Sou só descontentamento e desassossego, com esta baleia franca entalada dentro de mim | | Imprimir | |
Lélia Almeida1 Si miramos la realidad, las mujeres son más sólidas, más objetivas, más sensatas. Para nosotros, son opacas: las miramos, pero no logramos ir adentro. Estamos tan empapados de una visión masculina que no entendemos. En contrapartida, para las mujeres, nosotros somos transparentes. Lo que me preocupa es que cuando la mujer llega al poder pierde todo aquello. Hay tres sexos: femenino, masculino y el poder. El poder cambia a las personas. Ai! Esta baleia franca agonizando na praia de Itaperubá, em Laguna (SC), agonizando frente à nossa impotência, resistindo e sobrevivendo a um coquetel de medicamentos para a eutanásia. Ai! Esta baleia franca entalada dentro de mim, virada numa metáfora de coisas grandes e sagradas, maravilhosas e que parecem que não tem mais lugar e nem cabida neste mundo. Resta-nos observá-la, mirar-nos, bravamente, na sua capacidade de resistência mesmo sabendo que estamos assistindo a sua morte. Passo horas pensando na baleia, tentando adivinhar-lhe as dores, os movimentos impossíveis, a respiração difícil. A baleia levo-a entalada por aonde vou, nestes dias, presa dentro de mim, e um sentimento aterrador se instala sem remédio. Sinto-me como o protagonista do filme do Bela Tarr, As Harmonias de Werckmeiser, quando a vida de uma pequena cidade do interior da Hungria é transformada com a chegada de uma baleia gigante empalhada. E da sua incompreensão, ao ver a baleia, quando se pergunta sobre como Deus pôde conceber uma criatura daquelas e ainda por cima fazê-la viver no mar! A baleia é mítica, é sagrada, é um símbolo também, e na sua grandeza é a metáfora que escolho para expressar, neste momento, o meu desassossego e o meu profundo descontentamento. Lembro das muitas vezes ao longo da minha vida que tive de mergulhar muda e só no descontentamento, na paralisia da baleia encalhada, como uma criança que ouve da mãe, engole e choro e não reclama, para aquelas situações quando as nossas sábias e pragmáticas mães sabem como ninguém que não nos resta mais nada além de obedecer e aceitar. E calar. E sempre que não pude expressar o meu descontentamento, a minha discordância, o desassossego comprometeu os meus movimentos mais espontâneos e a minha fala mais verdadeira e por isso a minha alma adoeceu. A minha alma que era um mar, um mar que já não podia conter uma baleia. A baleia que mal respira e que não desiste sob os nossos olhos atônitos. Tenho convivido com um profundo sentimento de frustração e de estar vivendo uma oportunidade única que está sendo desperdiçada. A minha geração de mulheres sonhou e lutou por muitas coisas lá na origem dos movimentos de mulheres deste país. Digo nas origens porque me filio a uma linhagem de outras mulheres, anteriores, que pensaram e me ensinaram tudo o que me faz, ainda hoje, me perceber como cidadã, mãe, profissional e mulher no mundo. Ensinaram-me, antes de tudo, que o movimento de mulheres sempre reivindicou a autonomia das mulheres, de forma mais importante ainda do que a igualdade com os homens. Permanece soberana, em algumas de nós, a raiz de toda esta luta que tem sido, historicamente, uma luta por autonomia. E eis que temos, neste momento, a possibilidade de duas candidatas mulheres à Presidência da República. E nunca o debate foi tão vazio, de tão baixo nível e as mulheres nunca ficaram tão caladas. A baleia agoniza, mas resiste, sinto sua respiração, sua alma que não se entrega. Ai baleia calada! Quando a então Ministra Dilma Roussef anunciou publicamente que tinha câncer fiquei estarrecida da maneira como os seus colegas de Esplanada e de partido expressaram publicamente o tanto que este fato podia ajudá-la a crescer nas pesquisas como candidata à Presidência da República. Os comentários foram absurdos e não ouvi nenhuma grita de indignação sobre este tratamento dispensado à Ministra, já naquele momento precisávamos ser pragmáticos, outra vez pragmáticos e batendo o martelo, ali já começava a se gestar o que temos como a estratégia urgente de todos estes meses, a pressa desenfreada, o vale tudo porque ela tem de vencer, doa a quem doa, danem-se as baleias, dane-se o meu desassossego. Falava-se da maneira como a doença podia render-lhe uma imagem de lutadora, de sobrevivente e a então Ministra tinha deixado de ser uma mulher e tinha se transformado numa candidata, ia capitalizar com a doença e com outros episódios também. Não vi ninguém questionar estas declarações desastrosas, perversas, mas parece que nada disso é importante e que minhas considerações sabem a um sentimentalismo inoportuno e incorrigível, devo dizer, a esta altura do campeonato. Lembro de um livro clássico que muitas mulheres da minha geração leram com atenção, Os seis meses em que fui homem, um texto canônico da Rose Marie Muraro[3] onde ela conta do estresse absoluto vivido quando teve de exercer um cargo de alta responsabilidade, e repetir assim os gestos irrefletidos, como chamo os gestos das mulheres que assumem o poder, porque só conhecemos este jeito de exercer o poder, o jeito masculino de fazê-lo, e ai de nós se não for assim, já que é este jeito que nos mantém ou destitui da coisa toda. A coreografia dos gestos irrefletidos, frutos da consciência embargada, valeu-lhe um câncer de útero. Foi uma das poucas narrativas sinceras que vi sobre o assunto. Outro clássico que vale a pena lembrar é O cálice e a espada da americana Riane Eisler[4], onde ela estuda, ao longo da história do mundo, as relações entre os homens e as mulheres. Atenta para o fato de que não haveria nenhuma evidência consistente, depois de tantas tentativas de prová-la, da existência de um matriarcado na história do mundo. Um matriarcado, que em exata oposição ao patriarcado seria uma sociedade onde as mulheres dominariam os homens. Para a autora isso não aconteceu e esclarece que sim, o que criou uma cultura da deusa ao longo da história do mundo e que é a que sobrevive na nossa memória, seriam momentos em que as mulheres, em comunidades matricêntricas, tinham um lugar de destaque e eram valorizadas num patamar de igualdade aos homens que simplesmente exerciam funções diferentes das delas. Aponta Creta como um momento de excelência desta evidência e propõe que estes momentos da história do mundo se constituíram em momentos de grande florescimento cultural, espiritual e de pacificação. A teoria de Eisler, que é muito mais inteligente e abrangente do que eu possa contar numa crônica, propõe que para que entendamos as complexas relações de dominação entre os homens e as mulheres, é necessário um olhar diferenciado sobre estas relações através do que ela chama de uma teoria da transformação cultural, a partir de uma perspectiva holística e que reflete sobre os dois modelos básicos de sociedade que subjaz à grande diversidade superficial da cultura humana. Um seria o modelo dominador, popularmente chamado de matriarcado ou patriarcado, onde uma metade da humanidade exerce a supremacia sobre a outra, e o outro modelo chamado de parceria, baseado num princípio de união e onde a diversidade não é equiparada à inferioridade ou à superioridade. O trabalho de Eisler que começa com estas considerações, no início dos anos 80, teve desdobramentos importantes e o livro que trata sobre o Poder da parceria[5] fez da autora uma importante ativista pela paz. Ela, recentemente, em entrevista ao GNT, disse que o Brasil, através do Bolsa Família, se constitui num exemplo a ser seguido pelo mundo, como uma prática de economia solidária e de pareceria. Ela, portanto, propõem sim, uma alternativa ao que temos no poder, um poder de parceria, onde o lugar das mulheres seja outro, diferenciado, e que sua maneira de estar no poder seja inovadora, negando, entre outras coisas, uma cultura da hierarquia burra, do mundo da guerra e da violência desmedida. A baleia mal respira dentro de mim, sinto-lhe as ganas de mover-se com força e agilidade, dar uma rabanada com a cauda, mover-se, mas suas forças se esvaem. As minhas mais sinceras esperanças vão-se junto com elas. A sensação é a de estar vivendo uma oportunidade única e, ao mesmo tempo, a de estar presenciando um irreparável desperdício histórico. O que para mim, na metade da jornada da vida, me abate sobremaneira, sabedora de que não temos muito mais tempo assim para erros incorrigíveis. A oportunidade única deve-se ao fato de que temos, neste momento, duas mulheres candidatas à Presidência da República do País. O desperdício histórico é porque a sociedade brasileira decidiu não pensar sobre este assunto, fazer de conta de que isto não está acontecendo e de onde podemos concluir que se as respostas têm sido imbecis, infantis, senso-comunsíssimas, é porque há uma ausência absoluta das perguntas importantes. E, portanto, a impossibilidade de um debate que não pode ser feito às pressas e nem sob censura. Fala-se do figurino e do penteado das candidatas, fala-se de sua orientação sexual, falam-se banalidades e superficialidades. A candidata Dilma foi elevada a uma condição de Magna Mater, ao lado do Presidente Lula, que por sua vez, foi elevado a um patamar de líder intergaláctico ou a uma espécie de vice-Deus, coroados agora pelo nascimento de um menino chamado Gabriel, que nasceu abençoado como um anjo, o que nos faz lembrar, uma fábula outra, muito antiga, tão antiga como a existência das baleias, este bicho tão inconveniente a me triturar as vísceras de angústia e agonia. A propaganda eleitoral do Partido dos Trabalhadores, ao criar esta tríade de presépio, repetida à farta nos comícios, nos discursos e nos palanques, de diferentes maneiras, nega, na prática, o próprio trabalho da Secretaria Especial de Políticas das Mulheres do governo Lula, que as coloca, às mulheres brasileiras, em seus projetos e programas, como protagonistas autônomas e empoderadas sem fazer este uso reacionário e ideológico da figura da mamãezinha terna, coadjuvante, subserviente e subalterna que tem de cuidar do mundo. E trata, assim, o povo brasileiro como um bando de debilóides. Cala a boca baleia, morre baleia! Continuo sem respostas para as minhas perguntas. As mulheres querem o poder? E chegando lá como querem exercê-lo? Da mesma maneira que os homens? Há outro jeito das mulheres estarem no poder? Como é esse jeito? E os homens, como vão lidar com as questões propostas pelas mulheres? E se elas não concordarem? E se elas se rebelarem? E se elas não obedecerem? Qual o significado do desinteresse de um grande número de mulheres para que se lancem como candidatas? E qual o significado do voto feminino para tal ou qual candidato? E da rejeição deste mesmo voto para tal ou qual candidato? Baleia preguiçosa, burra, esqueceu de pensar, vai pagar caro por isso, pela inconsciência, baleia burra, morre baleia burra! A poucas semanas da eleição sinto uma imensa frustração, já entrei na pressa da coisa toda, tomara que termine logo, tomara que termine de uma vez. Morre baleia, morre. Vai morrer na praia, seu bicho burro! Mais uma vez o debate foi negligenciado. Mais uma vez o debate que envolve os desejos, os direitos e as reivindicações específicas das mulheres foi negligenciado, o mundo avança e a história das mulheres encalha como a baleia franca. Muito provavelmente a candidata Dilma será a próxima presidente do país. Pagaremos um preço alto pelas perguntas que deixamos de fazer, das vezes que deixamos de questionar com senso crítico e autonomia de pensamento, das vezes que deixamos de dizer não, de dizer que assim não nos serve, que não se pode tratar uma mulher de determinadas maneiras, como um ser sem vontade e de todas as vezes que compactuamos mudas com este tratamento e com a conivência e passividade de determinadas condutas, das vezes que nos omitimos, das vezes que calamos frente a impossibilidade de alguns tipos de alianças, das vezes que esquecemos que mais cedo ou mais tarde vamos ter de responder às nossas filhas, às nossas leitoras, às nossas alunas, pelas nossas próprias escolhas. A baleia agoniza, mas não morre, a desgraçada! Do outro lado do mundo, também numa praia, no final de junho, onze mulheres israelenses levaram mulheres palestinas para passear em Telavive e Jaffa, sem pedir autorização do governo do premiê Benjamin Netanyahu - em desafio à rigorosa lei de entrada em Israel, conforme nos conta Viviane Vaz[6] em matéria publicada no Correio Braziliense. "Nós comemos num restaurante, tomamos banho de mar e nos divertimos na praia". A jornalista Ilana Hammerman conta que os passeios entre palestinas e israelenses têm se repetido cada vez com um número maior de mulheres e se transformado num ato espontâneo de desobediência civil e pacífica já que elas não reconhecem a legitimidade da ocupação, dos muros e dos postos de controle instalados por Israel no território palestino da Cisjordânia. A baleia sente um frêmito, um frêmito como um raio, como uma faísca, um esboço de resposta, quem sabe. Enquanto as nossas reivindicações não forem claras, enquanto não modularmos o discurso de maneira inteligente e veemente, enquanto não dissermos a nós mesmas e ao mundo qual é a maneira que queremos exercer o poder e se de fato queremos fazê-lo, enquanto não articularmos a conduta, o gesto e a voz, só nos restará o expediente da desobediência, prática feminina tão antiga esta, que nos projeta para a margem do mundo, para fora da institucionalidade, transformadoras e revolucionárias algumas vezes, inoperantes e esquecidas, quase sempre. Que é como voltar sempre ao começo, ao começo do mundo, ao começo dos tempos. A baleia estertora dentro de mim, uma ânsia, sinto cólicas de angústia nestes últimos dias, o peso e a dor enorme de carregar esta baleia moribunda, as minhas esperanças maltratadas, e essa tristeza sem fim, uma oportunidade histórica desperdiçada, quanto retrocesso! Baleia burra. Vai morrer encalhada, vai morrer na praia, baleia burra! 1- Lélia Almeida é escritora. http://mujerdepalabras.blogspot.com/ |