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Ler pelo não - Literatura e Medicina Maria Helena Martins
"Ler pelo não, quem dera! “ - exclama o poeta e indica vias e jeitos: Em cada ausência, sentir o cheiro forte Ler pelo não, além da letra, Desler, tresler, contraler,
No oco do corpo, o eco da poesia, que só os poetas sabem encontrar. Cabe a nós, leitores, deixar suas ondas, seus reflexos, seus influxos nos atingirem ou irmos ao seu encalço? Se a poesia, a arte são estranhamento do óbvio, cabe ao leitor atravessar as evidências e mergulhar em busca dos etcéteras, dos avessos. Claro está que o risco é grande. Risco de frustrar expectativas, as que se criam a partir das tantas leituras prévias, dos inexplicáveis a priori que nos constituem como leitores e lastreiam o que se venha a ler. Risco de dispensar o tanto que se leu e pular para o outro lado daquilo que poderia ser a leitura, digamos, imediata ou mesmo sensata. Assumido esse risco - fruto do estranhamento -, não tem volta. Como diz Mario Quintana, “o mais difícil, mesmo, é a arte de desler”. Será? Diante de mim, uma tela abstrata, em que pinceladas alongadas tecem do vermelho vivo, laranja e amarelo muitos tons que se misturam suavemente, empurrando uma massa lilás que se esfuma em cinza. Belo crepúsculo, penso. A meu lado, uma mulher se põe a falar ao companheiro sobre a figura degolada que vê na tela, jorrando sangue pela garganta esgarçada, sangue esse que se mescla à sua cabeleira escura. Chocada, tanto pelo inesperado da manifestação quanto pelo quadro de horror que é visto por aquela mulher, em segundos começo a enxergar na tela o que ela acabara de descrever. Me repugna a cena. O crepúsculo apaziguante se transformara em estertor de morte.
Se o mais difícil é desler, como diz Quintana, o que aconteceu com minha leitura, transmutada, em segundos, como da água para o vinho? Tudo indica que a leitura inicial teria mobilizado menos intensamente meus sentidos, emoções e pensamentos; teria sido mais imediata e espontânea, mais sensorial e emocional, mais superficial? Em contrapartida, aquela a que me levou a leitora ao lado, se impôs, inexorável, praticamente descartando outras possíveis leituras e leituras possíveis. Teria acontecido pelo fato de atingir mais profundamente os níveis básicos de meu processo de construção de sentido da tela? O impacto dessa leitura pela qual fui tomada, de modo quase intolerável, provocou a ruptura. Assim, acontecera uma não-leitura, involuntária; no caso, desencadeada por outro leitor, que se atravessou na leitura que eu fizera. Posso até passar a uma espécie de vai-e-vem entre a leitura inicial e essa, mas a tendência é o predomínio da segunda. Mesmo com meu lamento pela perda da leveza daquele crepúsculo e com a indesejada prevalência sangrenta. Mesmo sabendo que, a levar em conta considerações teórico-metodológicas, deveria abordar uma tela abstrata por outros caminhos que não os de buscar em sua superfície a figura, a representatividade. Então, onde os parâmetros, os norteadores do leitor, especialmente o iniciante? A seguir essas constatações, fica-se ao léu. Não se trata de eliminar critérios, instaurar um vale-tudo; tampouco de fazer a apologia da não-leitura. Mas de buscar uma aproximação desmistificadora do que seja ler numa visão convencional; do que esse processo mobiliza em nós, da necessidade ou não de exercer e potencializar a capacidade leitora que, a princípio, todos temos. Assim como insisto na importância de considerar a leitura um processo de compreensão de linguagens verbais e não verbais, também procuro tirar de meu discurso sobre ela a função primordial que lhe designam letrados, a de principal meio de acesso às esferas maiores do conhecimento, da sabedoria até. Tal imponência, mais do que o desejo de ler, pode provocar o afastamento diante da grandeza de seu poder e da pequenez nossa de comuns leitores em potencial. Tento refletir, simplesmente, sobre o que me é dado observar em leitores e leituras minhas e de outros. E vou contrastando essas observações, cotejando conceituações e categorizações dos tantos especialistas no assunto, procurando me safar das armadilhas dos discursos obscuros, que espargem sapiência, enquanto ajudam ninguém a desenvolver suas capacidades leitoras. Busco me espelhar em quem conhece, sem alarde; em quem é capaz de duvidar de si, os autênticos mestres. Lembro um episódio relatado há anos pelo Prof. Antonio Candido, em palestra a estudantes de Letras, na Universidade de São Paulo. Enquanto andava ele pela rua, passeava mentalmente pelos versos de um dos seus poetas prediletos. De repente, estancou: Como não se dera conta disso antes?! Levou a mão à cabeça, incrédulo. Não havia dúvida - surgia-lhe, agora, cristalina, a interpretação do poema que há mais de 20 anos lia e relia dando-lhe sentido completamente diferente. Como poderia ter feito isso? E os alunos, que nunca o contestaram? Estava, enfim, perplexo ante a revelação súbita do que sempre lhe parecera ser a leitura correta agora estar completamente desmanchada, como que estatelada na calçada por onde andava. Que equívoco bárbaro! se dizia, enquanto enxugava o rosto, quase achando que poderia ser descoberto em tamanho erro pelos demais passantes ... A experiência relatada, aqui propositalmente dramatizada, assemelha-se ao que resulta de procedimento que freudianos chamariam de “atenção flutuante”. Caracteriza uma postura do analista, orientando a interpretação do que lhe é apresentado. Ao contrário do que se poderia esperar, não se trata de “distanciamento crítico”, que permitiria ver com mais objetividade o texto lido/estudado, tampouco de “disponibilidade”, que assinala uma predisposição a aceitar qualquer que seja o que se apresente para ler. Parece-me mais adequado falar em desprendimento, distração, visão errática, que – inadvertidamente – leva o leitor a uma nova leitura, não calcada no já sabido. Digo inadvertidamente porque se trata de postura da qual se tem conhecimento, mas que depende da situação e não da vontade do leitor. Ela não acontece por determinação prévia, assim como não há como ensiná-la, dizem os freudianos. Esse relato do Prof. Antonio Candido e o de minha experiência diante da tela crepuscular resultando em mulher degolada tornaram-se emblemáticos para afastar de mim muitas certezas. Primeiro, revigoram o que já descobrira há algum tempo: muito do que se consegue nos primeiros anos de atividade profissional se deve à “tranqüilidade da ignorância”, aquela que alinhavamos com os primeiros conhecimentos de nossa vida intelectual e vai nos servindo à medida do possível, até nos convencermos de sua insuficiência, senão inoperância. Muitos devem saber bem do que se trata, pois é uma experiência comum. Não a repudio, apenas constato sua existência. Algo quase impossível para quem atravessa a vida repetindo os mesmos achados, sem o menor sinal de desconfiança. Segundo, porque evidenciam quanto nos pode ser salutar uma postura não determinista, como pode ser profícua uma leitura que se realiza sem ditames e quanto é difícil deixarmos isso acontecer, tais são as rédeas que nos impusemos e que nos foram impostas desde cedo. Daí a importância da não–leitura, pois ela afrouxa rédeas, criando-se condições propícias para a intuição do leitor ensaiar sua voz e vez. Deslocando tais considerações para a leitura da palavra, no caso, refiro-me à linguagem poética, das manifestações estéticas por excelência e não, à linguagem prosaica, que é mais chegada à leitura, digamos, racional, que privilegia o discurso lógico-conceitual. Não é questão de valorizar mais uma ou outra, ou ainda encaixar uma e outra em moldes estanques – conotativo ou denotativo. Apenas constato que tendo a linguagem discursiva caráter eminentemente informacional, sendo mais direta, liga-se ao aspecto denotativo do texto. Tende a levar o leitor a uma postura mais racional diante do que lê. Isso não impede que eventualmente apresente aspectos conotativos, como nos ensaios, em que as “franjas do discurso” ( com o recurso da linguagem figurada) levam o leitor ao terreno movediço da ambivalência e da ambigüidade poética, resvalando, então, para a não-leitura. Mas essas questões já são do âmbito da teoria da literatura, que não é o caso aqui. Rememoro outro episódio, com mais de 25 anos. Numa roda de colegas amigos, conto que aceitara a tarefa proposta por Caio Graco Prado (então Diretor da Editora Brasiliense) para escrever O que é Leitura, para a Coleção Primeiros Passos, iniciando então. 2 E já começara a redigir o texto. Mal dissera isso, Walnice Galvão me olha, séria, e diz “Corajosa! Isso é muito difícil!” Inquietou-me essa observação, mais pelo fato de ser feita por Walnice, menos porque sentisse aí um risco maior para a minha postura quanto ao que eu fazia. Estaria eu, então, navegando em plena “tranqüilidade da ignorância”? Não creio, mas, se me instassem a escrever um O que é Leitura , hoje, dificilmente o faria. Não porque discorde do que fiz. Salvo alguns ajustes no texto, não mexeria na estrutura ou no conteúdo, nas noções básicas e nos exemplos. Percebo que há coerência no livrinho, fruto de um trabalho reflexivo, consistente, convincente e despretensioso. Este último aspecto, talvez, seu principal mérito. Tanto assim que ainda não me propus a alterá-lo. Talvez seja mais fácil escrever outro, desde que possa efetivamente dar um passo à frente. Volta e meia sinto-me tentada a pinçar alguns aspectos que abordo lá, a retomá-los. Nem tanto para atualizá-los, mas para testar minhas próprias conjeturas, persistentes também em muitos estudiosos, sobre questões elementares, senão óbvias, que cercam a leitura e sua realização ou sua acontecência, como diria Guimarães Rosa. E uma das questões sobre as quais tenho sido levada a pensar é a da não-leitura da linguagem estética ou a leitura pelo avesso das evidências. Tomo dois estudiosos da leitura com contribuições importantes nos últimos anos, Alberto Manguel e Pierre Bayard. Aparentemente díspares em estilo e posturas, ambos têm características muito pessoais, mas os dois apontam a leitura como experiência humana decisiva, tendo como baliza suas reflexões a respeito de sua própria experiência de leitores. Em Manguel 3, um intelectual refinado, a linguagem e a consideração do fenômeno da leitura estão sob um olhar filosófico e enciclopédico, em discurso sofisticado. Sobre seu texto, praticamente nada a discutir, até porque nos embala em discurso ensaístico que chega às raias da ficção, sem deixar de ser preciso em suas colocações e posturas quando conta histórias. Não encontro aí uma evidência para pensar a não-leitura. Salvo que tome como mote o lado bibliófilo do autor, que fez da leitura uma arte de viver e um princípio de escritura. Já Pierre Bayard, professor de literatura e psicanalista, tem um texto simples e fluente. Bem humorado e provocante em seu Como falar dos livros que não lemos?, a começar por esse título maroto (até que ponto a ambigüidade aí é um recurso de marketing ?) E, em especial, revelador de um leitor efetivo que não hesita em dizer que poucos são os livros de fato lidos.4 Pode até parecer, mas não se trata de obra de auto-ajuda para quem se considere um não leitor, intelectualmente desvalido, diante da necessidade de se mostrar culto. Também não é perpassada pelo cinismo deslavado como o daquela antiga coleção londrina de pockets - Bluff you way in ... Tampouco faz o autor apologia da não–leitura, embora dedique bom espaço a apontar seus diferentes tipos, a necessidade de (re)conhecê-la, suas características e exemplos de não-leitores famosos, como Montaigne e Paul Valéry. O curioso do livro de Bayard está em mostrar o autor como um leitor efetivo que faz não-leituras, seja por declarar não ter lido nem pretender ler clássicos como Ulisses, de James Joyce; seja por afirmar que poucos são os livros de fato lidos, sem que isso signifique maior demérito para seus não-leitores. Cabe aqui uma observação, a partir de colocações de Bayard. Entende não leitor como expressão indicativa de alguém que não se considera ou não é considerado leitor, sendo a não leitura o procedimento de recusa a dar sentido ao texto verbal ou não verbal, a “ausência de leitura” . Já o não-leitor seria o que pratica a não-leitura: o que se deixa levar pela intuição, se aproxima do texto inadvertidamente, sem pré-conceitos, e expressa livremente o que se passa consigo em relação ao que lhe é dado a ler. Quanto a Montaigne e Valéry, Bayard conta que faziam não-leituras de textos sobre os quais deviam escrever – e não parece que seus leitores contestassem seus escritos. Tinham uma visão de conjunto do autor abordado e exploravam o “conhecimento intuitivo”, o qual, para Bayard, os salvava de serem apanhados em flagrante. Sem falar que eram extremamente cultos. Aliás, por isso mesmo é que sabiam se orientar:
E mais:
Para Bayard, essa não-leitura acontece com relação aos livros, ao texto escrito. Mas, se consideramos a leitura em sentido amplo - como processo de atribuição de significado às mais diversas formas de expressão, através dos sentidos, de emoções e pensamentos –, aí sua existência e relevância passam a ser ainda maiores. Até porque, parece-me, se entendermos e valorizamos a não-leitura de linguagens não verbais, podemos vir a praticá-la mais proveitosamente com o texto escrito. Com freqüência, folheamos um livro quase com o mesmo descompromisso com que o fazemos lendo jornal ou revista ao acaso, para, num vistaço, termos idéia do que tratam. Isso é comum em visita a bancas de revistas, livrarias ou bibliotecas; porém, quando ocorre com textos que supostamente deveríamos ler de modo convencional, esse desleixo pode nos provocar certo mal-estar. Mas não devemos nos envergonhar disso, observa Bayard. Só duvida de que um intelectual renomado, vivendo cercado de livros, não tenha lido muitos deles quem não é chegado à leitura. Os leitores contumazes sabem ser impossível ler tudo o que se tem ao alcance e resultam ser experts em não-leituras. Até porque, pensando bem, essa não-leitura é um trunfo, e estamos muito mais aptos para tirar o melhor proveito dela do que podemos imaginar. Aliás, se muitos dos que trabalham com o texto lógico-conceitual, necessariamente discursivo e com caráter denotativo por excelência – e aqui tomo como exemplo a linguagem jornalística, em especial – soubessem tirar melhor proveito das não-leituras e fossem leitores efetivos, certamente também poderiam ser mais coerentes, consistentes e convincentes em muito do que escrevem. Seguidamente ouvimos rádio enquanto dirigimos o carro, vemos televisão enquanto lemos o jornal, ouvimos música enquanto trabalhamos ou descansamos. Talvez pudéssemos testar nossa não–leitura conferindo o que o rádio, a televisão, a música estavam informando e/ou evocando enquanto objetivamente nos dedicávamos a dirigir o carro, ler o jornal, fazer nosso trabalho, descansar. Mais: quem sabe chegássemos a perceber como leitura e não-leitura se entrecruzam, independente de nossa vontade e da própria natureza do que é lido, determinando mudanças de percurso de pensamentos, emoções, sensações, levando a novas leituras de nós mesmos, da própria vida, subvertendo expectativas: ........................................
O narrador-personagem desse texto certamente não cogitava exemplificar o cruzamento de leitura/não-leitura e sua repercussão, ao relatar experiência que o leva à ruptura de sua condição de vida. Contudo, esse fragmento propicia um belo exemplo de não-leitura e a importância de valorizá-la. Pelo que se apresenta e pela recepção que se dá a ela, por mais inesperada que seja. ------------------------- NOTAS 1.Leminski, Paulo – Distraídos venceremos.São Paulo, Brasiliense, 2006. 5ª.ed. 2. Martins, Maria Helena. O que é leitura. Col Primeiros Passos. São Paulo. Brasiliense, 1982. 19a.ed, 1994. 15a. reimpressão, 2008. 3. Manguel, Alberto. A biblioteca à noite. Companhia das Letras. 2006l ( dentre outros de vasta obra) 4. Bayard, Pierre. Como falar dos livros que não lemos? . Rio de Janeiro, Objetiva, 2007. 5. Bayard, Pierre. Op. Cit. 31. 6. Idem. p. 33. |