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Entrevista com HELEUSA FIGUEIRA CÂMARA  E-mail

Professora universitária e escritora baiana, Mestre e Doutora em Ciências Sociais e Políticas, figura emblemática em Humanidades, atravessa muros prisionais qual fresta de luz, com a leitura e a escrita (MHM)


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MHM- Como começou essa experiência e foi sendo desenvolvida: do Proler/Uesb ao Proler Carcerário, ao Letras de Vida e a obra  Além dos Muros e das Grades?

Em setembro de 1989, quis o acaso que eu oferecesse uma carona à artista plástica conquistense, Marisa Correia, que iria participar de uma reunião no Fórum de V. da Conquista. Estávamos nos despedindo, quando fui convidada a permanecer e..., apesar de jamais pensar em trabalhar com presidiários, saí da reunião como presidente do Conselho da Comunidade da Comarca de Vitória da Conquista. Buscando minimizar a angústia do prisioneiro à espera da sentença, ou do processo em grau de recurso, sem outras pretensões, comecei a emprestar alguns livros, a datilografar alguns poemas que os presos escreviam. Face ao prazer constatado por esse pequeno ato de zelo, surgiu o projeto "O Buraco da Fechadura: discursos prisionais”, incentivando a leitura e a produção textual escrita e criativa. Organizei um pequeno roteiro para entrevistar os internos sobre meios de comunicação de massa, enfocando a programação televisiva e radiofônica.

 

Os presos acharam agradável sair da cela para conversar. Algumas pessoas costumavam perguntar como é que eu aguentava “uma prosa ruim dessa?” A história dessas conversas, entretanto, repercutia favoravelmente junto aos internos. O momento era alegre, o soldado de plantão, curioso, interferia também nos assuntos e, depois de algum tempo, todos acabavam conversando - policial, prisioneiro e pesquisador - o que mudou o rumo inicial do levantamento de dados, mas propiciou um melhor relacionamento pessoal. Essas conversas aumentavam a auto-estima dos prisioneiros, não tinham preocupação doutrinária e eles falavam sobre livros, revistas, jornais, apresentadores de televisão, artistas de um modo geral, mostrando ao policial que detinham informações que interessavam a um programa da Universidade.

Foucault (1992) refletiu sobre o que restou da vida de algumas pessoas que passaram pela prisão "absolutamente destituídas de glória", vislumbradas pelo esbarrão com o sistema de justiça, sem nada que as tornassem interessantes para a saída das sombras e possível proximidade dos olhos dos pesquisadores. Prisioneiros percebidos, apenas, em notas infamantes registradas pelo escrivão, no cumprimento do seu ofício.

Em 1992, a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB firmou um convênio com a Fundação Biblioteca Nacional - FBN, para implantação do Programa Nacional de Incentivo à Leitura - Proler, neste município e considerei por bem incorporar este programa ao projeto que desenvolvia no presídio, surgindo, assim, o Proler/Carcerário.

Tanto as entrevistas quanto os escritos dos prisioneiros costumam ser vistos como coisas sem propósito, principalmente, por não estarem centrados no registro pormenorizado do crime que lhes é imputado, ou por não apresentarem detalhes de torturas sofridas para obtenção das confissões. Há uma curiosidade imensa, sobre as possíveis razões da criminalidade, das transgressões, mas a escrita poética ou autobiográfica é quase sempre desconsiderada, como se eles não tivessem o que dizer. Escrevendo e verberando os prisioneiros mostram que sabem dizer o que querem, o que é preciso e vêem bem os que os cercam. Conversas geram perguntas, e os textos foram se ampliando e a escrita, a leitura e a releitura foram ensinando escritor e leitor. As relações dos prisioneiros escritores com a comunidade prisional se modificam.

O novo fazer de escritura, - o do escritor – confere uma nobre visibilidade. Escrever sobre si numa produção que parece vasta e que se torna sistemática impressiona e as pessoas perguntam: E o quê que você escreve tanto? Poder escrever “tanto” e escolher o que contar para o prisioneiro escritor é como descobrir um segredo, e de vez em quando, a isto se referem: “descobri o segredo da leitura, o segredo da escrita”. Esse segredo, que parece revelado, decorre das possibilidades das escolhas de histórias a contar, das escolhas de palavras a usar. A escrita dos delitos nos autos dos processos, e a escrita pessoal do prisioneiro, melhora a sua imagem. As estratégias do jogo discursivo dão visibilidade positiva, oportunizam a expressão do passado, da história que não foi contada no processo por ser vista como irrelevante. Arranjos e combinações provocam mudanças e constituem poderes mesmo que para si próprio. Na condição de dupla autoria: do crime e da escritura, o prisioneiro tende a escrever sobre si, numa escrita para o outro. Entretanto, a escrita de si, como espaço de releitura, encaminha o autor a transformações pessoais, percebidas numa visão mais comparativa aos modelos de vida estabelecidos pela sociedade.

Muitas pessoas tomaram conhecimento da impressão de livros dos prisioneiros e como também escreviam, me procuraram para pedir que as ajudassem a datilografar, digitar, e se possível, publicar. Em 2000 o Proler/Carcerário é renomeado para Letras de Vida: escritas de si, atendendo a presidiários a pedreiros, trabalhadores rurais, catadores de papel, pintores, estudantes, donas de casa e outros. Letras de Vida incentiva a escrita e faz a revisão dos textos, com a correção gramatical, ortográfica, preservando, entretanto, a integridade da obra.

Os originais, comumente, são escritos à mão. A digitação do texto é muito trabalhosa, pela escrita fora dos padrões da norma culta, exigindo muitos encontros com o autor. É impressa uma cópia para correção do texto que é feita pelo revisor e autor. A prática da escrita assegura aos participantes do programa desenvoltura no processo redacional, ampliação do vocabulário, percepções do cotidiano mais aguçadas, e muita sensibilidade nas informações que expressam em seus textos. Para desenvolver este trabalho é necessário visitar presídios; associações de bairros; distritos e povoados da zona rural, aprender a escutar; incentivar o uso do discurso livre, criativo, estimular a leitura e a escrita; fornecer o material para a escritura; digitar o texto, ler e proceder à correção ortográfica; encontrar com os neo escritores para a revisão do autor; reproduzir o texto em máquinas de reprografia de boa qualidade; organizar o lançamento do livro; propiciar condições para que os livros sejam divulgados; informar aos neo-escritores que a publicação do livro não assegura fama nem dinheiro. A simplicidade na confecção do livro permite ao neo-escritor a organização, por conta própria, de outras edições.

Pensar e agir são competências de todos nós e Letras de Vida: escritas de si tem como meta divulgar as produções escritas por autores populares: pessoas que não puderam estudar ou que freqüentaram a escola por muito pouco tempo, mas que decidiram escrever da maneira que sabem; pessoas que podem e devem usar a palavra escrita para preencher tantos espaços vazios da literatura; pessoas que colocam música nos poemas em linguagem rimada dos cordéis, que constroem e contam histórias de amor, de encantamento, de assombração, de traquinagens, histórias de vida, escritas de si, autobiografias e assim os acontecimentos diversos são preservados, e a memória social do povo tem o referendo dos sentimentos e emoções, de quem vive a vida na dura luta do dia- a- dia.

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MHM- No que resultou o trabalho com Hélio Alves, José Raimundo e os demais, inclusive a contadora de história descoberta pels pessoa que cumpria pena alternativa?

Conheci Hélio Alves Teixeira na Casa de Detenção em 1992. Ele me pediu para digitar um poema e encaminhá-lo ao juiz da Vara de Execuções. No dia em que devolvi o poema cordel de Teixeira, Rosieles Ramos Sales outro interno que havia participado das entrevistas em 1992, entregou-me seis folhas de papel ofício com os seus primeiros poemas. A digitação, correção e impressão impressionaram os prisioneiros e eu, não poderia imaginar a satisfação que esse pequeno zelo representara - estávamos começando um programa de incentivo à escrita.

No dia 18 de dezembro de 1996 os escritos de Hélio se materializaram no livro Ventaneira: uma história sem fim com o lançamento em Salvador na Livraria da Torre, promoção da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia. José Raimundo dos Santos, Avandro Desidério de Souza e outros prisioneiros se aproximaram com a repercussão do trabalho de Hélio que foi, até matéria do Jornal Nacional da TV Globo.

E assim muito devagar outros livros foram impressos, realizando sonhos que pareciam impossíveis. Atualmente, Jonatan Santos interno no Presídio Regional de Vitória da Conquista, compartilha a sua habilidadade de letrado, transpondo para o papel a oralidade poética de Adilson Pereira que não sabe ler nem escrever. Os dois aguardam a publicação do livro.

A escritura de Hélio me emociona particularmente, por todo o tempo em que venho acompanhando o seu crescimento pessoal e social. É preciso conhecer o seu depoimento, fora dos muros da prisão: “Volto a afirmar que mesmo com o apoio de todos, foi preciso eu me esforçar muito. Eu me sinto honrado pela minha persistência, pois passei dias difíceis no cárcere, ao lado de um caderno, escrevendo o meu livro, o qual não foi em vão. Num dia de segunda-feira pela manhã, saí com um malote de livros para vender. Lembro que eu saí pelas ruas, batendo nas portas das residências, lojas, etc. Ali eu oferecia o livro e dava o meu testemunho. Creio que muitas pessoas quando ouviam a minha história , se emocionavam e compravam, outras apenas por curiosidade.”

Depois que Teixeira deixou o Presídio o percurso de sua caminhada chegava para mim, através de cartas e telefonemas. Ele relatava, pormenorizadamente as surpresas e possibilidades que seu livro ia sugerindo. Em 1998, na cidade de São Mateus, Espírito Santos, acontece o lançamento da 2ª edição de Ventaneira: uma história sem fim, promovido pela Coordenação Universitária Norte do Espírito Santo da Universidade Federal do Espírito Santo. Em agosto de 1999 é publicada a 3ª Edição de Ventaneira, viabilizada pela UESB e Universidade de Taubaté, em Taubaté, São Paulo. Em abril de 2001 relançamento do livro infanto-juvenil História das Matas Verdes - A Festa Misteriosa, no Solar das Artes em Taubaté com o apoio da UNITAU. Em 23 de junho de 2007 Teixeira tem uma participação especial como palestrante no VIII Congresso de Ex- Presidiários. Brasília.DF. Vale lembrar que o verbete sobre Helío registra seus fazeres: lavrador, pedreiro, mecânico, cordelista, compositor, contador de histórias, poeta, escritor e corretor de imóveis. Autor de Ventaneira: uma história sem fim (1996) Fuga Maluca, sobre a rebelião do PRGN, 1997. História das Matas Verdes: A Festa Misteriosa (Lit. Infanto Juvenil) 1999. Menção Honrosa no 2º Concurso Histórias de Trabalho promovido pela Coordenação do Livro e Literatura - Secretária Municipal de Cultura de Porto Alegre/RGS; outubro de 1995 com as crônicas: As prendas de Mamãe, Mão Branca e Peludo e Terras Alheias. Hélio torna a própria vida uma obra de arte, por recolher lembranças da atribulada e laboriosa existência do homem do campo. E nada pode apagar o prazer de ser visto e reconhecido por um ato considerado merecedor de respeito e admiração, mesmo que decorra de outra história vivida na prisão.

José Raimundo dos Santos trabalhador rural, motorista, tratorista, eletricista, escritor que atualmente presta serviços gerais. Nasceu em Una, Bahia, Brasil em 05 de junho de 1948 e está com 60 anos. Participou do Proler/Carcerário/UESB e é autor dos livros: A Queda do Cacau, e o Silencio do Porto, (memória) Km 47: Parada da Solidão: Vida de Caminhoneiro (autobiografia). Estes textos foram escritos no Presídio Regional Nilton Gonçalves de Vitória da Conquista, em 1994. José Raimundo estudou até a 5ª série do antigo curso primário nos anos de 1956 a 1960 e em turmas do EJA no presídio.

José Raimundo ama a terra em que nasceu, o país em que vive; e escolheu, como morada, a estrada do horizonte que leva e traz, em voltas e combinações possíveis, inúmeras histórias. Na cabine do caminhão que sempre foi do outro, mas que se fazia seu ao segurar o volante o “único troféu de um herói sem valor”, com as suas “mãos que ajudaram a carregar o Brasil, levando toneladas de alimentos aos lugares mais difíceis e longínquos”, Santos recorta detalhes, como cartões postais de seus feitos.

José Raimundo dos Santos retornou a prisão por duas vezes após a sua condicional, mas hoje, aos 60 anos, residindo em Condeúba é um cordelista atuante no jornal da cidade. Com a orientação do Proler/UESB, recolhe histórias populares dando visibilidade a memorialistas singelos. O registro destas histórias, graças ao escrevente, trará novas alegrias a outras pessoas.

Avandro Desidério de Souza é poeta evangélico, cozinheiro industrial e autor de A Sela da Humilhação: versos em louvor a Deus, publicado em 2006. A quem seriam destinados os  poemas de expiação engendrados por Avandro, na zona de vizinhança instaurada entre o autor e seus meios literários? Em seus poemas a alternativa cristã é o seu amparo, sua rota de fuga, e clama a Jesus Cristo 1176 vezes, na vertente do perdão, estabelecendo uma linha ao que se convenciona chamar de doutrina da lei e doutrina da graça.

Avandro em seus poemas religiosos fala do cotidiano na prisão, reinterpreta a História Sagrada, aponta a representação de Satanás a quem cita 33 vezes como instrumento de sua perdição. Nomeia a si próprio como pecador por 175 vezes e antepõe ao estigma da criminalidade a espera infinita da misericórdia de Deus a quem invoca 216 vezes. Avandro estabelece uma cronologia de sua execração pelo Caluniador, Acusador e a sua fragilidade em face das armadilhas que o cercam como o Pecador.

Poderia esta escrita de si, dissociada da forma padrão das normas cultas, ser o instrumento experimental de novos tempos para Avandro? Traria esta escrita de vida, de crenças, a força para quebrar barreiras nos velhos caminhos da sociedade punitiva e de controle, ou apontar outros percursos longe da prisão? O jogo está presente nos atos criativos do texto elaborado como arte pelo autor, e como ponte para o leitor possibilitando múltiplas estratégias. Versos em Louvor a Deus é a ressurreição da própria vida em palavras, que se repetem no murmúrio de uma linguagem ao infinito sobre a tentação, a queda, o castigo, a exclusão.

Ouvir as vozes interiores, registrá-las e partilhar com o outro é poder saber que se pode ser visto em duas ou mais faces e que o outro também é visto por nós e por outros, em outras tantas faces. Dar-se conta de si mesmo, como um indivíduo ativo e criador, é reconhecer que só há um sentido para a vida: o próprio ato de viver, ainda que sob o episódio do encarceramento.

Em 2008 encontrei com Avandro em Curitiba e os professores da rede estadual de ensino, que trabalham com educação prisional, compraram o livro de sua autoria, Tempos de reconstrução.

Em 2000 organizei um projeto sobre Histórias Populares que foi aprovado pelo Juiz da Vara de Execuções Penais desta comarca para constituir pena alternativa para o Sr. EM. Foram realizadas 30 entrevistas com jovens e idosos no povoado do Brejo, município de Vitória da Conquista. Deste acervo a história contada por D. Jesulinda, juntamente com fragmentos dos livros de autores prisioneiros foram publicados na Revista Decísio nº 19, edição especial de 2008.

Em todo este tempo, a “escrita de si” apresenta 17 livros escritos na prisão e 04 publicados; 10 escritos por trabalhadores de serviços informais e 02 publicados. O pedreiro Ailton Dias teve dois livros publicados, a trabalhadora rural D. Aureliana Luzia de Carvalho de 85 anos publicou Brasileiro Apurado: lembranças de Estiva. O estudante e ex-lavador de carro Wellington Ferreira Machado publicou em 1996 Meu Mundo Poético e há muitos outros livros aguardando o término do processo de correção e organização. Vale refletir sobre o que representa a leitura destes livros nas comunidades onde residem os neo-escritores. Foucault considera um verdadeiro ato revolucionário ver pessoas falando por si mesmas e os discursos dos prisioneiros, apesar de todas as interdições, contam melhor e mais claro o cotidiano prisional.

A escrita de si propicia a escolha do tempo a ser exteriorizado, como prova de inserção de vida dentro dos padrões aceitos pela sociedade. Escrever a própria história, deixar-se ver, sugere oportunidades de novas classificações mas, arrancar de dentro o que estava entravado é respirar melhor, é ousar ser.

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MHM- Como essas experiências se refletem na tua atuação como professora universitária e na administração do ensino, como Secretária de Educação? Como tem sido vistas por pesquisadores no Brasil e no exterior?

As Universidades,  devagarinho, vêm colaborando com programas que desenvolvam práticas sócio-educativas em presídios. Quando estive como Secretária de Educação em 1997 abrimos  uma turma de educação de jovens e adultos no Presídio Regional. A educação prisional ainda não está assegurada nas instituições carcerárias. Vale lembrar que o livro de Teixeira tem sido o seu passaporte para marcar audiências com políticos, Secretários de Educação, professores da rede pública, Departamentos de Educação e Letras das Universidades e com a mídia em geral. São pequenas ajudas que poderão se ampliar para um trabalho mais sistemático considerando as diversas situações, as possíveis ações e os desejos de reconstrução. Em 2008 a Revista Decisio nº 19, edição especial de 2008 dá um destaque muito grande aos neo-escritores do Núcleo Letras de Vida. O maior número de escritos apresentados na revista  são de pessoas da região sudoeste da Bahia. A Costureira de Helio Alves Teixeira, As comidas deliciosas da minha mãe de José Raimundo dos Santos e Dia das Mães de Rosieles Ramos Sales (ex-presidiários), A foice e a caneta de Jailson (pintor de paredes), Brasileiro Apurado, Salada de Capim, e Naquele tempo mulher não estudava de Aureliana Luzia de Carvalho (trabalhadora rural aposentada, 86 anos, com 02 poemas e um relato) e A Formiga vai a missa de D. Jesulina Fernandes (trabalhadora rural aposentada e benzedeira).

Quem quiser ler esta escrita muito delicada pode abrir a revista em http://decisio.crefal.edu.mx. A Revista Decisio é uma publicação do Centro de Cooperação Regional para a Educação de Adultos na América Latina e no Caribe (CREFAL) dedicada difusão de conhecimentos para a tomada de decisões e ações no campo de trabalho da educação de jovens e adultos no mundo. Os estudos são apresentados por autores envolvidos em atividades de pesquisa e desenvolvimento que compartilham o conhecimento no campo da educação de jovens e adultos, com outros participantes, em todos os níveis acadêmicos e culturais.

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MHM - Que perspectivas possíveis vislumbras para transformações no nosso sistema prisional com chance de alguma recuperação para a população carcerária em geral?

O trabalho tem me ensinado que as prisões desmancham, no dia a dia, muitos dos propósitos das ações sócio-educativas, pela evidência de uma prática jurídica que relega à indiferença os processos dos prisioneiros pobres, que não têm amigos importantes, não pertencem a grupos religiosos ou políticos, nem fazem parte de quadrilhas organizadas e muito bem aparelhadas, tanto de inovações tecnológicas, quanto de profissionais graduados que vendem sua formação profissional a quem oferecer melhor preço.

Aqueles que podem pagar as suas fianças e os seus defensores têm passagem muito rápida na cadeia, contrastando com os que carregam o estigma da pobreza e vêem suas penas acrescidas ao convívio com a indiferença. A ostensiva impunidade dos que, raramente, são  revelados como criminosos, e que escapam das penalidades legais, através do prestígio e do dinheiro, estampa a prisão como espaço corretivo só para pobres. Como pensar, portanto, na reinserção do prisioneiro ao convívio social?

Para que servem e a quem interessam as prisões é uma pergunta que devemos procurar fazer a nos mesmos. Não há tempo estabelecido para este trabalho: ele é contínuo: acompanhamos o passar dos dias ouvindo e buscando ações de educação mútua, tolerância e fraternidade. Há muita coisa por ser feita: o poder em suas modalidades econômicas e sociais deixa o seu traço bem marcado nos espaços carcerários.

A “escrita de si” e a autobiografia como atos de criação das experiências vividas e de escolhas pessoais constituem modos possíveis de reconstrução de vida e de inserção social. Para os prisioneiros uma nova autoria se antepõe à do crime, propiciando novas relações de identidade e de poder. Os aspirantes às diversas modalidades da escritura, os que estão por surgir, os que nunca virão, os que registram as histórias de vida e da vida nos diários escondidos, nos cordéis editados ou cantados por repentistas precisam ser mais valorizados. As palavras memorizadas e repetidas trazem emoções ao presente, e tais registros partem de compartimentos densos onde as intensidades espreitam as oportunidades de espargirem-se em fluxos.Aquele que escreve e desafia as normas e se esforça para partilhar o texto experimenta trocas equitativas nas caminhadas da vida, tornando possível o reconhecimento do outro em si mesmo, atravessa os limites.

 

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Que outras considerações julgas importante fazer neste depoimento?

Dezenove anos de trabalho com neo-escritores me legaram lições de vida e esperança por tempos libertários, pela resistência aos processos de sujeição que a violência do poder estabelece. Construí amizades, algumas  pela história compartilhada, outras pela escrita de vida de escritores nascidos com o programa Letras de Vida: escritas de si.

Este trabalho possibilita replicações pela singeleza e simplicidade de sua proposta e o projeto tem sido encaminhado para quem o solicita. Os espaços educacionais precisam conhecer estas produções, sem a forma estabelecida pela norma culta, mas que estampam os problemas sociais, apresentando realidades que a sociedade procura desconhecer. Que outras vozes registrem as suas vivências, as suas criações a fim de que as tentativas de transformações individuais, em busca de percepções mais claras dos direitos e deveres numa vida em coletividade, se renovem a cada ano. Abrir a porta àqueles a quem se tem esperança de tornar melhores é um préstimo recíproco. Quem ensina, instrui-se. (Seneca)

Letras de Vida propõe-se a trazer à tona emoções, prazeres, medos, dores, costumes, (in)verdades das normas, da vida, enfim, lembranças várias de cada um. Em atalhos, Letras da Vida brinca, mistura pronomes, despe canções, reconta o bem e o mal das histórias de querer, ao som das letras encapeladas nos fluxos do coração. História reconta história como contas de ladainha do amor eterno, no dia-a-dia, do dito e do não dito, das construções mal assombradas, da casa ao lado, de chão batido ou ladrilhada. Letras de Vida pinta paredes no quarto escuro e, com o pranto copioso salga a terra ao puxar da enxada, mexendo a massa da areia bruta.

Letras da Vida junta sementes e vê brotar livros escritos por mãos calosas da dura lida - histórias de ofícios, de arte, de profissão, de festas nos campos, de santos milagrosos, de dança agarradinha, de corações apaixonados e do amor de traição. A língua amada ou arranhada no texto criativo. Idéias, idéias, idéias, amarradas, engastadas, reveladas, tomando formas livres, leves e vivas. E, assim, aprendo eu, aprende você, todos nós aprendemos a ver por dentro, a ler o outro, a escrever a vida.

Experiências de autodidatas mobilizados pelos desejos de reinventar suas vidas em autobiografias e histórias de trabalho precisam ser repensadas, pois atravessam injunções a que se encontram submetidas por tantas classificações histórico-posicionais dos grupos sociais vigentes. Que importam os pronomes misturados, a rima gasta se o que é mais difícil se faz quando se retira do fundo de si mesmo a palavra calada para ousar estampar as mais diversas emoções?. Imaginar sujeitos escreventes, suas obras compreendendo tanto a vida quanto o texto, a escolha registrada em comentários, fragmentos, recortes de emoções, possibilidades de contar a história para se lembrar dela, para poder viver esta história na memória popular, e poder utilizá-la. São raras as histórias de alfabetização que possibilitam acesso às práticas culturais da escrita, a pessoas cujo caminho de aprendizagem foi aberto a foice e a enxada.

 

                                                                                                                                            Porto Alegre - Vitória da Conquista - setembro de 2009