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CONTORNANDO VAZIOS, é preciso muito pensar Para Marco Aurélio Padilha e Tania Galli Fonseca, preciosas vidas | Imprimir |  E-mail

Barbara Neubarth *


Eram seis horas da manhã de 23 de novembro. Desci dois lances de escada para recolher o jornal. Naquele dia, cobrindo o periódico, uma folha preta, na qual, em letras vermelhas, estava escrito CRACK, e, em letras brancas, duas assertivas: NEM PENSAR e A LUTA AINDA NÃO TERMINOU. A sobrecapa fora meticulosamente projetada para chamar atenção acerca de um problema que, desta vez, se traveste numa droga chamada crack. Naquele momento, eu ainda não sabia que meu companheiro de vinte e oito anos de convivência, acabara de falecer, internado que estava, num centro de terapia intensiva.

Mas por que me tomo de coragem e comento meus hábitos matinais e escrevo sobre algo tão particular, como o triste instante, a derradeira partida daquele com quem convivi boa parte da minha vida?

Meu marido era alcoolista. Ou seja, não podia consumir álcool, assim como um diabético não pode consumir açúcar. O tratamento com o Dr. Ernani Luz (já falecido) nos ajudou, a ele e a mim, a lidarmos com as enormes dificuldades que esta doença apresenta, tanto para o dependente, quanto para aqueles que o cercam. Assim que, nos últimos vinte e sete anos, ele conseguiu dizer: NÃO AO ÁLCOOL.

Mas ele também foi dependente do tabaco que, por ser uma droga com menos interferências sociais, é, ainda, abertamente tolerada. Contudo, incipientes dificuldades respiratórias e a posterior constatação de que estava com enfisema pulmonar o levaram a parar de fumar. Faziam mais de quinze anos que, abaixo de muito sofrimento, tanto dele como nosso, os que estávamos por perto das suas crises de intensa ansiedade, largou o cigarro. Era um dia 01 de abril e, daquela vez, seria de forma definitiva. Na ocasião comentou, com seu jeito irônico: se eu voltar a fumar, serei o maior de todos os bobos.

Sem as bengalas, que tais drogas representam, tratou de aprender novos modos de ser, estar e lidar com a vida e suas dificuldades. Às vezes, trocando de amigos; em outras, mudando os hábitos alimentares ou fazendo exercícios físicos; e, até, correndo atrás do sonho de se fazer um melhor escritor. Para isto, as sessões de terapia, na discussão dos porquês das suas mazelas e na busca por possibilidades outras de se responsabilizar por um jeito próprio de fazer escolhas criativas, foram fundamentais. De tal modo que as enormes dificuldades iniciais com a abstinência - do álcool e do tabaco – foram contornadas e, a vida, com seus altos e baixos, passava a valer a pena de ser vivida. De cara limpa, na conscientização, que passou por conversas amorosas e/ou enraivecidas, com a família e com amigos, no auxílio de psiquiatras e psicólogos, tornou-se um especialista no amplo assunto das patologias contemporâneas e suas drogas. Interessava-se em levantar questões sobre causas e efeitos, sobre as repercussões no uso das substâncias psicoativas, entre os pobres e os ricos.

Numa busca, até mesmo filosófica, sobre quem carregaria a culpa, quem seria o comedor de pecados? Em conversas sobre o cotidiano, por exemplo, observava problemas de relacionamento que podem nascer de brigas fúteis; ou insatisfações, daqueles que se dizem estar acima do peso, que a moda preconiza; ou dos que se deprimem se não circularem com o carro do ano; ou daquele que gasta o que não tem para satisfazer o filho que quer viajar a Bariloche. Estes, e tantos outros pontos, sua mente investigativa queria entender. Por trás destas pesquisas, costumava explicar, estava o jornalista curioso pelos fatos e suas versões.

Sem, neste momento, aprofundar as diferenças que marcam o cotidiano das classes populares, ouso dizer que entre os mais abonados o não-ter é, frequentemente, sentido como fracasso. Nestas ocasiões, tentando preencher a falta de sentido da vida, considerada, por muitos, insuportável, buscam tamponar o vazio - real ou imaginário - através de saídas feitas por atalhos ilusórios. É quando um alívio, aparente, começa na efêmera tragada de um cigarro ou na alegria inebriante de bebidas translúcidas; ou, parece estar, nas promessas de férias em ilhas paradisíacas ou, talvez, na condução de carros velozes.

Em nossa sociedade, para sujeitos em crise há, de outro lado, fornecedores, produtores (que até se queixam dos altos impostos pagos), traficantes, consumidores recreativos, a cegueira de determinados legisladores, enfim, aqueles que, em alguma medida, são responsáveis pela imensa panacéia de drogas disponíveis e que formam uma rede, de muitos pontos, sempre estendida para capturar sua presa. Na adolescência, segundo Maria Rita Kehl, o abuso do álcool e de outras drogas, em sociedades laicas, em que faltam ritos de passagem para sinalizar o ingresso na vida adulta, é comum, e funciona como desafio para decidir a entrada em certos grupos. São grupos em que a proteção oferecida pode estar relacionada com atos de delinquência, evidentes em todas as classes sociais.

Contudo, a autora observa, a delinquência pode ser tanto patologia de um ou outro sujeito, em particular, quanto da sociedade em seu conjunto.

Por trás desta engrenagem, como seu pano de fundo, está aquilo que a proximidade nem sempre nos permite ver: nossa sociedade capitalista precisa se manter funcionante e, para isto, são necessários, cada vez mais, produtores e consumidores.

O uso das drogas é uma escolha pessoal, mas o incentivo ao seu consumo é socialmente determinado. Assim, a tal máquina, não lhe importa quantos se matam ou morrem, importa é VENDER FELICIDADE, por custos e preços variados.

Ao expor nossa história, interrompida pela sua morte prematura, aos cinqüenta e cinco anos, de falência múltipla de órgãos, outrora atingidos pelo uso de álcool e outras drogas, cumpro, de certa forma, seu desejo em doar o corpo à ciência. E, como hoje eu preciso de alguém que me escute, contornando vazios, busquei coragem dando voz às suas e, também, às minhas enormes inquietações. Quem sabe assim estas nossas pequenas cumplicidades possam reverberar em outros corpos, ao se descobrirem, como nós nos descobrimos, sujeitos de preciosas vidas?

Afinal, para nós, este quarto de século longe do álcool e do tabaco, ainda foi um tempo possível, para plantar uma árvore, escrever um livro e ter uma filha. Contudo, sua antecipada partida lhe tirou a alegria da colheita, que promete ser generosa.

 

                                                                      Porto Alegre, primavera de 2010.

  

KEHL, Maria Rita.  A juventude como sintoma da cultura. http://www.mariaritakehl.psc.br/conteudo.php?id=75#topo

 

 *  Barbara E. Neubarth,

     Psicóloga, doutora em Educação (UFRGS)