com uma bordoada fulminante na cabeça; a segunda, a história da aparição que assombra o Paraíso, onde Brandino vivia com Teresa e os filhos. Da primeira resulta, ironicamente, a “sua verônica”, a camisola marcada com o sangue do galo, uma réplica ao santo sudário. No fluir da narrativa, palavra puxa palavra, Brandino faz digressões. Quem sabe (O Príncipe) não teria sido enviado à terra pelo sobrenatural para redimir aquele setor da ordem dos galinários, as galinhas, tão atingidas pelos ápodos humilhantes que os homens se dão? Esse clima sobrenatural e místico leva o leitor a pressentir que o o romance aproxima-se do seu final . A seguir, irá perceber também que a ironia do relato transforma-se em ironia trágica, pois Teresa, após a morte do marido, livra-se de imediato daquele trapo odioso pendurado na parede, a testemunhar as esquisitices do finado. Quanto à história da assombração que persegue Brandino e que lhe tira a paz de espírito com batidas insuportáveis nas paredes de sua casa, era esse o prato de resistência de cada serão. Repetida sempre em novas versões, junto a causos de contrabandistas,a episódios de banditismo do tempo do João Francisco e o Cati, (...) essas histórias todas não tinham nenhuma nota de coisa inventada. Nesse clima, a fluidez do relato se confunde com a experiência vivida, eis que tudo se processa na alma da personagem. No plano narrativo, os estrondos da aparição terminam por enlouquecer Brandino, que se mata, ao tentar atingir com tiros o fantasma que o ameaça. Esse relato da concretização da insanidade só poderia ter sido escrito por quem conheceu a loucura de perto. No entanto, apesar da condição de médico psicanalista, Cyro não documenta o vivido. O narrador adverte: qualquer narrativa pode ter graça, mas não o atrativo do que se conta inventando. Assim, no meio do seu delírio habilmente articulado em frases curtas, Brandino associa as degolas das revoluções gaúchas aos espíritos maus que obrigam o homem a fazer coisas de bicho. E logo adiante vocifera contra o fantasma : Engraçadinho, quero te ver correndo sem perna, sem cabeça, aos trambolhões, dando cambalhotas, como galinha degolada. Mas escuta, por amor de deus, não vai ensang6uentar a areiazinha fina que botei embaixo a janela (...). A picardia disfarça a tragédia. A referência à galinha degolada é uma clara alusão à obra de Horácio Quiroga, o autor de Cuentos de Amor y Muerte, presente nas estantes de Cyro Martins. Um escritor não se faz apenas do registro dos fatos humanos e de suas circunstâncias. Cyro alerta: é preciso invenção que opera no viés da cultura. Assim como Quiroga, Cyro Martins encaminha o epílogo do romance para a temática da fatalidade. A fluidez de Brandino, a sua modernidade líquida [3] , permitiram-lhe superar a imposição do modernismo dos anos 30, a que corresponde parte importante da obra de Cyro Martins. O rastreamento da miséria nos campos, o abandono das práticas campeiras e a descrição de um universo agônico, que se lê na “trilogia do gaúcho a pé”, consolidaram a proposta inicial do escritor. Em 1982, o Príncipe ultrapassa os limites da Vila,: o diálogo fluente com Quiroga e com outros escritores que freqüentou ao longo de 40 anos, permitem a Cyro Martins criar um texto sobre a condição humana. O Príncipe atravessa a Vila, mas o homem não ultrapassa a morte, parece ser o recado final. Mas, cabe, ainda indagar: não será O Príncipe da Vila a representação simbólica da luta do escritor em seu processo ficcional, quando sua alma flutua sobre a linha tênue que separa a sanidade da loucura , num movimento transitório e paradoxal, em busca da perenidade? Léa Masina * Texto apresentado na mesaa-redonda realizada pelo CELP Cyro Martins, Cruzando fronteiras, quando do lançamento de El Principe de la Villa [1] COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte:UFMG, 1999.p.65 [2] BAUMAK, Zygmunt.Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.8. [3] BAUMAK, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. |